Comuna de Paris

Comuna de Paris

Comuna de Paris 1871

assalto do céu

Quando em 18 de Março de 1871, na Praça do Município em Paris, foi proclamada a Comuna, o proletariado francês, com este gesto, escrevia uma das páginas mais gloriosas da história mundial..

Lançaram-se ao assalto do céu, foi a imagem encontrada por Marx ao referir-se a esse feito audacioso nascido, segundo expressão de Engels, da Internacional.

Foi breve a existência da Comuna. Durou apenas 72 dias essa epopeia dos operários parisienses. Mas foi tal o alcance dos seus objectivos e das suas realizações, a par, também, é certo, de muitos erros, que Marx e Engels, que a acompanharam de perto e, mais tarde Lénine, não hesitaram em aprofundar a análise tanto dos aspectos positivos como negativos da Comuna e em trazer à luz do dia os seus ensinamentos para o enriquecimento e desenvolvimento do seu trabalho teórico.

O proletariado na monarquia de Julho

A compreensão da Comuna de Paris, um dos acontecimentos mais importantes da história do século xix, assenta no conheci­mento do desenvolvimento económico, social e político da França a partir de 1830. Compreendemos a Comuna de Paris tanto melhor quanto melhor conhecermos o papel do proletariado francês nesse desenvolvimento.

Leitura no Hôtel de Ville de Paris (Câmara Municipal de Paris) da declaração dos deputados e da proclamação do Duque de Orléans, 31 de Julho de 1830 - Baron François Gerard
Leitura no Hôtel de Ville de Paris (Câmara Municipal de Paris) da declaração dos deputados e da proclamação do Duque de Orléans, 31 de Julho de 1830 - Baron François Gerard

Com a revolução de Julho de 1830, os legitimistas1, no poder desde 1815, foram derrubados. Substituíram-nos os orleanistas2, um grupo formado à volta de Luís Filipe, da Casa de Orleães. Mas o que, de facto, se escondia por de trás da designação de «Orleanistas», revelou-o o banqueiro Laffitte3 ao afirmar, imediatamente após a queda de Carlos X, o último dos Bourbons: «A partir de agora reinarão os banqueiros». Na ver­dade, a revolução de Julho nada mais foi do que a tomada do poder pela chamada aristocracia financeira, isto é, por uma só das fracções da burguesia.

Embora a princípio a grande maioria da burguesia pro­priamente industrial se visse afastada do exercício do poder, a transformação industrial processava-se a ritmo acelerado. O centro de gravidade do desenvolvimento industrial deslocou­-se, tal como em Inglaterra, da indústria têxtil para a do carvão e do ferro.

O aumento da produção industrial e o crescimento da riqueza da burguesia faziam-se na razão inversa do seu contrá­rio: agravavam-se rapidamente as condições de vida da classe operária francesa.

Os conflitos crescentes entre a burguesia e o proletariado explodiram pela primeira vez em Lyon, em 1830, quando os tecelões de seda desencadearam uma revolta sob o grito: «Viver trabalhando ou morrer lutando».

Revolta dos Canuts (trabalhadores da tecelagem de seda) - Batalha nas ruas de Lyon, Outubro de 1831
Revolta dos Canuts (trabalhadores da tecelagem de seda) - Batalha nas ruas de Lyon, Outubro de 1831

Em consequência da organização deficiente das massas que participaram nesse levantamento, a revolta foi esmagada pelas tropas do governo dez dias depois do seu início. Reaberta a luta em 1834, os ope­rários foram de novo derrotados. E tal como os levantamentos operários de Lyon, uma insurreição republicana, em 1832, e uma outra chefiada por Blanqui4 em Paris, em 1839, foram também reprimidas pelas tropas.

Auguste Blanqui
Auguste Blanqui

A derrota destes levantamentos pelos militares ao serviço da Monarquia de Julho não conseguiu, no entanto, impedir que os clubes e associações revolucionárias de orientações diversas fossem ganhando uma influência crescente no seio da classe operária e entre a pequena burguesia.

Apesar das visíveis debilidades teóricas destas associa­ções, que só foram superadas pelo socialismo científico criado e desenvolvido por Marx e Engels, era evidente que a classe operária entrava em cena cada vez mais conscientemente como força política independente.

Pelo seu lado, também as fracções burguesas da oposição reforçavam a sua resistência ao regime de Orleães.

Paris, segunda metade do século XIX - Charles Marville
Paris, segunda metade do século XIX - Charles Marville

Ascensão e queda da Segunda República

A praga da batata e as más colheitas de 1845 e 1846 aumentaram a efervescência geral do povo. A carestia de 1847 fez estalar conflitos sangrentos não só em França como no resto do Continente. Um outro acontecimento económico importante foi a eclosão de uma crise geral no comércio e na indústria em Inglaterra, que se anunciou no Outono de 1845. «Ainda os efeitos desta crise não se tinham esgotado no continente e já rebentava a revolução de Fevereiro».

Lamartine em frente à Câmara Municipal de Paris rejeita a bandeira vermelha em 25 de fevereiro de 1848 - Henri Félix Emmanuel Philippoteaux
Lamartine em frente à Câmara Municipal de Paris rejeita a bandeira vermelha em 25 de fevereiro de 1848 - Henri Félix Emmanuel Philippoteaux

O governo de Luís Filipe foi derrubado a 24 de Fevereiro de 1848, e proclamada a Segunda República francesa. O proletariado parisiense esteve à frente das massas populares que puseram um fim violento à Monarquia de Julho. Embora a princípio estivessem representadas todas as classes sociais no governo provisório constituído, logo as eleições para a Assembleia Nacional vieram demonstrar que as contradições entre elas não eram um mero equívoco. A revolução de Fevereiro de 1848 levara ao poder também as fracções burguesas até então na oposição; mas ao proletariado foi apontado o único lugar que lhe cabe no quadro estreito de uma república burguesa: o de espectador.

Adolphe Thiers
Adolphe Thiers

Assim, as concessões feitas inicialmente à classe operária - a instituição de oficinas nacionais e uma comissão operária em reunião permanente - foram-se tornando cada vez mais um perigo para a sobrevivência da república burguesa. A exclusão efectiva dos representantes operários de uma comissão executiva nomeada pela Assembleia Nacional e o encerramento definitivo das oficinas nacionais, em 21 de Junho de 1848, não deixaram ao proletariado outra alternativa senão a revolta armada, que começou em 23 de Junho. Os operários lutaram, desde o início, contra uma frente coesa de todas as restantes forças sociais. O general burguês Cavaignac 5 e Thiers 6, político e historiador monárquico, decididos a aniquilarem as forças revolucionárias, chefiaram as acções da reacção e, com o exército, acabaram por afogar em sangue o levantamento. Já depois da derrota, 3000 operários foram ainda vítimas de uma chacina brutal. Embora o proletariado tivesse de novo recuado para o segundo plano da cena revolucionária, a verdade é que estava criado o espaço de acção para a sua futura emancipação.

