O Comité Central do PCP, na sua reunião de 13 de Fevereiro, procedeu a uma análise dos resultados do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e ao importante significado que a vitória do Sim representa, bem como às exigências futuras para garantir a defesa da saúde e da dignidade da mulher; analisou desenvolvimentos recentes da acção do governo e da actual situação política, económica e social; debateu ainda o conjunto de orientações e linhas de trabalho mais imediatas com vista ao reforço da organização do Partido e à sua actividade.
1. Uma vitória da democracia e da liberdade, da dignidade e saúde da mulher
1.1. A vitória do Sim no referendo do passado domingo constitui uma afirmação de valores progressistas e civilizacionais, uma manifestação de tolerância e de respeito pela convicção de cada um e de todos os portugueses, uma importante vitória da mulher e do direito à defesa da sua dignidade e saúde. A vitória do Sim constitui uma iniludível afirmação de democracia e de liberdade que honra os valores e o património de Abril.
Uma vitória para a qual o PCP deu uma contribuição decisiva designadamente na acção de mobilização e esclarecimento do eleitorado, através de milhares de iniciativas, como o testemunham os impressivos resultados obtidos em todas as freguesias, concelhos e distritos em que a sua influência política é maior.
Uma vitória que abre caminho à solução de um grave problema social há décadas objecto da acção e luta do PCP. No combate ao aborto clandestino, que Álvaro Cunhal já havia sinalizado há quase 70 anos, o PCP foi o partido pioneiro na luta pela sua resolução com a apresentação em 1982 de projectos de lei na Assembleia da República e aquele que nunca desistiu de o levar à discussão em posteriores momentos. Após um longo percurso de intervenção e 25 anos de apresentação de iniciativas legislativas – ultrapassados obstáculos, manobras e adiamentos, – o Comité Central do PCP sublinha que valeu a pena afastar a resignação e a desistência, que valeu a pena insistir, propor e lutar contra o aborto clandestino.
Saudando os militantes do Partido e da JCP, os nossos aliados da CDU e todos os cidadãos, dos mais diversos quadrantes, que genuína e sinceramente se empenharam nesta luta pondo acima dos seus interesses individuais ou de grupo o valor maior do respeito pela dignidade da mulher, o Comité Central reafirma o compromisso do PCP de prosseguir sem hesitações o percurso até à aprovação de um regime legal compatível com os valores de democracia e liberdade que defendemos.
1.2. É agora tempo de, sem mais demoras, fazer respeitar e cumprir os resultados do referendo e a opinião expressa pelos portugueses. É tempo de todos os que se pronunciaram e defenderam o Sim assumirem as responsabilidades que decorrem deste resultado e de honrarem os compromissos assumidos.
1.3. Num momento em que o respeito pelos resultados obtidos se traduz na imperiosa e urgente necessidade de se concluir o processo legislativo iniciado na Assembleia da República, o PCP chama a atenção para as manobras e pressões que os partidários do Não desenvolverão, animados pelo longo percurso de cedências e vacilações que o processo de despenalização da interrupção voluntária da gravidez tem encontrado no campo dos que se pronunciam em sua defesa.
Em consonância com a hipocrisia e a total ausência de seriedade desde sempre manifestadas é particularmente significativo que partidários do Não tenham já, perante a pesada derrota sofrida, vindo questionar, a propósito do carácter não vinculativo do referendo, o sentido e expressão da vontade manifestadas pelos portugueses no referendo — em gritante contradição com tudo o que em sentido inverso argumentaram em 1998 para, perante um resultado então bem menos expressivo, recusarem a plena legitimidade do Parlamento para aprovar uma lei de despenalização.
É particularmente elucidativo desta atitude o facto de aqueles que, apoiando há anos a privatização do Serviço Nacional de Saúde, venham agora verberar a possibilidade de os actos de interrupção da gravidez poderem vir a ser realizados em estabelecimentos privados iludindo as responsabilidades que nesta matéria, como em outras, os defensores da privatização têm na crescente restrição do acesso da população, em condições de igualdade, aos serviços de saúde e escamoteando que a solução para estes problemas passa pelo investimento no Serviço Nacional de Saúde.
