Fala-se hoje muito do urânio, das suas utilizações militares e das consequências para a população civil ou militar a ele exposta. No entanto o nível dos conhecimentos gerais sobre o comportamento no núcleo atómico, o fenómeno da radioactividade e respectivos riscos ou benefícios, é muito baixo originando, nuns casos, receios infundados e noutros, que a natureza dos perigos reais passem despercebidos.
A acrescentar a isto alguns jornais, jornalistas, "comentadores profissionais" ou ministros cuidam pouco de informar ou exprimir com correcção, não sendo raro ouvir ou ler coisas que poriam os cabelos em pé a qualquer estudante dos anos terminais do ensino secundário em alguns países Europeus. Ora o exercício da democracia - pelo menos com nós a concebemos - pressupõe uma informação clara e transparente, única forma de permitir decisões conscientes e avisadas. Não seria natural que o Governo, através dos meios de comunicação públicos promovesse a informação - cientificamente correcta - e o debate sobre esta problemática? Em vez disso envia-se uma "missão científica" a fazer trabalho técnico de recolha de amostras e medições em zonas onde, no dizer de um elemento da equipa, sabiam que não iriam encontrar nada pois a NATO já lá tinha andado a medir... No entanto os conceitos de base explicam-se em poucas palavras e servirão de aperitivo para os outros artigos deste suplemento. O nível de explicação é necessariamente simples e o rigor científico é, pontualmente, sacrificado à pedagogia. Esperamos porém que este pequeno texto ajude a entender melhor o tema em discussão.
1. Átomos e núcleos
O nosso ponto de partida será o átomo, a mais pequena parte de um elemento químico que mantém as suas propriedades. Numa imagem grosseira mas facilmente perceptível podemos comparar a estrutura de um átomo à do sistema solar - um núcleo central onde grande parte da massa se concentra, envolto a grande distância, por pequenas partículas girando em seu torno. No entanto a comparação acaba aqui, sendo a natureza das partículas que compõem o átomo e as forças e leis dominantes diferentes do que ocorre no sistema solar. No núcleo existem dois tipos de partículas muito semelhantes [1] - neutrões e protões - que se distinguem essencialmente por as primeiras terem carga eléctrica nula e as segundas uma carga positiva. Ao número total dessas partículas chamamos número de massa. É o número de protões no núcleo - que designamos por número atómico, Z - que identifica o tipo de elemento. Este núcleo é envolto por outras partículas - electrões - de massa muito menor e com carga negativa. Os electrões, arrumados em "camadas", são mantidos em torno do núcleo pela atracção electroestática dos protões. São os electrões das últimas camadas que intervêm nas ligações químicas já que os núcleos atómicos estão sempre, a esta escala, muito distantes das camadas externas. Se as cargas positivas no núcleo do átomo fossem deixadas livres e devido à repulsão electroestática, rapidamente se afastariam, destruindo o núcleo e com ele o átomo. É pois necessário uma "cola" muito forte para manter o núcleo unido sendo esse o papel dos neutrões [2]. No entanto essa "cola" tem um alcance muito curto. Assim, para um mesmo elemento químico (isto é, para o mesmo número atómico) podemos ter átomos com núcleos com mais ou menos neutrões no núcleo (isto é, diferente número de massa). É a esses diferentes núcleos que chamamos isótopos. Do que dissemos o leitor pode já antecipar que se tivermos "neutrões a menos" esse núcleo acaba por se transformar expontaneamente, sendo o inverso igualmente verdadeiro, se o núcleo for demasiado grande devido ao curto alcance da "cola" que o mantém unido. É a esta característica de transformação expontânea e aleatória dos núcleos que chamamos de radioactividade. Essa transformação ocorre num tempo característico de cada isótopo e usamos o conceito de meia-vida - isto é, o tempo necessário para que uma dada quantidade de um elemento se reduza a metade - para a caracterizar.
