Intervenção de Bruno Dias na Assembleia de República

Código Cooperativo

(projeto de lei n.º 898/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
A questão que o PCP coloca a esta Assembleia da República e aos Srs. Deputados é muito simplesmente a de saber se pretendem respeitar e manter os princípios e a identidade próprios das cooperativas ou se, pelo contrário, querem mesmo abrir a porta à perversão e descaracterização do princípio da igualdade — um membro um voto —, princípio fundamental que norteia o movimento cooperativo desde a sua génese.
Essas propostas, que, em sede de especialidade, foram combinadas entre o PSD, o CDS-PP e o PS e que, agora, avocamos a esta sessão plenária, são contrárias a esse princípio, são graves e perigosas, consagram a figura do membro investidor, do voto plural e sujeitam o movimento cooperativo e o seu funcionamento a um regime que não é próprio das cooperativas e que vem transformá-las numa outra coisa contrária aos princípios e à identidade que sempre diferenciaram as cooperativas.
Se dúvidas houvesse ou se a memória faltasse, a Aliança Cooperativa Internacional (ACI) novamente se pronunciou, este mês, sobre essa questão central da igualdade nas cooperativas, com uma interpretação renovada e atualizada, com a mensagem difundida a nível mundial a propósito do Dia Internacional das Cooperativas, assinalado pelas Nações Unidas a 4 de julho. O tema dessa mensagem, neste ano de 2015, é precisamente: «Escolham as cooperativas, escolham a igualdade».
Nessa mensagem, expressamente, a ACI destaca: «Numa cooperativa, a palavra igualdade tem três significados e, desde logo, o primeiro significado é que a filiação é livre e voluntária, sem qualquer tipo de discriminação e cada membro tem direito a um voto. É assim que se garante a igualdade na estrutura e no controlo da cooperativa. Ao contrário das empresas detidas por investidores, a igualdade numa cooperativa não está relacionada com a capacidade financeira do indivíduo e todos os membros dela disfrutam».
Srs. Deputados, é de lamentar que, desta forma, seja quebrada a unanimidade que existiu, em 1996, na Lei do Código Cooperativo e que se aprove, desta forma, um diploma que vem perverter e quebrar o princípio cooperativo de um membro um voto.
O PCP propõe a eliminação desses artigos no projeto de lei. Ainda estamos a tempo de, nesta última oportunidade no processo legislativo, evitar uma opção errada e injusta que está a ser seguida pelos partidos da troica, pelo PSD, pelo PS e pelo CDS.
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Declaração de voto relativa ao texto de substituição, apresentado pela Comissão de Segurança Social e Trabalho
(projeto de lei n.º 898/XII/4.ª)

O Grupo Parlamentar do PCP votou contra o texto de substituição em apreço por considerar que as normas introduzidas e aprovadas conjuntamente pelo PSD, PS e CDS-PP, relativamente ao voto plural e à figura de membro investidor, ferem gravemente a doutrina cooperativa.
Se estas duas matérias tivessem sido retiradas, certamente a Assembleia da República estaria em condições de mais uma vez alcançar unanimidade (tal como alcançou em 1997 na aprovação do Código Cooperativo), até porque praticamente todas as alterações agora em causa ao Código tratavam no fundamental de aperfeiçoamentos e atualizações e geraram pleno consenso entre as organizações do Grupo de Trabalho que preparou esta revisão.
Mas com estas duas outras questões concretas o caso é outro: estão em causa princípios, valores e identidade consagrados no Congresso de 1995 em Manchester, por ocasião do centenário da Aliança Cooperativa Internacional, ACI — que só um novo congresso poderá rever ou alterar, já que o Movimento Cooperativo é um movimento orgânico, com as suas estruturas próprias a nível nacional, regional e mundial devidamente reconhecidas pelas instâncias nacionais e pelas Nações Unidas.
A Constituição da República reconhece o setor cooperativo, consagrando a «obediência aos princípios cooperativos» [Artigo 82.º, n.º 4, alínea a)]. Ora, a Lei não pode desrespeitar os princípios cooperativos, tal como a ACI os enuncia. O princípio da «gestão democrática pelos membros», que nas cooperativas de primeiro grau parte do reconhecimento de que «os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto)», é o princípio base da igualdade, que está presente desde sempre nas cooperativas que são organizações de pessoas e não de capitais. Razão pela qual o PCP considera que existe uma violação desse princípio constitucional, designadamente na alínea e) do artigo 16.º (Elementos dos estatutos); no artigo 20.º (Membros investidores); no artigo 41.º (Voto plural); e no n.º 2 do artigo 44.º (Assembleias setoriais).
