Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Código de Processo Penal

Procede à vigésima primeira alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 299/99, de 4 de agosto, e à quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 317/94, de 24 de dezembro
(proposta de lei n.º 263/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra da Justiça,
Sr.as e Srs. Deputados:
Começo pelo aspeto que marca esta proposta de lei, ou seja, por aquilo que ela deixou de ter e que, julgo, era relevante que se discutisse, que tem a ver com o regime das escutas.
Ainda assim, Sr.ª Ministra, não perdemos a esperança de discutir a matéria relacionada com o regime das escutas, quem as faz e a sua admissibilidade — e queria deixar-lhe este desafio —, porque essa é, de facto, uma matéria que vale a pena discutir. Porém, devemos fazer essa discussão não no âmbito do Código de Processo Penal, mas talvez, de forma mais adequada, no âmbito da Lei da Organização da Investigação Criminal.
Sr.ª Ministra, a apreciação que fazemos da proposta de lei que traz à discussão à Assembleia da República é a de que — e permita-me a expressão — ela tem de tudo como as farmácias, porque suscita-nos concordâncias, dúvidas e discordâncias.
Por esta ordem, Sr.ª Ministra, queria dizer-lhe que, relativamente à matéria relacionada com o alargamento da gravação da audiência a todos os atos nela praticados, incluindo requerimentos, promoções e despachos, tem inteira concordância do PCP. Não há razões para que, hoje, não se utilizem os meios que estão à disposição dos tribunais para que seja gravado tudo aquilo que ocorre no quadro das audiências.
Concordamos também com a possibilidade de atualização dos dados pessoais que constam da base de dados do sistema judicial, sendo certo que, relativamente a esta base de dados e ao seu funcionamento, há ainda alguns aspetos que devemos ponderar.
Já não podemos manifestar o nosso acordo — pelo menos, levantamos algumas dúvidas — quanto a três ou quatro aspetos da proposta de lei.
Em primeiro lugar, quanto ao registo da suspensão provisória do processo na base de dados e ao prazo da conservação dos dados, parece-nos que os argumentos que o Governo apresenta e a solução que consta da proposta de lei não são exatamente coincidentes. Há necessidade de conservar aqueles dados pelo prazo de cinco ou de três anos para verificação do registo. Mas depois desse prazo não se mantém a necessidade de verificação da aplicação da suspensão provisória do processo? Não haveria utilidade nisso? Só se verifica naquele prazo? Aquele prazo é adequado? Não se justificaria esta necessidade também para além do prazo ou poderia dispensar-se o registo naquele prazo?
São questões que esperamos que possam ser clarificadas em sede de especialidade, tal como a matéria que tem a ver com os prazos para a prática dos atos processuais.
Sr.ª Ministra, sobre esta matéria, dizemos o mesmo que dissemos a propósito do Código de Processo Civil: estamos de acordo com uma parte do artigo — aliás, uma parte mereceu a nossa concordância na discussão do Código de Processo Civil, tal como merecerá também na atual discussão —, já a outra parte merecerá a nossa discordância, porque julgamos que as comunicações aos presidentes dos tribunais de comarca ou aos magistrados coordenadores acabam por fazer…
Mas é isso que consta da proposta de lei, Sr.ª Ministra.
Mas, como eu estava a dizer, julgamos que essa comunicação não deve ocorrer, porque introduz uma perturbação naquela que deve ser a lógica de funcionamento das magistraturas.
A Sr.ª Ministra acena que não, mas o que consta no texto da proposta de lei (n.º 4 do artigo 105.º do Código de Processo Penal, constante do artigo 2.º da proposta de lei) é exatamente a necessidade de comunicação…
Mas, Sr.ª Ministra, se não é essa a intenção do Governo, então, saudamos essa alteração porque ela vai, de facto, ao encontro da objeção que tínhamos suscitado.
Sr.ª Ministra, refiro agora as discordâncias — discordâncias sérias.
A primeira é relativa ao número de testemunhas. Aquilo que se faz não é alargar a possibilidade de aumentar o número de testemunhas nos casos em que ele é necessário porque isso já hoje acontece, como, de resto, é reconhecido no preâmbulo da proposta de lei do Governo. Aquilo que se faz é introduzir limitações à possibilidade de alargar o número de testemunhas quando elas são efetivamente necessárias. A alteração introduzida no artigo 283.º é, de facto, uma alteração significativa com a qual não estamos de acordo.
A segunda discordância refere-se ao adiamento da audiência por 30 dias. Gostava que a Sr.ª Ministra explicasse se a intenção do Governo é mesmo eliminar por completo a sanção de perda de eficácia da prova. Todos nós conhecemos aqueles casos de audiências que são abertas por 5 minutos só para inviabilizar o decurso do prazo de 30 dias. Todos nós conhecemos essas situações. O que perguntamos é se é mesmo intenção do Governo eliminar por completo a sanção de perda de eficácia da prova, quando a audiência acaba por ser adiada e os adiamentos decorrem durante quase um ano.
Temos outra objeção de fundo relativamente a esta opção do Governo, Sr.ª Ministra: estas circunstâncias de adiamento das audiências por mais de 30 dias devem ter, de facto, um caráter excecional. No entanto, o que resulta da alteração que o Governo faz é exatamente o oposto, é uma solução em que, de facto, o adiamento por mais 30 dias pode vir a ser a regra, por eliminação dessa sanção de perda de eficácia da prova.
Mais: quem é que afere a prioridade que está estabelecida no texto da lei que o Governo propõe? Quem é que afere a prioridade de um ato judicial sobre o outro? É que isto, de facto, Sr.ª Ministra, pode conduzir a uma situação de promoção da demora da justiça, com a banalização do adiamento das audiências de julgamento por mais 30 dias.
Uma outra objeção de fundo em relação à proposta que o Governo apresenta é a inscrição no registo individual do condutor da aplicação de injunção de inibição de conduzir. A entrega da carta de condução já é suficiente para as autoridades fiscalizarem se há ou não possibilidade de condução a quem foi aplicada aquela sanção de inibição de conduzir.
A Sr.ª Ministra bem sabe que se for aplicada uma injunção desse tipo e se esse alguém continua a conduzir responde pelo crime de desobediência. Portanto, isso já é suficiente.
De facto, esta proposta do Governo introduz um elemento de estigmatização, que é difícil e deve ser considerado.
Sr.ª Presidente, para terminar queria referir uma última objeção, que tem a ver com a questão da impossibilidade de participação do magistrado no decurso do processo.
Sr.ª Ministra, de facto, estão em causa, como já aqui foi referido, dois princípios fundamentais do nosso sistema penal que têm particular relevância: o da necessidade de garantia da descoberta da verdade material e o da preservação do princípio da imediação. Esta solução que o Governo aqui apresenta não é, do nosso ponto de vista, completamente compatível, principalmente com a preservação do princípio da imediação da prova.
Sr. Presidente, concluo dizendo o seguinte: independentemente de, hoje, os meios tecnológicos permitirem um acesso à prova que há uns anos não era possível, este regime introduz, de facto, perturbações quanto à necessidade de preservação do princípio fundamental da imediação da prova por parte do juiz que julga ter tido acesso a toda a prova que foi produzida e participar na condução da obtenção da prova, nomeadamente nas audiências de julgamento.
Parece-nos que a proposta que o Governo apresenta não é compatível com a preservação do princípio da imediação e, portanto, vamos procurar, na especialidade, ultrapassar estas dificuldades, porque ainda assim, apesar das objeções que referi, pode haver algum campo de melhoria desta proposta de lei

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