A derrota do proletariado foi, simultaneamente, a derrota da república burguesa. A eleição de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão I, para a Presidência da República, a 10 de Dezembro de 1848, foi uma vitória de todas as forças anti-republicanas, desde os camponeses até aos partidários da Casa de Orleães e aos Legitimistas, passando pelo exército. A restauração da monarquia era apenas uma questão de tempo.

Nas barricadas na Rue Soufflot, Paris, 25 de junho de 1848 - Horace Vernet
Nas barricadas na Rue Soufflot, Paris, 25 de junho de 1848 - Horace Vernet

O golpe de Estado de Napoleão e o Segundo Império

O primeiro passo para a eliminação do Parlamento foi dado pelo próprio Parlamento. Por medo à oposição crescente da Montagne (a fracção mais à esquerda na Assembleia Nacional, e de cunho predominantemente pequeno-burguês), a Assembleia Nacional (cerca de dois terços dos deputados eram Legitimistas ou ürleanistas) decidiu alterar a lei eleitoral em 18 de Maio de 1850, o que se traduziu na supressão do sufrágio universal. A este golpe de Estado da burguesia seguiu-se o de Bonaparte. No dia 2 de Dezembro de 1851 Bonaparte conseguiu dissolver o Parlamento, que a si próprio passara atestado legal de ser supérfluo, e assim concentrar todo o poder executivo na sua pessoa.

Um plebiscito organizado pelos bonapartistas, em 21 de Novembro de 1852, para decidir sobre o restabelecimento do Império, levou à proclamação de Luís Bonaparte como «Imperador dos Franceses» a 2 de Dezembro do mesmo ano.

«O Império, com o coup d’état por certidão de nascimento, o sufrágio universal por sanção e a espada por ceptro, declarava apoiar-se no campesinato, essa larga massa de produtores não envolvida directamente na luta do capital e do trabalho. Declarava salvar a classe operária quebrando o parlamentarismo [...]. Declarava salvar as classes possidentes mantendo a supremacia económica destas sobre a classe operária; e declarava, finalmente, unir todas as classes, fazendo reviver para todas a quimera da glória nacional. Na realidade, era a única forma de governo possível num tempo em que a burguesia já tinha perdido a faculdade de governar a nação e a classe operária ainda a não tinha adquirido».

Trabalhadores em greve abandonam a fábrica Jeanty and Prevost, La Villette, Paris, Abril 1870 - A Lancon de L'Illustration, Journal Universel
Trabalhadores em greve abandonam a fábrica Jeanty and Prevost, La Villette, Paris, Abril 1870 - A Lancon de L'Illustration, Journal Universel

À subvenção estatal da alta burguesia e às facilidades concedidas à especulação financeira e de terrenos contrapunham-se, por um lado, os crescentes encargos fiscais e as hipotecas do campesinato; por outro, a situação da classe operária, caracterizada pela total ausência de direitos e por uma exploração intensificada. Estas contradições internas são importantes para compreendermos o envolvimento prematuro do regime de Napoleão III em conflitos bélicos 7. O fracasso dispendioso da tentativa de instalar no México um Império por mercê de Napoleão provocou o reforço da oposição da burguesia industrial. Devido aos fracassos da política externa e ao crescente descontentamento das massas, os Bonapartistas viram-se obrigados a fazer concessões na política interna. E assim, no quadro das organizações operárias oficialmente toleradas (associações de produção), apesar de dependentes do governo, surgem as associações socialistas e republicanas ilegais.

A influência da Internacional no proletariado francês

Reunião da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, Londres, 28 de Setembro de 1864
Reunião da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, Londres, 28 de Setembro de 1864

A Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada sob a direcção de Karl Marx em 28 de Setembro de 1864, em Londres, a primeira ampla organização internacional do proletariado, encontrou um poderoso eco no operariado francês. Mas a fundação de secções da Internacional nos mais diversos lugares não conseguia alargar a influência da organização sobre o proletariado francês, que permanecia relativamente limitada tendo em vista as tarefas históricas que se lhe punham. É que o governo, através de perseguições e processos, conseguia desmantelar a organização nas suas partes essenciais.

Pierre-Joseph Proudhon
Pierre-Joseph Proudhon
Karl Marx
Karl Marx

Determinantes na classe operária francesa continuavam a ser os partidários de Blanqui e de Proudhon 8, assim como um jacobinismo renovado que procurava ligar as tradições da primeira Revolução Francesa com a luta contra o capital. Os blanquistas caracterizavam-se por pretenderem conquistar o poder político com a ajuda de pequenas organizações armadas e por rejeitarem toda e qualquer organização das massas revolucionárias. Os proudhonistas não tinham por objectivo o derrube do capitalismo, pois acreditavam que se derrubaria o domínio do grande capital pela realização de reformas pequeno-burguesas — por exemplo, a introdução de «bancos de troca» e de crédito sem juro. No fundo, o que faltava à classe operária francesa para ficar suficientemente armada para a batalha final contra a burguesia era a base teórica do socialismo científico.

Cerco de Paris (1870-1871) - Ernest Meissonier
Cerco de Paris (1870-1871) - Ernest Meissonier

A Guerra Franco-Prussiana

Em Maio de 1870, Napoleão III organizou um sufrágio nacional sobre a alteração de alguns artigos da Constituição. Posteriormente, este sufrágio veio a revelar-se um prelúdio para uma nova aventura bélica do regime bonapartista. Toda a imprensa europeia celebrou o resultado do sufrágio (mais ou menos 7,4 milhões de votos a favor e 1,6 milhões de votos contra) como uma vitória sobre a classe operária francesa. De facto, Napoleão III alcançara uma vitória sobre os operá rios, porque a classe operária fora a única a ver, desde o princípio, o que estava por detrás desta manobra.

A 19 de Julho de 1870 a França declarou guerra à Prússia. Motivo oficial: a recusa da Prússia em satisfazer a exigência francesa de uma compensação pela expansão da Prússia desde 1866. Mas as verdadeiras razões para a declaração da guerra estavam sobretudo nas crescentes dificuldades internas do regime bonapartista, particularmente a iminente bancarrota do Estado e o descontentamento das massas. A propósito do plano dos estrategos militares franceses de desorientarem o exército prussiano (que em tempo de paz se reduzia a um terço da sua força) com um ataque rapidamente executado Engels escreveu: «A erupção súbita e impetuosa do sentimento nacional alemão fez malograr todos esses planos. Luís Napoleão não tinha o rei Guilherme, “Annexander” 9, pela frente, mas sim a nação alemã».