Tal como a CONFECOOP oportunamente assinalou, a criação do membro investidor constitui uma violação direta e grosseira do princípio da «autonomia e independência» que garante que «as cooperativas são organizações autónomas de entreajuda, controlada pelos seus membros». Não faz, pois, qualquer sentido a introdução de membros que não participam na atividade da cooperativa, os quais apenas terão uma lógica de aplicação de capital que lhe garante, não só um rendimento, mas poder dentro da cooperativa. O financiamento das cooperativas já estava garantido pela possibilidade de empréstimos ou emissão de obrigações com os respetivos direitos salvaguardados.
Citamos um texto recente do Professor Doutor Rui Namorado, de análise a estas propostas e que a CONFECOOP recentemente destacou:
«(…) 2. No que diz respeito à admissão de membros investidores, está em causa a possibilidade de serem admitidos como membros de uma cooperativa meros investidores, desconsiderando-se assim, por completa, a participação pessoal na própria atividade produtivo-cooperativizada (de produtor ou de utilizador) como condição necessária para a possibilidade de se ser membro de uma cooperativa.
Sublinhe-se que não se trata de conceder poderes de controlo, quanto à transparência da gestão das cooperativas, a investidores com um estatuto obrigacionista, como já acontece no Código Cooperativo vigente, a partir da detenção de títulos de investimento. Trata-se de introduzir os investidores no cerne da vida e do poder das cooperativas, para o partilharem como se fossem cooperadores, descaracterizando nessa medida a sua natureza histórica e a sua identidade estrutural.
Vai assim abrir-se a porta a um novo tipo de protagonistas que entram na cooperativa, não apenas para partilharem responsabilidades pela produção de bens e/ou serviços, mas para, primordialmente, rentabilizarem o capital de que são titulares e reproduzi-lo, bem como ao poder que lhe é inerente. Mas a lucratividade dentro da lógica inerente às empresas capitalistas, especialmente às de média e de grande dimensão económicas, não é separável de uma procura de mais poder, de um maior domínio, que por sua vez potencie a possibilidade de serem auferidos mais lucros.
Por isso, a convivência, no cerne do poder cooperativo, de membros investidores com cooperadores, está estruturalmente condenada ao risco elevado de acabar com a natureza cooperativa da empresa, ou pela sua destruição ou pela sua banalização radical. E a forma cooperativa de uma empresa é profundamente descaracterizada, quando, numa cooperativa do primeiro grau, deixe de vigorar a vertente da identidade cooperativa que impõe a regra um cooperador-um voto.
Deste modo, se a ordem jurídico-cooperativa portuguesa passasse por uma transformação qualitativa para permitir o caminho em causa, estar-se-ia a quebrar um consenso jurídico, quer no plano da jurisdição constitucional, quer consequentemente no domínio da legislação comum, que remonta a 1976 com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa (CRP); e que foi sublinhado, em 1997, pela unanimidade reunida em alterações introduzidas pela revisão constitucional então ocorrida, na parte do art.º 82 que rege o sector cooperativo e social. Este consenso jurídico foi, aliás, reforçado pela aprovação na Assembleia da República (AR) do atual Código Cooperativo, cuja revisão está por sua vez agora em curso.
(…)
Indo ao fundo da questão temos que ter em conta que, nos termos do art.º 82 da CRP, no seu n.º 4, ‘O sector cooperativo e social compreende especificamente: a) Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos’. Foi reiteradamente entendido desde 1976, e expressa ou tacitamente aceite por todas as AR posteriores com poder constituinte que o usaram, que estes princípios eram naturalmente os que a Aliança Cooperativa Internacional (ACI) viesse sucessivamente assumindo.
Materializando sintomaticamente esse consenso, o art.º 3 do projeto do CC em análise transcreve na esteira da sua versão anterior, o elenco mais recente dos princípios cooperativos aprovada em Manchester no Congresso do Centenário da ACI em 1995. E nos termos do 2.º princípio transcrito no referido art.º 3, consagrado à ‘gestão democrática pelos membros’. ‘As cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais participam ativamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões. Os homens e as mulheres que exerçam funções como representantes eleitos são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando as cooperativas de outros graus organizadas também de uma forma democrática.’
Uma leitura comparada dos textos em causa torna evidente que a consagração no Código Cooperativo do voto plural, contrariando inequivocamente o princípio da administração democrática, na parte em que ele diz que ‘nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto)’ é claramente inconstitucional.