O PCP rejeita assim, frontalmente, as manobras já em curso pela direita e partidários do Não no sentido de colocar antecipadamente sob suspeita a Lei a aprovar e de lhe limitar o seu conteúdo e alcance.
1.4. O PCP pronuncia-se pela rápida concretização, nas próximas semanas, do processo legislativo que contribua para não prolongar o tempo perdido e para adoptar as decisões que, resistindo a pressões ou dando campo a manobras dilatórias que pretendam fazer da aprovação da Lei um momento de desforra das concepções mais retrógradas e obscurantistas agora derrotadas, respeitem integralmente o sentido do referendo e do seu resultado.
1.5. No momento que antecede o necessário processo legislativo para dar corpo à vontade agora manifestada, o PCP identifica desde já como questões nucleares a ponderar e acolher na lei a aprovar: a necessidade de a indispensável informação e apoio a assegurar à mulher não ser confundida com intoleráveis pressões psicológicas; a criação de condições que garantam a absoluta reserva de anonimato a que as mulheres têm direito, prevenindo e condenando quaisquer propósitos de humilhação pública; a organização e preparação do Serviço Nacional de Saúde para responder à necessidades da Lei, não permitindo que o direito à «objecção de consciência» individual dos médicos seja confundido com a criação artificial de serviços de saúde «objectores».
O PCP, em coerência com as suas posições e acção, considera que a futura lei a aprovar constitui um elemento a integrar numa política mais geral de defesa da maternidade e paternidade, da saúde sexual e reprodutiva, que passa pela implementação de programas de planeamento e educação sexual (designadamente pela articulação entre os centros de saúde e a escola pública), de apoio às condições económicas e sociais dos casais, de protecção na legislação laboral dos direitos da mulher trabalhadora.
1.6. Num quadro em que a figura do referendo foi sucessivamente usada enquanto instrumento para impedir e adiar a despenalização da interrupção voluntária da gravidez – primeiro em 1998 para impedir a aplicação de uma lei já aprovada na AR e, a partir de 2005, para justificar a não aprovação de uma lei num parlamento com uma maioria favorável a esse objectivo – , a vitória do Sim põe termo a um prolongado processo dilatório e deixa sem pretextos os que sempre o quiseram impedir.
É necessário reafirmar que o referendo se traduziu, não só em tempo perdido, como numa oportunidade dada à direita para retomar, com um fôlego que havia perdido, o cortejo dos mais retrógrados argumentos e a exploração sem escrúpulos dos sentimentos morais e religiosos que animaram na sociedade portuguesa clivagens e valores conservadores e reaccionários que a direita não deixará de usar no quadro da luta mais geral em torno dos direitos, das liberdades e do regime democrático.
Ao contrário do que os defensores da via referendária proclamam, se algo há a concluir da sua utilização é que, com os presentes resultados, ela se esgotou enquanto obstáculo à aprovação de uma lei que há mais tempo teria evitado a dor e humilhação de muitas mulheres. Fica assim absolutamente claro e inquestionável o poder que a Assembleia da República sempre teve para a resolução da questão e que a partir de agora sem rodeios deve assumir.
1.7. O Comité Central do PCP chama a atenção para as considerações que, a propósito do agora realizado referendo, alguns se apressam a fazer sobre este instituto.
Registem-se neste sentido as precipitadas, mas não inocentes, manifestações de opinião de uns, no sentido de uma sobrevalorização do referendo – confundindo linha referendária com democracia participativa, desvalorizando a democracia representativa e justificando a não assunção da responsabilidade política que lhe deverá estar inerente – e de outros, no sentido da defesa do seu uso enquanto instrumento plesbiscitário (designadamente para uma subversão constitucional) ou de ampliação das suas consequências (eliminando a exigência do pronunciamento de mais de 50% dos eleitores para o seu caracter vinculativo).