No seu escrito primeira Mensagem sobre a Guerra Franco-Prussiana, Karl Marx afirmou: «Quaisquer que possam ser os incidentes da guerra Louis Bonaparte com a Prússia, o dobre de finados do segundo Império já soou em Paris». A sentença final sobre o futuro político do regime despótico de Napoleão III foi pronunciada pelo exército prussiano, que infligiu derrota sobre derrota às unidades francesas. Finalmente, depois da capitulação de Sedan, a 2 de Setembro de 1870, o próprio Bonaparte foi feito prisioneiro à frente de um grande exército.

A República de 4 de Setembro - Prólogo da Revolução Proletária

A Imperatriz Eugenia, que assumira imediatamente a regência depois da prisão de Luís Napoleão, teve de fugir logo a 4 de setembro para Inglaterra. No mesmo dia, sob a pressão das massas populares, foi proclamada a Terceira República francesa.

Formou-se ainda um «Governo de Defesa Nacional», que só muito dificilmente poderia negar o seu carácter burguês. Significativo foi que coubesse a Keratry 10, um partidário da Casa de Orleães, a comunicação oficial do governo.

A própria guerra tinha mudado de carácter após a queda do regime bonapartista. Deixara de ser uma aventura bélica de conquista de Napoleão III, por um lado, e uma guerra de defesa do povo alemão, por outro. Passara, entretanto, a ser uma guerra de rapina da burguesia alemã contra a República Francesa. Com esta mudança da situação houve também mudanças nas tarefas do proletariado. Da composição do «Governo de Defesa Nacional», constituído por Orleanistas e republicanos burgueses, deduzia-se facilmente que não se poderia esperar uma verdadeira defesa contra a camarilha militar prussiana. Quando o governo se viu perante a alternativa de armar o proletariado ou entregar a república francesa aos generais, optou pela segunda hipótese, transformando-se num «Governo de Traição Nacional». Já antes Marx e Engels tinham analisado o carácter contra-revolucionário deste governo e concluído que só a classe operária poderia assumir as tarefas de defesa nacional.

Depois do início do cerco de Paris pelos alemães, a 19 de Dezembro, os operários franceses conseguiram armar 200 novos batalhões da Guarda Nacional, não obstante a resistência do governo. Mas o comando supremo da Guarda Nacional estava ainda na mão do general reaccionário Trochu 11.

O medo que a burguesia tinha do seu povo era tão grande que o comando supremo da Guarda Nacional levou a cabo operações militares propositadamente planeadas para fracassarem com grandes perdas. O objectivo desta «defesa» era a sangria das massas revolucionárias, especialmente do proletariado armado da Guarda Nacional.

Quando, por fim, o «Governo de Defesa Nacional» começou a entabular abertamente com Bismarck as conversações sobre a capitulação os blanquistas organizaram duas tentativas de revolta que se malograram por insuficiente base de massas.

Giuseppe Garibaldi
Giuseppe Garibaldi
Gustave Flourens
Gustave Flourens

Depois da capitulação, a 28 de Fevereiro de 1871, e de ter sido assinado o armistício, a maior parte do exército francês foi desarmado. O acordo do armistício previa eleições para a Assembleia Nacional. Nessas eleições formou-se uma maioria monárquica. A Thiers, uma das figuras mais infames da política francesa do século xix, foi confiada a chefia do governo recentemente formado.

O primeiro acto oficial deste governo foi a assinatura de um acordo de paz provisório, a 26 de Fevereiro, no qual foram fixadas as exigências rapaces da burguesia alemã: separação da Alsácia-Lorena do território francês e o pagamento de uma pesada indemnização de guerra. A burguesia francesa tinha considerado mais vantajoso perder a Alsácia-Lorena, que representava um importante potencial industrial, do que armar o proletariado parisiense — o que teria posto em perigo o seu próprio domínio. Entretanto, a situação interna agravou-se a olhos vistos quando o governo ordenou a colecta das rendas atrasadas e o pagamento imediato das letras expiradas. O resultado desta medida foi, por um lado, a ruína de inúmeros comerciantes e artesãos e, por outro, um enorme aumento do desemprego. Na Guarda Nacional 12, todavia, ninguém estava disposto a aceitar a traição nacional nem a permitir que se atirasse as dívidas de guerra para cima do proletariado e da pequena burguesia. A resposta imediata foi a formação de um comité central, no qual estava representada a esmagadora maioria dos batalhões da Guarda. Com a nomeação de um general reaccionário para seu comandante supremo, o governo procurou recuperar o domínio perdido sobre a Guarda. Mas as massas viram nesta tentativa do governo uma manobra contra-revolucionária. Em lugar desse general, as massas elegeram, para seu novo comandante, o italiano Giuseppe Garibaldi 13, um combatente pela liberdade. A proibição da imprensa democrática e a declaração de penas de morte sobre Blanqui e Flourens 14, chefes das revoltas de 31 de Outubro de 1870 e de 22 de Janeiro de 1871, constituíram uma nova tentativa do governo para quebrar o poder das massas revolucionárias. Mas também estas represálias e tentativas de intimidação falharam o alvo. E assim a reacção deitou mão do seu último recurso: desarmar a Guarda Nacional.

Cerco de Paris (1870-1871) - Ernest Meissonier
O apelo (Maio 1871) - André Devambez

A Revolução de 18 de Março de 1871 - A primeira revolução proletária da História

Paris em armas era o único obstáculo sério no caminho da conspiração contra-revolucionária. Paris tinha, pois, de ser desarmada.

O próprio Thiers deu a ordem de, com a ajuda de antigos polícias bonapartistas e tropas do governo, se confiscar a artilharia da Guarda Nacional. Quando, na noite de 18 de Março de 1871, as tropas invadiram a cidade, depararam com forte resistência da Guarda Nacional. Além disso, grande parte das tropas do governo irmanou-se com o povo de Paris. Depois de fracassada esta acção, o governo e o clero fugiram para Versailles. Entretanto, a resposta da Guarda Nacional limitou-se à ocupação de todos os edifícios do governo e da administração. «A gloriosa Revolução dos operários do 18 de Março, incontestavelmente, tomou posse de Paris. O Comité Central foi o seu governo provisório».

Numa proclamação do comité central da Guarda Nacional, de 18 de Março de 1871, diz-se: «No meio das derrotas e da traição das classes dominantes, os proletários de Paris compreenderam que chegou a hora em que têm de salvar a situação, tomando nas suas mãos a direcção dos negócios públicos. [...] Compreenderam que é seu dever supremo e seu direito absoluto tornarem-se senhores do seu próprio destino e tomarem o poder do governo».