Sendo assim, é inútil escalpelizar em que medida acentuam ou atenuam os efeitos negativos do voto plural os vários aspetos sobre ele consagrados nos outros números do art.º 94 do Projeto. A inconstitucionalidade do número um apaga a utilidade de todos os outros números do mesmo artigo. Isso ocorre também com todas as propostas de alteração que pressuponham a admissibilidade do voto plural, mesmo de outros artigos.
5. No que diz respeito aos membros investidores, a sua admissibilidade também é contrária à identidade cooperativa (e consequentemente à CRP), embora não o seja de uma forma tão diretamente explícita. Porém, se conjugarmos o disposto no n.º 1 do art.º 20 do Projeto (‘Os estatutos podem prever a admissão de membros investidores’), com o facto de dever constar da proposta de admissão de membros (n.º 3) nos termos da alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo (‘O número de votos a atribuir a cada membro investidor e os critérios para a sua atribuição’), vemos que sem a existência de voto plural não faz sentido propor sequer a categoria de membros investidores nos termos pretendidos.
Estão por isso em causa todas as propostas de alteração que admitam ou pressuponham a existência de membros investidores equiparados a cooperadores (o que evidentemente não envolve os titulares dos títulos de investimento já atualmente admitidos).
Devemos ter em atenção que para além do que acaba de se dizer, pressupondo que a categoria de membros investidores equiparados a cooperadores implica que se considerem insuficientes os instrumentos obrigacionistas já existentes, não parece lógico que eles sejam remunerados através de juros. Se o fossem, devia ter-se em conta os termos em que estes são previstos no CC. Realmente, na esteira do que estatui o atual CC, o Projeto em discussão no seu art.º 88, com a epígrafe de ‘remuneração dos títulos de capital’, dispõe no seu n.º 1 que ‘mediante cláusula estatutária, podem ser pagos juros pelos títulos de capital’ introduzindo-lhe, no entanto, como limite o disposto no número seguinte: ‘Na hipótese prevista no número anterior, o montante global dos juros não pode ser superior a 30% dos resultados anuais líquidos’. Portanto, não parece admissível que se entenda que este tipo de remuneração por juros é congruente com o desenho jurídico proposto para os sócios investidores. Se o fosse, insiste-se, bastariam os títulos de investimento e as obrigações já previstas no CC atual.
Mas se assim não for, por esta via, nos termos do mesmo diploma legal, os resultados positivos só podem ser distribuídos como excedentes. Ora, estruturalmente os excedentes não dependem dos títulos de capital detidos por cada cooperador, mas sim do volume de operações entre cada cooperador e a cooperativa. Como diz o texto do princípio cooperativo que rege o respetivo regime económico: ‘Os cooperadores destinam os excedentes a um ou mais dos objetivos seguintes: desenvolvimento das suas cooperativas, eventualmente através da criação de reservas, parte das quais, pelo menos, será indivisível; beneficio dos membros na proporção das suas transações com a cooperativa; apoio a outras atividades aprovadas pelos membros’.
Também não se percebe como será possível compatibilizar a existência de limites para a percentagem máxima a conceder às posições de membros investidores e o princípio da liberdade de adesão que torna a variabilidade no elenco dos cooperadores e na capital das cooperativas uma constante incontornável.
Portanto a constitucionalidade da existência da categoria dos sócios investidores tal como resulta da proposta apresentada é tão duvidosa quanto é duvidoso que ela seja compatível com o princípio da liberdade de adesão e, principalmente, com o que rege o regime económico das cooperativas na sua totalidade.
Aliás, as duas propostas em questão rompem com a lógica global da nossa Constituição Cooperativa e com o sentido que a tem feito conjugar-se, por intermédio dos outros subsectores, especialmente pelo subsector solidário, com a economia social. De facto, o sector cooperativo e social integrou-se, por completo, na economia social, dando-lhe uma consistência jurídico-constitucional que ela, como recém-regressada, não tinha, apenas ficando por abranger pelo sector cooperativo e social uma pequena parte da economia social.»
O PCP propôs, em sede de comissão parlamentar, a eliminação dos artigos em causa e requereu inclusive, numa última oportunidade no processo legislativo, a avocação a Plenário da sua votação na especialidade.
Lamentavelmente, o PSD, o PS e o CDS-PP rejeitaram esse requerimento e não permitiram sequer a votação das nossas propostas. O PCP considera que esta é uma opção errada e injusta e por tudo isto votou contra o texto de substituição na votação final global.
O Deputado do PCP, Bruno Dias.

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