2. Partículas emitidas
Quando a radioactividade começou a ser estudada observou-se que podiam ser emitidas três tipos de partículas que, por ausência de uma correcta identificação, se designaram pelas letras gregas alfa, beta e gama. Mais tarde foram identificadas como sendo, respectivamente, o núcleo de um átomo de hélio (composto por dois protões e dois neutrões), electrões (para emissão beta-) e fotões de elevada energia. Quando uma partícula alfa é emitida o número atómico diminui de 2 e o número de massa de 4. Na emissão de uma partícula beta- o número atómico aumenta de um (a emissão beta- ocorre quando um neutrão se transforma num protão, emitindo um electrão). Estas partículas têm diferente poder de penetração na matéria envolvente que depende não só do tipo de partícula mas também da sua energia inicial. Mais uma vez a analogia com o que se passa à nossa escala é ilustrativa. Assim por exemplo a radiação alfa (por ser uma partícula grande e pesada) é facilmente absorvida por uma simples folha de papel realizando danos unicamente à superfície. Quanto aos seus efeitos, no essencial as radiações comportam-se como uma bola de "bowling" atirada para uma garrafeira - até dissipar toda a sua energia cinética e parar vai destruir ligações químicas e deslocar outros átomos das suas posições. As consequências desta destruição são complexas, dependendo do tipo de materiais ou órgão biológico, dose recebida, local onde ocorrem, etc.
3. O urânio
O elemento estável mais pesado é o chumbo com Z = 82. Todos os elementos com número atómico superiores são radioactivos decaindo ou por emissão alfa ou beta. O urânio é o elemento natural mais pesado, com um número atómico Z = 92, e encontram-se na natureza três isótopos - 238U (cerca de 99,27%), 235U (cerca de 0,72%) e 234U (cerca de 0,006%), onde o índice representa o número de massa. O decaimento do urânio origina uma cadeia de decaimentos consecutivos até chegar a um elemento estável, neste caso o chumbo. Os isótopos 238 e 235 originam duas cadeias distintas enquanto que o isótopo 234 surge na cadeia de decaimento do 238U. A abundância relativa de cada elemento na cadeia depende da sua meia-vida, sendo determinante o isótopo com meia-vida mais longa. No caso das séries do urânio estes são os isótopos do urânio, com meias-vida de 4,49 mil milhoes de anos para o 238U e 0,71 mil milhões de anos para o 235U. Note-se que, embora do ponto de vista radiológico os diferentes isótopos sejam diferentes, do ponto de vista químico, não há diferença entre os vários isótopos.
3.1 Propriedades e aplicações do Urânio
O isótopo 235 tem aplicação como combustível nuclear ou em armamento nuclear. Assim o urânio natural é sujeito a um processo de enriquecimento neste isótopo desde os 0,72% em que ocorre na natureza para valores da ordem de 3,2-3,6 % para a utilização em reactores ou até 90% para utilização em armas nucleares. O resultado desse enriquecimento é designado urânio empobrecido (DU). No entanto deste processo resulta também uma variação da concentração do isótopo 234U para cerca de 0,0008% sendo contudo importante considerar este isótopo para a avaliação da actividade total do DU. Estima-se que a actividade global do DU, tendo em conta os restantes elementos da cadeia de decaimento, é cerca de 78% da do urânio natural e a correspondente a actividade alfa de 57%. Devido à sua densidade elevada o DU é usado quer como contrapeso em aviões (um avião como o Boeing 747 necessita de 1500 kg de contrapeso) quer como escudo para absorção de outras radiações, por exemplo para armazenamento de combustível nuclear usado. Por outro lado, do ponto de vista químico é um metal pesado que, embora haja ainda falta de estudos científicos extensos, sabe-se ter efeitos tóxicos para o organismo quando partículas finamente dispersas são ingeridas ou inaladas. Apesar da manipulação de DU exigir algumas medidas de protecção e de limitação do tempo de contacto, na forma de peças com dimensões razoáveis não representa um risco significativo.
3.2 Aplicações militares
A utilização do DU em aplicações militares acarreta outra consequência importante - é que o urânio tem um ponto de fusão a uma temperatura relativamente baixa - 1132 ºC e facilmente se oxida (arde) dispersando-se em partículas finas. Pode assim dispersar-se por uma zona relativamente larga contaminando terrenos, linhas de água e a cadeia alimentar. Mesmo que as concentrações sejam baixas, a não serem feitos onerosos trabalhos de descontaminação de terrenos, os seus efeitos farão sentir-se ao longo de gerações. Mas esta temática certamente estará mais desenvolvida noutros artigos. Por agora fiquemos nos conceitos de base.
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(*) Cientista, do Instituto Tecnológico e Nuclear
[1] na realidade existem mais e os próprios neutrão e protão são compostas por outras partículas. [2] mais uma vez a realidade é mais complexa, ocorrendo a troca de uma partícula.