Logo no dia seguinte o comité central fixou um prazo para a eleição do Conselho da Comunidade de Paris, sublinhando assim o seu próprio carácter provisório. O comité central mostrou ser um verdadeiro governo popular com a série de medidas que tomou. Assim, por exemplo, numa resolução de 20 de Março de 1871, cortaram-se todos os ordenados dos funcionários de Estado. A soma de um milhão de francos obtida desta forma foi aplicada em 22 áreas da cidade para atenuar a miséria de sectores da população. O comité central agiu de igual modo ao abolir as rendas em atraso que não excedessem 250 francos e coincidentes com o período do cerco e, aos pequenos industriais, prolongou por seis meses o prazo de pagamento de juros de hipotecas e de letras expiradas.

Proclamação da Comuna em frente ao Hôtel de Ville de Paris (Câmara Municipal), 18 Março 1871
Proclamação da Comuna em frente ao Hôtel de Ville de Paris (Câmara Municipal), 18 Março 1871

A Proclamação da Comuna

O comité central teve de alterar a data das eleições, primeiramente marcadas para 22 de Março de 1871, porque alguns presidentes de câmaras dos bairros burgueses sabotaram os preparativos para as eleições. Graças à pressão decidida das massas populares, as eleições realizaram-se finalmente a 26 de Março de 1871. Dos 84 delegados eleitos, 68 pertenciam a diferentes grupos de esquerda; 16, à burguesia liberal. Dezassete delegados eram membros da Associação Internacional dos Trabalhadores e, entre estes, mais de dois terços eram partidários de Proudhon. A maioria, porém, era formada por partidários de Blanqui, os quais, embora se distinguissem pela sua coragem revolucionária, não eram capazes de uma verdadeira política proletária. Isto era, antes de mais, uma consequência da sua recusa da teoria marxista: a teoria do socialismo científico.

Celebração da eleição da Comuna, 28 Março 1871
Celebração da eleição da Comuna, 28 Março 1871

A 18 de Março de 1871 foi constituída e proclamada a Comuna de Paris, o primeiro Estado proletário do mundo.

Arthur Arnould, um membro da comuna, descreveu assim este acontecimento histórico: «Quando o comité central anunciou os nomes dos membros eleitos da Comuna; quando os canhões, de repente, dispararam as suas salvas, fazendo estremecer toda a cidade, saiu de 100 000 bocas um tal grito de júbilo, uma adesão tão unânime e tão notória à República e à Comuna, que ninguém que tenha participado nesta festa a poderá alguma vez esquecer, mesmo que vivesse séculos».

Logo a 1 de Abril de 1871, pouco depois da Comuna ter reunido, os 16 deputados da burguesia abandonaram o Conselho. Os combates com as tropas do governo de Versailles, iniciados a 2 de Abril de 1871, originaram imediatamente tensões entre as fracções da Comuna. Quando, depois de uma surtida fracassada das tropas da Guarda Nacional, Flourens, membro da Comuna, o general Duval 15 e dois comandantes de batalhão foram executados, sem qualquer julgamento prévio, pelas tropas regimentais, quatro membros republicanos da Comuna abandonaram o Conselho.

As medidas políticas, económicas e sociais da Comuna

A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo. «Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento. O mesmo aconteceu com os funcionários de todos os outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna para baixo, o serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operários. [...]

Considerando nossa fraqueza os senhores forjaram
Suas leis, para nos escravizarem.
As leis não mais serão respeitadas
Considerando que não queremos mais ser escravos.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria do que a morte.

Consideramos que ficaremos famintos
Se suportarmos que continuem nos roubando
Queremos deixar bem claro que são apenas vidraças
Que nos separam deste bom pão que nos falta.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e canhões
Nós decidimos, de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

Considerando que existem grandes mansões
Enquanto os senhores nos deixam sem teto
Nós decidimos: agora nelas nos instalaremos
Porque em nossos buracos não temos mais condições de ficar.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e canhões
Nós decidimos, de agora em diante
Temeremos mais a miséria do que a morte.

Considerando que está sobrando carvão
Enquanto nós gelamos de frio por falta de carvão
Nós decidimos que vamos toma-lo
Considerando que ele nos aquecerá
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e canhões
Nós decidimos, de agora em diante
Temeremos mais a miséria do que a morte.

Considerando que para os senhores não é possível
Nos pagarem um salário justo
Tomaremos nós mesmos as fábricas
Considerando que sem os senhores, tudo será melhor para nós.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

Considerando que o que o governo nos promete
Está muito longe de nos inspirar confiança
Nós decidimos tomar o poder
Para podermos levar uma vida melhor.
Considerando: vocês escutam os canhões
Outra linguagem não conseguem compreender
Deveremos então, sim, isso valerá a pena
Apontar os canhões contra os senhores!

OS DIAS DA COMUNA – Bertold Brecht

Uma vez desembaraçada do exército permanente e da polícia, elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava desejosa de quebrar a força espiritual de repressão, o “poder dos curas”, pelo desmantelamento e expropriação de todas as igrejas enquanto corpos possidentes. [...] Todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo desembaraçadas de toda a interferência de Igreja e Estado».

Também os juízes perderam a sua imunidade e foram colocados sob o controlo do povo, isto é, perderam os seus privilégios e passaram a ser destituíveis a todo o momento. Noutros decretos, as administrações e fábricas ficaram proibidas de proceder a quaisquer descontos dos salários e ordenados, prática comum nos anteriores governos burgueses que servira sempre para mascarar reduções de salários. Numa resolução dos membros da Comuna, de 20 de Abril de 1871, proibiu-se o trabalho nocturno dos oficiais padeiros.

A Comuna criou e pôs a trabalhar uma comissão para as fábricas que tinham sido abandonadas e paralisadas pelos capitalistas fugidos para Versailles e outros lados. Esta comissão tinha de elaborar um plano para pôr essas fábricas em funcionamento por meio da «associação cooperativa dos operários». Por uma outra resolução da Comuna foram confiscadas as casas não habitadas e postas a disposição de habitantes sem tecto.

A 5 de Abril de 1871, a Comuna decidiu proceder à prisão de reféns, para evitar as execuções diárias de combatentes da Comuna capturados pelas tropas de Versailles. Este decreto, contudo, só parcialmente foi executado. Mais valor simbólico tiveram a queima pública da guilhotina e a destruição da coluna da vitória na Praça Vendôme, o símbolo do chauvinismo e do militarismo.

Uma das medidas mais notáveis da Comuna foi a concretização da igualdade de direitos da mulher numa dimensão até aí desconhecida na história. Concedeu-se a cada mulher legal ou «ilegítima» de um combatente caído uma pensão de 600 francos. Do mesmo modo se atribuiu uma pensão a cada filho das viúvas, fosse legítimo ou ilegítimo. Esta igualdade real, concedida às mulheres durante os dias da Comuna, explica a grande participação das mulheres no trabalho e na defesa da Comuna. Muitas mulheres tinham reconhecido desde o início a importância da ditadura do proletariado para a sua emancipação política e social.