Uns e outros convergindo, com argumentos diversos, para o reforço de um mecanismo que, a ser banalizado, pode contribuir, não para o reforço, mas para a fragilização e vulnerabilização da democracia, para o incentivo a dinâmicas populistas e à ampliação da demagogia e superficialidade.
2. Combater o branqueamento do fascismo e a ofensiva contra o regime democrático
2.1 Num quadro em que, a propósito de um programa televisivo e beneficiando de alguma da argumentação introduzida pelo referendo, afloraram pela mão de alguns sectores muitas das mais reaccionárias e obscurantistas concepções que se julgariam soterradas pelos valores de Abril, o Comité Central do PCP não pode deixar de alertar para o significado da crescente ofensiva ideológica que, envolvendo actores e argumentos diversos – seja a partir de pretensas análises académicas, seja assente nas mais primárias manifestações de reaccionarismo –, converge no objectivo do branqueamento do fascismo e na absolvição dos seus crimes e principais responsáveis. Um objectivo que integra a tentativa de condenação dos que combateram o fascismo e o apagamento ou aviltação do papel dos comunistas na resistência à ditadura.
2.2. A poderosa campanha em curso, patrocinada pelo grande capital e envolvendo a generalidade da comunicação social dominante, tem em vista a negação do caracter fascista do regime de Salazar e Caetano e da sua natureza de classe; a desvalorização dos seus métodos repressivos e a ocultação dos seus crimes; a desvalorização do papel decisivo e incontornável do PCP na resistência à ditadura fascista e a adulteração da luta de sempre dos comunistas pela democracia e pela liberdade; a ofensiva e abjecta “equiparação” entre Salazar e Álvaro Cunhal –metendo no mesmo saco, insultuosamente, o ditador fascista e o resistente heróico, o carrasco e a vítima, o traidor aos interesses da pátria e o patriota exemplar – para procurar criminalizar os que lutam e resistem à política de direita.
2.3. O Comité Central do PCP salienta que a campanha de branqueamento do fascismo, pela sua intensidade e diversidade, é expressão de uma mais vasta ofensiva contra a democracia e o próprio regime democrático de que os ataques à própria democracia política, as limitações à liberdade, o recrudescimento da acção impune de organizações nazi-fascistas e os apelos à subversão do texto constitucional são inquietantes exemplos.
Uma campanha que, em última instância, visa repor valores e concepções favoráveis à exploração e opressão e criar dificuldade aos que mais combativa e consequentemente se opõem a uma política que, ao serviço do grande capital, agrava as condições de vida do povo, hipoteca o futuro do país e aliena a soberania de Portugal.
3. Face à política de direita: desenvolver a luta, afirmar a alternativa, reforçar o PCP
3.1. O Comité Central do PCP chama a atenção que, apesar de diluída pela campanha do referendo, a ofensiva política do governo não só persiste como se agrava.
3.2. A agora anunciada intenção do Governo de resumir às chamadas áreas de soberania aquelas que constituirão as funções nucleares do Estado, a pretexto da delimitação da natureza dos vínculos laborais, constitui uma incontornável confissão do projecto em curso de redesenhar o Estado ao serviço dos interesses dos grupos económicos e financeiros, designadamente com a alienação das funções e responsabilidades sociais do Estado que há muito o governo vem prosseguindo. O sistemático encerramento de serviços públicos, a desarticulação e destruição da rede de cuidados de saúde, as alterações que estão a ser introduzidas no ensino básico e em preparação para o ensino superior público, a agora anunciada transferência de competências para as autarquias, são expressão de uma política orientada para a desresponsabilização e desestruturação do Estado, e para o progressivo esvaziamento e privatização das principais áreas e funções. Ao mesmo tempo que prossegue, pelas mãos do governo do PS, a política de privatização das empresas públicas, atingindo áreas e sectores estratégicos que compometem o desenvolvimento e a soberania nacionais.
