Intervenção de

Colheita e transplante de órgãos, tecidos e células de origem humana - Interv.de Odete Santos na AR

Transposição,
parcial, para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2004/23/CE, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, alterando a
Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, relativa à colheita e transplante de
órgãos, tecidos e células de origem humana

  

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Saúde,

 

Vou fazer-lhe dois pedidos de esclarecimento.

 

V. Ex.ª referiu-se — e é natural que em relação a essa questão o País acompanhe o que acontece noutros países — ao decréscimo de dadores decorrente de morte ou, nalguns casos, a estagnação.

 

Gostaria de saber se poderá disponibilizar elementos em relação às listas de espera, às reinscrições em listas de espera e às taxas de mortalidade das pessoas em lista de espera, porque creio que esses elementos demonstrarão que a lei que temos deve ser alterada.

 

O segundo aspecto em relação ao qual quero pedir esclarecimentos tem a ver com o seguinte: não é que discorde do que consta da proposta de lei, mas gostaria de tentar compreender se são os avanços científicos que ditam que se alargue os dadores vivos a todos, mesmo que não haja grau de parentesco.

 Pergunto se se verifica, em relação aos que não têm qualquer grau de parentesco, a existência frequente de uma comunidade Human Leucocyte Antigens (HLA), ou seja de grupo HLA compatível que garanta o êxito do transplante. 

 (...)

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Saúde,
Srs. Deputados:

 

Já está suficientemente definido o objectivo e o âmbito da proposta de lei, com a qual concordamos na generalidade, porque os fundamentos da mesma não são economicistas, mas, sim, éticos.

 

Daí também que o discurso do PCP seja um em relação às medidas que o Sr. Ministro tem tomado na área da saúde e que relativamente a esta proposta de lei, que se funda na ética e na solidariedade entre as pessoas a posição do PCP, seja outro.

 

Na generalidade, concordamos com a proposta de lei e assinalamos mesmo, a propósito, que em relação à doação de órgãos por parte de menores, a Convenção de Oviedo é mais restritiva do que a lei de 1993, e essa reserva, pelo menos, devia ter sido posta na Convenção, uma vez que nela se exige que seja só para irmãos ou irmãs. E tal como anunciou e disse em dois pareceres o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, a posição da lei portuguesa é a preferível.

 

Este problema nasce da realização de um acto médico para além de qualquer utilidade terapêutica do dador, pois o benefício é apenas para o que recebe o órgão. E a dádiva desse órgão por um dador vivo funda-se no princípio ético da solidariedade a que os cidadãos estão obrigados entre si, e ela é mais marcada relativamente aos mais vulneráveis.

 

Este dever de solidariedade radica-se, por sua vez, no facto de que os homens não existem psicológica, cultural e economicamente sem o que recebem de outros seres humanos ao longo de toda a sua vida e não apenas na infância. Esta interdependência entre os seres humanos está na base dos próprios princípios éticos.

 

 A dignidade humana de cada um de nós é, afinal de contas, proveniente do reconhecimento pela sociedade dessa dignidade. E a nossa própria autonomia é, ela própria, proveniente, paradoxalmente, do consenso de todos. O valor da solidariedade é, assim, o reconhecimento de uma dívida de assistência para com os outros.

 

Constrói-se a autonomia, recebendo-a da sociedade.

 

Há, às vezes, conflitos entre essa autonomia e o princípio da solidariedade que têm de ser resolvidos, nomeadamente nesta proposta de lei. Mas a verdade é que a história da Humanidade glorificou aqueles que sacrificaram a sua saúde ou, até, a vida, a sua autonomia, para virem em socorro de outros, ou num acto anónimo, por exemplo de um bombeiro, ou, até, num acto mais conhecido e que perdurará sempre daqueles que sacrificaram a vida para entregar à Humanidade o produto das suas descobertas científicas.

 

 É claro que a lei deve ter, e tem, de uma maneira geral, limite do seu sacrifício: é preciso que o benefício para o que recebe o órgão seja suficientemente importante, e esse benefício tem gradações, consoante o órgão que é doado.

 

É claro que o dador tem de ter liberdade de escolha, tem de ser informado.

 

É claro que se têm de prevenir pressões morais da própria família, às vezes pouco aceitáveis.

 

O princípio da solidariedade é idealmente incondicional — idealmente —, porque é sobre este princípio que se funda a igualdade de todos os seres humanos, e esta é um conquista ética de toda a Humanidade; mas trata-se de um ideal frágil, como os factos desde sempre o comprovaram.

 

Foram aqui invocados exemplos, que são verdadeiros, de negócio de órgãos, de disposição de partes do corpo, nomeadamente pelos pobres, para serem objecto de transplante noutras pessoas. Isso é verdade e deve ser combatido!

 Há várias maneiras de o combater: há o Direito Penal, mas há uma outra, de que até esta hora ainda não ouvi falar, que é o verdadeiro combate à pobreza para que as pessoas não tenham de recorrer a essa alienação da sua dignidade — do

seu corpo — para poderem sobreviver!

 

Este é o facto mais importante neste combate, e no combate a raptos — que também os há, em que são extraídos órgãos de pessoas para serem vendidos —, o combate ao fenómeno criminoso.

 

O recurso ao dador vivo deve apresentar benefícios superiores ao recurso a órgãos tecidos e células de cadáveres, ou a outras soluções alternativas, como consta da proposta de lei.

 Já foram referidos pelo Sr. Ministro da Saúde dados que consideramos importantes, que também acompanham, por exemplo, os dados que se conhecem da Fundação Eurotransplante, a Eurotransplant International Foundation, que é efectivamente uma estagnação, às vezes, até, um decréscimo dos dadores

mortos: o aumento da taxa de mortalidade ao longo dos anos e, desde 1998, das pessoas em listas de espera.

 

Por isso mesmo, para aprovarmos esta proposta de lei na generalidade, dispomos de informação suficiente.

 

Sr. Presidente, gostaria de terminar dizendo o seguinte: quando se trata de matérias destas, há pessoas que gostam mais de seguir um percurso do tipo daqueles filmes do «monstro do Frankenstein» e que dizem para meter medo às pessoas: «Aí vem a ciência, com o seu cortejo de malefícios!».

 

Não é essa a nossa posição. Efectivamente, pode haver violações e afrontas a princípios éticos, sagrados à ciência, mas estes são, de facto, desvios de percurso, porque o fundamento da ciência é o deles: é a descoberta, é o combate ao sofrimento do ser humano.

 

E este é, sobretudo, o princípio que se deve seguir. Nesse sentido, é fundamental, e esperamos que a investigação científica se oriente nesse caminho, que se desenvolva a clonagem terapêutica, os bancos de células estaminais embrionárias porque isso é fundamental para aliviar o sofrimento da Humanidade!

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