A Comuna de Paris - Declaração ao Povo Francês, 19 de abril de 1871
A Comuna de Paris - Declaração ao Povo Francês, 19 de abril de 1871

Os preparativos da contra-revolução para a derrota da Comuna

A primeira tentativa da conspiração dos escravistas para subjugar Paris trazendo os prussianos a ocupá-la foi frustrada pela recusa de Bismarck. A segunda tentativa, a do 18 de Março, terminou na derrota do exército e na fuga para Versalhes do governo, que ordenou a toda a administração que dispersasse e fosse atrás dele. Graças à aparência de negociações de paz com Paris, Thiers encontrou tempo para preparar a guerra contra ela.

Encontro entre Otto Von Bismarck e os delegados franceses Adolphe Thiers e Jules Favre, Versalhes, Maio 1871
Encontro entre Otto Von Bismarck e os delegados franceses Adolphe Thiers e Jules Favre, Versalhes, Maio 1871
Forte d'Aubervilliers - Canhões do exército prussiano apontados a Paris no cerco à Comuna de Paris
Forte d'Aubervilliers - Canhões do exército prussiano apontados a Paris no cerco à Comuna
August Bebel
August Bebel
Wilhelm Liebknecht
Wilhelm Liebknecht

Thiers pretendia atacar a Comuna num momento que a vitória lhe fosse absolutamente certa. Mas depois da fuga do governo traidor para Versailles um tal projecto era inviável, porque, por um lado, a administração da cidade estava totalmente desorganizada e, por outro, o exército se encontrava não só num estado de absoluta resignação mas também numericamente muito fraco. «Entretanto, as suas relações com as províncias tornavam-se cada vez mais difíceis. Não veio uma só mensagem de aprovação para animar Thiers e os seus Rurais». Consciente da dificuldade da sua situação, Thiers adoptou por isso mesmo, desde o princípio, uma táctica dupla para poder virar a situação a seu favor.

Por um lado, colaborava com a força prussiana de ocupação, sobretudo para conseguir vantagens militares sobre os proletários de Paris. Por outro, representava para o mundo uma comédia de conciliação que, como Marx observou, «havia de servir mais do que um propósito. Era para enganar as províncias, para seduzir os elementos da classe média em Paris e, acima de tudo, para proporcionar aos pretensos republicanos na Assembleia Nacional a oportunidade de esconder a sua traição para com Paris atrás da sua fé em Thiers». Para poder realizar o projecto contra-revolucionário da reacção contra o proletariado de Paris, Thiers enviou Jules Favre 16 e Pouyer-Quertier 17 a Frankfurt como plenipotenciários para o acordo definitivo de paz com a Prússia. De Bismarck receberam autorização para utilizar na luta contra Paris os prisioneiros do exército bonapartista, e ainda a promessa de apoio directo de tropas prussianas. Além disso, o pagamento da primeira prestação da indemnização de guerra foi suspensa até à derrota de Paris. Desta forma se unia a burguesia francesa com a alemã contra o proletariado revolucionário. A cumplicidade da reacção alemã e francesa opuseram August Bebel 18 e Wilhelm Liebknecht 19 a atitude internacionalista do proletariado alemão. Sublinharam a sua solidariedade com o proletariado parisiense e condenaram severamente tanto a anexação da Alsácia-Lorena como o apoio contra-revolucionário à reacção francesa.

Barricadas nas ruas de Paris para defender a Comuna
Barricadas nas ruas de Paris para defender a Comuna

O decorrer das lutas

As medidas da Comuna para a edificação de uma nova ordem social, já prejudicadas pelo facto de Paris ser uma cidade sitiada, foram ainda mais fortemente limitadas em consequência da pressão constante exercida pelas tropas de Versailles.

Depois dos primeiros combates a 2 de Abril de 1871, as tropas de Versailles conseguiram apoderar-se de uma passagem sobre o Sena, junto de Neuilly. «Paris foi continuamente bombardeada, precisamente por aquela gente que tinha estigmatizado como um sacrilégio o bombardeamento da mesma cidade pelos prussianos».

Barricada na Boulevard Puebla
Barricadas nas ruas de Paris para defender a Comuna
Barricadas nas ruas de Paris para defender a Comuna
Barricadas nas ruas de Paris para defender a Comuna
Artilharia da Guarda Nacional no Monte Montmartre
Parque de artilharia da Guarda Nacional no Monte Montmartre, 18 Março 1871.

No entanto, o fogo constante da artilharia sobre a cidade não conseguia modificar a situação a favor das tropas de Versailles, e muito menos quebrar o moral da população parisiense na sua justa luta. Uma tentativa das tropas governamentais de penetrarem no sul de Paris, a 12 de Abril, foi rechaçada pelo general Eudes 20 e as suas tropas. Esta correlação de forças, até então praticamente equilibrada, só se alterou quando os soldados franceses presos na Alemanha começaram a regressar a França e a engrossar as fileiras do exército de Versailles. O comportamento de Thiers reflectiu fielmente esta alteração de forças. Recusou a oferta da Comuna para trocar Blanqui pelo bispo de Paris, preso como refém, como todo o seu séquito clerical. A sua linguagem, até então ambígua, passou a ameaças claras e brutais contra os revolucionários de Paris. A moção de um deputado da Assembleia Nacional, para se pôr fim ao combate contra a Comuna, foi recusada a 20 de Abril de 1871.

A camarilha de Versailles mostrou finalmente o seu verdadeiro rosto a 3 de Maio de 1871, quando começou o assassínio em massa dos combatentes da Comuna capturados. Thiers, que com um descaramento inigualável difamara os membros da Comuna como «ralé, ladrões e assassinos», louvou o seu exército como «a maravilha do mundo e o mais belo exército que a França jamais teve» — um exército culpado de assassínio permanente.

A barricada da Praça Branca, defendida por mulheres - Hector Moloch
A barricada da Praça Branca, defendida por mulheres - Hector Moloch

Após a queda de alguns fortes, as tropas de Versailles conseguiram entrar na cidade a 21 de Maio de 1871. No entanto, os combatentes da Comuna não tiveram apenas que enfrentar as tropas invasoras, mas também os agentes da contra-revolução estrangeira. um tal papel coube a Washburne 21, o embaixador americano. Através do seu secretário fez chegar à Comuna uma pretensa oferta de negociações da parte da Prússia. Pelo contrário, entre o círculo dos seus subordinados afirmou: «Todos os que pertencem à Comuna e todos os seus simpatizantes morrerão».