3.3. Num quadro geral de agravamento das condições de vida que a população e os trabalhadores conheceram durante o ano findo e o início do corrente ano – em resultado do aumento do custo de vida, do desemprego, da pressão sobre os salários, do aumento das taxas de juro, dos cortes no incentivo ao arrendamento jovem – é particularmente significativo que o lucro dos quatro maiores bancos privados tenha ascendido em 2006 a 1,9 mil milhões de euros, ou seja, mais 30,5% face ao exercício de 2005. Testemunho da crescente injustiça e desigualdade social, estes resultados – construídos sobre os ombros das dificuldades de centenas de milhares de famílias dependentes da banca por razão de aquisição de bens e serviços, e em particular das suas habitações, e de milhares de pequenos e médios empresários garroteados pelo crédito bancário – são indissociáveis de uma política orientada para a financeirização da economia e traduzida no abandono da actividade produtiva, na desprotecção do tecido empresarial de pequena e média dimensão, na retracção do consumo e do investimento. Uma política de classe que ao serviço de um reduzido número de detentores do grande capital atinge os interesses dos trabalhadores e da grande maioria da população.
3.4. O Comité Central do PCP chama a atenção para que, num momento em que se ampliam as operações de propaganda em torno da apresentação do Quadro de Referência Estratégico Nacional ou do Plano Nacional de Ordenamento de Território,— destinadas à repetida valorização de desígnios como a qualificação ou a modernização tecnológica — o Governo, pela voz habilitada do seu ministro da Economia, se preste à indigna atitude de apresentar no estrangeiro o factor de mão-de-obra barata como um elemento de competitividade e atracção de investimento.
3.5. A Acção de luta nacional convergente de 2 de Março – “Juntos pela mudança de políticas” – e a manifestação nacional dos jovens trabalhadores de 28 de Março pela defesa dos seus direitos e contra a precariedade, decididas e organizadas pela CGTP assumem particular importância num quadro em que a luta dos trabalhadores e das populações provou ser decisiva — como o testemunhou a expressão do protesto no último trimestre de 2006 — para impor limitações à ofensiva da política de direita do actual governo e até mesmo alcançar resultados de que é exemplo o aumento do salário mínimo nacional. O Comité Central do PCP apela à mobilização e empenhamento de todos os militantes e organizações para fazerem destas duas jornadas momentos de afirmação do protesto e de exigência de uma nova política.
3.6. O Comité Central do PCP sublinha a importância que a ampliação do protesto, dando expressão à indignação e descontentamento de largas camadas da população, pode assumir na criação de uma ampla frente social que erga a reclamação da interrupção desta política e a ruptura com as políticas de direita e afirme um novo rumo assente numa política alternativa e de esquerda que retome os valores de Abril.
Neste quadro o Comité Central do PCP, considerando a grave situação dos trabalhadores e do povo português e o comprometimento do futuro a que a política de direita está a conduzir o país, tomou a iniciativa da convocação da Conferência Nacional sobre questões económicas e sociais cujo lançamento será feito este mês de Fevereiro, com o objectivo de, a partir de uma análise mais aprofundada da situação do País, apontar soluções para os problemas nacionais. O PCP confronta assim todos aqueles que, por opção ou desânimo, se resignam à fatalidade de um país sem perspectivas e manifesta a confiança de que há outro caminho e de que é possível a construção de um país mais justo, desenvolvido e com futuro.
3.7. O Comité Central do PCP sublinha a diversidade e amplitude da acção política do Partido a todos os níveis e nesse âmbito destaca no futuro imediato a importância do reforço da acção em defesa do Serviço Nacional de Saúde, bem como as comemorações do 8 de Março que devem constituir um importante momento de afirmação e luta pelos direitos das mulheres (designadamente da mulher trabalhadora) que dê sequência à importante vitória obtida no passado dia 11.
3.8. Na sequência dos objectivos definidos na sua última reunião com vista ao reforço da organização partidária, o Comité Central apela ao empenhamento das organizações e militantes na concretização destas orientações para um Partido mais forte e sublinha a importância das iniciativas comemorativas do 86º aniversário do PCP – de que se destacam os comícios de 10, 17 e 31 de Março respectivamente em Lisboa, Porto e Alentejo – que devem constituir um momento de dinamização da participação dos militantes, de alargamento da influência do Partido e da afirmação do seu ideal e projecto.