Só dois dias depois, a 26 de Maio de 1871, se tornou evidente a manobra do embaixador dos Estados unidos, quando o negociador da Comuna não foi recebido pelas autoridades prussianas. Mas esta manobra de diversão provocou uma desorientação de dois dias entre as forças revolucionárias de defesa.

Uma rua em Paris em Maio de 1871 - Maximilien Luce
Uma rua em Paris em Maio de 1871 - Maximilien Luce
A barricada, Rua de Mortellerie, Junho de 1848 - Jean Louis Ernest Meissonnier (1849)
A barricada, Rua de Mortellerie, Junho de 1848 - Jean Louis Ernest Meissonnier (1849)

Com o combate à volta de Montmartre, a 23 de Maio, começou um dos capítulos mais escuros da história francesa, escrito pela soldadesca de Thiers com o sangue dos combatentes da Comuna. MacMahon 22, comandante das tropas de Versailles, mandou avançar dois corpos completos, isto é, 200 000 homens (!), sobre a posição dos combatentes da Comuna, cujo número não chegava a 200. Depois deste superpotencial ter conseguido, com apoio da artilharia, tomar a posição, todos os sobreviventes, incluindo mulheres e crianças, foram fuzilados. Mas isto era apenas o começo das carnificinas de Paris. Após a queda de cada barricada, havia sempre um banho de sangue, bem mais cruel que o assassínio em massa após a derrota da revolta de Junho de 1848. As chamadas revistas a casas particulares, executadas pelas tropas de Versailles, acabavam sempre em assassínios sangrentos e selvagens. «Quando um dos de Versailles fita alguém, já se sabe que é uma pessoa morta. Quando passa revista a uma casa, passa todos pelas armas. [...] O Paris dos de Versailles já não tem um aspecto civilizado. o medo, a ira, a estupidez selvagem e animal sufocam todo e qualquer sentimento humano. [...] A vida de uma cidadão não vale um pataco. Por causa de uma exclamação, de uma palavra, é-se preso e fuzilado».

A 25 de Maio de 1871 restavam só dois bairros de Paris completamente controlados pela Comuna. Enquanto homens e mulheres defendiam abnegadamente os seus últimos redutos contra as tropas do governo, a maior parte destas ocupava-se apenas a fuzilar prisioneiros. A partir da tarde de 27 de Maio de 1871, 5000 soldados das tropas de Versailles sitiaram o cemitério Père-Lachaise, último refúgio dos 200 combatentes que restavam à Comuna. Pela última vez se ergueram os heróis do proletariado sob a bandeira vermelha, até encontrarem todos a morte em desesperada luta de homem contra homem. No dia seguinte, a 28 de Maio de 1871, MacMahon anunciava o fim das acções de luta.

Depois da luta

O assassínio em massa praticado contra a população de Paris continuou sem diminuir de violência, quer ela tivesse participado activamente nas fileiras da Comuna ou não. Trinta mil habitantes foram assassinados pela soldadesca enfurecida e à solta, que o «partido da ordem», regressado ao poder, ousava classificar como «bravos soldados». Outros tantos, pelo menos, foram condenadas a penas de cadeia e deportação.

Corpos dos combatentes da Comuna dispostos em caixões, assassinados pelo exército de Versalhes em maio de 1871 - André-Adolphe Eugène
Corpos dos combatentes da Comuna dispostos em caixões, assassinados pelo exército de Versalhes em maio de 1871 - André-Adolphe Eugène

«Terminada a luta, o exército transformou-se num monstruoso pelotão de fuzilamento. [...] Havia tantas vítimas que os soldados cansados já tinham de encostar as carabinas aos condenados. No terraço havia pedaços de cérebros humanos por todo o lado. Os assassinos chafurdavam num pântano de sangue».

Membros da Comuna em frente ao Conselho de Guerra em Versalhes, 2 de setembro de 1871
Membros da Comuna em frente ao Conselho de Guerra em Versalhes, Setembro 1871

Mesmo anos depois dos acontecimentos, a justiça francesa de classe ainda pronunciava sentenças de morte contra membros da Comuna. Em Junho de 1871, o jornal Tagwacht (Guarda do Dia), o órgão da Internacional em Berna, escrevia: «A forma presente da Revolução, a Comuna, cai como um mártir, mas os burgueses não poderão matar a ideia revolucionária. A silhueta moribunda da Comuna inspira medo e horror apenas aos ignorantes. O espírito revolucionário não pode ser morto. Troça da ira do tirano. E se o exército abastardado triunfa agora sobre os cadáveres dos republicanos sociais e das ruínas fumegantes de Paris, para dar um pouco de sossego à antiga sociedade amedrontada, isto não passa de um breve adiamento concedido à opressão e à imoralidade. O que agora acontece é apenas um prenúncio das tempestades que o futuro traz no seu seio. [...] A burguesia regala-se agora em loucos bacanais com a derrota momentânea da Comuna, até que os trovões de uma nova e mais poderosa revolução a afundem na noite eterna».

Dirigentes da Comuna

Apesar da divisão da Comuna de Paris em proudhonistas e blanquistas, e dos erros práticos resultantes das debilidades teóricas de ambas as correntes, alguns combatentes, que defenderam energicamente e com uma capacidade inegável os interesses das classes trabalhadoras, merecem uma menção especial.

Eugene Varlin 23, encadernador e membro da Internacional, era já durante o Segundo Império um dos melhores dirigentes do movimento socialista. Durante o tempo da Comuna foi membro da comissão militar e das finanças. Foi assassinado com bestialidade pelas tropas de Versailles, a 28 de Maio de 1871, quando combatia na primeira linha dos defensores da paris revolucionária.

Eugene Pettier 24, tal como Varlin membro da secção parisiense da Internacional, lutara já nas barricadas da revolução de 1848. Trabalhou activamente, como membro da Comuna, na comissão para ajuda à população pobre e defendeu a Comuna contra a contra-revolução até à derrota final. Na fuga para a Bélgica compôs o texto de A Internacional, a canção de combate do proletariado mundial.

Um dos melhores dirigentes da Comuna foi Frankel 25, germano-húngaro, que esteve sempre em íntimo contacto com Karl Marx. Teve um papel importantíssimo na organização das associações sindicais. Apesar de gravíssimos ferimentos, recebidos na defesa de Paris, conseguiu fugir para o estrangeiro. A reacção condenou-o à morte a revelia.

O nome do revolucionário polaco Jaroslav Dombrowski 26 também esta intimamente ligado a Comuna de Paris. Ainda muito novo participou na luta contra o tsarismo. Como verdadeiro internacionalista que era, participou na luta de Garibaldi pela libertação da Itália. Durante os dias da Comuna foi nomeado, primeiramente general da Guarda Nacional, depois comandante supremo de todas as forças armadas revolucionárias da defesa de Paris. Temos ainda que mencionar a grande revolucionária russa Elisaveta Dmitrieva, que de Marx recebeu a tarefa de participar na luta do proletariado de Paris. Sob a sua direcção constituíram por toda a cidade de Paris comités de mulheres, a quem coube uma importante tarefa na construção do Estado proletário. À frente de um batalhão feminino, lutou heroicamente contra os carrascos da Comuna até à derrota final.

Eugene Varlin
Eugene Varlin
Eugène Pottier
Eugène Pottier
Leó Frankel
Leó Frankel
Jaroslaw Dombrowski
Jaroslaw Dombrowski
Elisabeth Dmitrieff
Elisabeth Dmitrieff

Crítica à Comuna

Os membros da Comuna «dividiam-se numa maioria, os blanquistas, [...] e numa minoria: os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, predominantemente seguidores da escola socialista de Proudhon. [...] só uns poucos (blanquistas) tinham chegado a uma maior clareza de princípios, através de Vaillant 27, que conhecia o socialismo científico alemão. Assim se compreende que, no aspecto económico, não tenha sido feito muito daquilo que, segundo a nossa concepção de hoje, a Comuna tinha de ter feito. O mais difícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito com que se ficou reverenciosamente parado às portas do Banco de França. Foi também um grave erro político. O Banco nas mãos da Comuna — isso valia mais do que dez mil reféns. Significava a pressão de toda a burguesia francesa sobre o governo de Versalhes, no interesse da paz com a Comuna».

A tomada do Banco de França pela Comuna teria, na verdade, significado não só uma fiança contra o governo de Versailles, mas além disso ainda uma fonte de auxílio da Revolução. A Comuna deixou-se arrastar pela ilusão de que o facto de não tocar no banco seria uma garantia para a neutralidade de uma parte da burguesia. O facto de o banco ter posto à disposição da contra-revolução 257 milhões de francos, contra os 16 milhões que a Comuna recebeu, prova quão errónea era essa ideia. sobre este erro, observou Lénine no seu escrito «Os Ensinamentos da Comuna»: «O proletariado parou a meio caminho: em vez de proceder à “expropriação dos expropriadores”, deixou-se levar por sonhos sobre o estabelecimento de uma justiça suprema. [...] Não se apoderou de instituições como os bancos; as teorias proudhonistas da “troca justa” dominavam ainda entre os socialistas».

Numa carta de 18 de Abril de 1871, Marx escreveu ao seu amigo Kugelmann: «Quando Vinoy 28, primeiro, e em seguida a parte reaccionária da própria Guarda Nacional abandonaram o campo, urgia marchar imediatamente sobre Versailles. Deixou-se fugir o momento exacto por escrúpulos de consciência. Não se queria iniciar a guerra civil, como se Thiers, o (anão mau), não tivesse já aberto a guerra civil ao tentar desarmar Paris!»

Nessa mesma carta Marx diz que o comité central entregara o poder cedo de mais. A entrega do poder ao Conselho da Comuna, ao fim de apenas dez dias de domínio proletário, era compreensível à luz da situação concreta de então. É que parte das organizações operárias ainda hesitava em apoiar o comité central. Mas a ditadura do proletariado ainda não estava, nessa altura, tão consolidada que se justificasse anunciar eleições.

A Comuna não reconhecera, senão insuficientemente, a importância da aliança com os camponeses. Essa aliança teria sido de grande significado para a consolidação do domínio proletário. Apesar disso, houve, na Comuna, começos de realização desta aliança. Um manifesto redigido com este fim, onde se exprimiam os interesses comuns da classe operária e dos camponeses, fora enviada para a província por meio de balões, uma vez que todas as ligações terrestres estavam bloqueadas por tropas prussianas e de Versailles. A concretização da aliança entre todas as forças anticapitalistas da nação fracassou não só pelas ligações interrompidas, mas sobretudo pela falta de um partido revolucionário uno. A contra-revolução vira esta falta desde o princípio. Por isso conseguiu, durante o mês de Abril, separar os republicanos pequeno-burgueses da Comuna e atraí-los para o seu lado.

A Comuna de Paris - o seu significado para o presente

Alguns meses antes da proclamação da Comuna, em Outubro de 1870, Marx avisara os operários de Paris do perigo de derrubarem o governo. A sua apreciação pessimista da situação confirmou-se, como se sabe. No entanto, depois da Revolução de Março de 1871, ele próprio pertenceu ao número dos partidários mais entusiastas da Comuna. Não se tratava aqui de uma solidariedade irreflectida. É que Marx reconhecera no Estado dos operários parisienses um novo tipo de Estado.

No momento em que o poder passou para a classe operária, nasceu um tipo completamente novo de Estado. Marx e Engels, autores do Manifesto do Partido Comunista, escrito em 1848, disseram no prefácio à edição de 1872 do Manifesto: «A Comuna, nomeadamente, forneceu a prova de que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado [que encontra] montada e pô-la em movimento para os seus objectivos próprios”». Ainda durante a Comuna de Paris, a 12 de Abril de 1871, Marx escreveu a Kugelmann: «Se procurares no último capítulo do meu 18 do Brumário, verás que digo ser a próxima tentativa da revolução francesa, não, como até aqui, a passagem da máquina burocrático-militar de umas mãos para outras, mas a sua destruição. Esta é a condição prévia de toda a verdadeira revolução popular no Continente. Esta é também a tentativa dos nossos heróicos camaradas parisienses do Partido». Lénine observou a esse respeito: «No movimento revolucionário das massas, se bem que ele não tivesse atingido o seu fim, (Marx) via uma experiência história com uma importância imensa, um certo passo em frente da revolução proletária mundial, um passo prático mais importante do que centenas de programas e de raciocínios».

Marx e Engels generalizaram as experiências da Comuna, e com essa generalização o movimento proletário de todo o mundo deu um poderoso passo em frente. Particularmente importante foi o reconhecimento de que a forma de Estado do domínio proletário é a ditadura do proletariado. Precisamente esta designação - «ditadura do proletariado» — serve a crítica burguesa para afrontar o pretenso carácter totalitário do socialismo e do comunismo. No entanto, ao fazê-lo, essa crítica esvazia este conceito de todo o seu verdadeiro conteúdo e explora sub-repticiamente a experiência que o povo tem das ditaduras sangrentas e terroristas do capital. No seu livro O Estado e a Revolução, Lénine demonstra que esta crítica, afinal, não tem nada a ver com o assunto em si. Demonstra que a ditadura do proletariado é uma democracia muito mais completa do que qualquer democracia burguesa que se possa imaginar. Escreveu Lénine, referindo-se à Comuna: «a democracia, realizada de modo tão completo e consequente quanto é concebível, converte-se de democracia burguesa em proletária, de Estado (=força especial para a repressão de uma classe determinada) em qualquer coisa que já não é, para falar propriamente, Estado.

«Reprimir a burguesia e a sua resistência continua a ser necessário. Para a Comuna isto foi especialmente necessário, e uma das causas da sua derrota reside em que ela não o fez com suficiente decisão. Mas o órgão de repressão é aqui já a maioria da população e não a minoria, como tinha sido sempre tanto na escravatura, como na servidão, como na escravatura assalariada». Lénine demonstra neste livro que só se pode falar de democracia na verdadeira acepção da palavra, na acepção do domínio popular, quando, como disse Marx, «o proletariado organizado como classe dominante» detém o poder.

Ao reconhecimento de que a Comuna representava uma nova qualidade do Estado, Marx ligou, simultaneamente, uma crítica radical ao parlamentarismo burguês, demonstrando a superioridade da representação popular no Estado proletário. Marx escreveu: Em vez de decidir uma vez cada três ou seis anos que membro da classe governante havia de representar mal o povo no Parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo, constituído em Comunas, assim como o sufrágio individual serve qualquer outro patrão em busca de operários e administradores para o seu negócio».

Notas

(1) Os Legitimistas eram partidários da casa real «legítima», a Casa de Bourbon. Eram sobretudo latifundiários. Voltar

(2) Os partidários de Luís Filipe, duque de Orleães e mais tarde rei de França, eram designados como orleanistas. Eram banqueiros, reis da Bolsa e dos caminhos-de-ferro e proprietários de minas. Voltar

(3) Jacques Lafitte (1767-1844), banqueiro e político francês; orleanista; representante da aristocracia financeira francesa. Voltar

(4) Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), revolucionário francês; comunista utópico; organizador de várias associações secretas e insurreições revolucionárias; passou 36 anos na prisão. Voltar

(5) Louis-Eugene Cavaignac (1802-1857), general e político francês; republicano burguês; foi um dos repressores da revolta de Junho de 1848; foi primeiro-ministro entre Junho e Dezembro de 1848. Voltar

(6) Louis-Adolphe Thiers (1797-1877), historiador e homem de Estado francês; primeiro-ministro em 1836 e 1840; «carrasco da Comuna de Paris»; presidente da República de 1871 a 1873. Voltar

(7) 1854-1856: participação na Guerra da Crimeia contra a Rússia; 1858: guerra contra a Áustria pela unificação da Itália; 1860: guerra colonial contra a China, ao lado da Inglaterra; 1861: expedição militar na Síria; 1861-1867: aventura mexicana. Voltar

(8) Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), publicista francês; sociólogo e economista; ideólogo da pequena burguesia; um dos fundadores do anarquismo. Voltar

(9) Ou, em português, Anexandre. Combinação irónica, usada por Marx e Engels a propósito de Guilherme I da Prússia, das palavras anexação (Annexion) e Alexandre (o Grande). Voltar

(10) Emile Keratry (1832-1905), conde; político francês reaccionário; orleanista; de Setembro a Outubro de 1870, Prefeito da Polícia de Paris; contribuiu em grande escala para a derrota da Comuna em Toulouse. Voltar

(11) Louis-Jules Trochu (1815-1896), general e político francês; orleanista. Voltar

(12) Depois do desarmamento quase total do exército regular, a Guarda Nacional tornou-se um factor militar e, sobretudo, político determinante em França, nos anos 1870-1871. Particularmente os 200 novos batalhões, graças ao seu carácter proletário, transformaram a função da Guarda: de instrumento de opressão da burguesia, passou a ser o órgão de execução da vontade do povo. Voltar

(13) Giuseppe Garibaldi (1807-1882), revolucionário italiano; dirigente do movimento de libertação nacional da Itália; durante a Guerra Franco-Prussiana, comandou o Exército dos Vosges. formado pela Guarda Nacional e por voluntários estrangeiros. Voltar

(14) Gustave Flourens (1838-1871), investigador naturalista francês; revolucionário; blanquista; membro da Comuna; assassinado pelas tropas contra-revolucionárias de Thiers. Voltar

(15) Emile-Victor Duval (1818-1871), operário; membro da Associação Internacional dos Trabalhadores; membro da Comuna; general da Guarda Nacional. Voltar

(16) Claude-Gabriel-Jules Favre (1809-1880), advogado e político francês; republicano burguês; ministro dos Negócios Estrangeiros do chamado «Governo de Defesa Nacional»; «carrasco da Comuna». Voltar

(17) Augustin-Thomas Pouyer-Quertier (1820-1891), fabricante e político; ministro das Finanças de 1871 a 1872. Voltar

(18) August Bebel (1840-1913), marxista; co-fundador e um dos mais importantes dirigentes da social-democracia alemã; amigo e discípulo de Marx e Engels. Voltar

(19) Wilhelm Liebknecht (1826-1900), marxista; co-fundador e um dos mais importantes dirigentes da social-democracia alemã; membro da Associação Internacional dos Trabalhadores; amigo de Marx e Engels. Voltar

(20) Emile Eudes (1843-1888), revolucionário; blanquista; membro e general da Comuna; emigrou para a Suíça, mais tarde para Inglaterra; condenado à morte à revelia. Voltar

(21) Elihu Benjamin Washburne (1816-1887), político e diplomata americano; membro do Partido Republicano; entre 1869 e 1871, embaixador americano em Paris; inimigo da Comuna. Voltar

(22) Marie-Edme-Patrice-Maurice MacMahon (1808-1893), conde; duque de Magenta; militar e político reaccionário; bonapartista; comandante supremo do Exército de Versailles; «carrasco da Comuna de Paris»; presidente da Terceira República Voltar

(23) Louis-Eugene Varlin (1839-1871), encadernador; proudhonista de esquerda; dirigente da secção de Paris da Internacional; membro do comité central da Guarda Nacional e da Comuna de Paris; fuzilado por soldados da contra-revolução, a 28 de Maio de 1871. Voltar

(24) Eugene Pottier (1816-1887), membro da secção de Paris da Internacional; membro da Comuna. Voltar

(25) Leo Frankel (1844-1896), ourives; representante do movimento operário húngaro internacional; membro da Comuna. Voltar

(26) Jaroslav Dombrowski (1836-1871), democrata revolucionário polaco; a partir de Maio de 1871, comandante supremo das Forças Armadas da Comuna de Paris. Voltar

(27) Edouard Vaillant (1840-1915), socialista; blanquista; membro da Comuna e do Conselho Geral da Internacional; co-fundador do Partido Socialista de França. Voltar

(28) Joseph Vinoy (1800-1880), general francês; bonapartista; participou na guerra Franco-Prussiana; «carrasco da Comuna». Voltar