A Cimeira de Barcelona e a chamada " Estratégia de Lisboa"

Como se dizia na Resolução do Grupo da Esquerda Unitária
Europeia em que nos integramos, a Cimeira de Barcelona assumiu aspectos muito
preocupantes, designadamente no que se refere ao prosseguimento e aceleração
das privatizações, à liberalização e desregulamentação
nos sectores da energia, dos transportes e das telecomunicações
e a aspectos importantes dos direitos dos trabalhadores, insistindo igualmente
na manutenção estrita do Pacto de Estabilidade.

Lamentavelmente, mais uma vez o Conselho Europeu pôs o acento tónico
sobre as reformas estruturais do mercado de trabalho baseadas na flexibilização,
na precarização do trabalho e na moderação salarial,
recomendado o aumento de cinco anos na média da idade da reforma, o que,
além do mais, indicia um caminho perigoso de ameaça à protecção
social, a qual precisa de ser mantida e reforçada para apoio ao combate
à pobreza e à exclusão social.

Assim, como se afirmou nas grandiosas manifestações do movimento
sindical e associativo que decorreram paralelamente em Barcelona, apesar das
tentativas condenáveis de desmobilização e repressão
do Governo espanhol e da polícia, o que se impõe é uma
mudança de política e não mais do mesmo. É fundamental
defender os serviços públicos, parar as liberalizações
e a precarização do mercado de trabalho, lutar contra o neoliberalismo,
defender um outro mundo mais solidário e mais justo.

Mas não podemos esquecer que foi durante a Presidência portuguesa
da União Europeia que se realizou, em Lisboa, uma Cimeira Europeia, chamada
do Emprego, que foi acompanhada de uma grandiosa manifestação
de cerca de 70 mil trabalhadores. Nesse Conselho Europeu extraordinário,
a 23 e 24 de Março de 2000, foi adoptado o objectivo considerado audacioso
e ambicioso de "fazer da União Europeia, no espaço de dez
anos, a economia do conhecimento mais competitiva e mais dinâmica do mundo,
caracterizada por um crescimento económico durável, pleno emprego
e uma maior coesão económica e social".

Em si, este objectivo encerra várias contradições para
que de imediato chamámos a atenção, e que começam
agora a ser mais visíveis. É que o acelerar das liberalizações,
com a privatização de sectores estratégicos como transportes,
energia, telecomunicações, serviços financeiros e diversos
serviços públicos, só poderia agravar os problemas sociais,
complicar o ambiente, aumentar o desemprego, dificultar o combate à pobreza
e exclusão social e impedir os progressos prometidos na coesão
económica e social. Ou seja, os dois pratos da balança não
são simétricos. Não se pode caminhar no aprofundamento
do capitalismo cada vez mais liberal, mais selvagem e, simultaneamente, ter
mais atenção ao social, aos trabalhadores, às pessoas e
ao seu bem-estar.

Os grupos económicos, as multinacionais só pensam nos lucros,
nos seus ganhos e não nas pessoas, sejam trabalhadores ou consumidores.
As pessoas só lhes interessam enquanto puderem contribuir directamente
para aumentar os seus ganhos. Depois, são tratadas como material descartável
que se usa e deita fora.

Como, entretanto, os chefes de Estado e de Governo dos 15 instituíram
o Conselho de Primavera, onde se devia fazer a abordagem das questões
de política económica, social e ambiental à luz do objectivo
global do desenvolvimento durável, tendo por base a estratégia
de Lisboa, e os complementos de Nice, Estocolmo e Laken, pela primeira vez isso
aconteceu, parcialmente, em Barcelona. Daí a importância de analisar
algo mais que as expressões abrangentes e aparentemente audaciosas.

A realidade que existe é cada vez mais insatisfatória e desmente
as leituras optimistas e as loas à união económica e monetária
em torno da entrada do euro em circulação. E não basta
afirmar, como fez um relatório do Parlamento Europeu, que "a acção
ao longo de quase dois anos se processou num quadro de crescimento económico
desigual, em que as condições privilegiadas que existiam à
partida deram lugar a uma situação de desaceleração
e estagnação económica a nível mundial, a qual se
acentuou com a insegurança provocada pelos atentados de 11 de Setembro,
e que, por seu lado, teve um impacto negativo nas previsões iniciais
relativas à evolução do crescimento económico da
União Europeia". É preciso ir ao fundo da questão,
às causas mais profundas. Só assim se evita que a receita seja
mais do mesmo. Como aconteceu com o referido relatório.

Mesmo com um deficiente sistema estatístico, não se pode esconder
que há desaceleração económica, agravamento no desemprego
e manutenção das profundas desigualdades sociais. Os dados do
Eurostat, divulgados no Relatório Conjunto da Comissão e do Conselho
sobre a inclusão social, de que fui relatora no Parlamento Europeu, demonstram
que, apesar da complexidade da análise da correlação entre
a despesa pública com a protecção social e o risco de pobreza,
as taxas mais baixas de pobreza registam-se nos países com níveis
de despesa per capita em protecção social mais elevados, e muito
acima da média europeia, enquanto as maiores taxas de pobreza são
as de Portugal, do Reino Unido e Grécia, Irlanda, Espanha e Itália,
onde os níveis de despesa per capita em protecção social,
em geral, são inferiores à média comunitária.

Sem as transferências sociais, designadamente as pensões de velhice,
estariam em risco de pobreza 41% da população da União
Europeia, e essa percentagem ainda se manteria em 26% se incluíssemos
as pensões de velhice, mas excluíssemos do rendimento outras transferências
sociais como o rendimento mínimo garantido e prestações
de apoio às famílias, o que demonstra a necessidade de manter
níveis elevados de protecção social e uma especial atenção
a grupos mais vulneráveis.

Mas, em vez de reconhecer esta situação e apontar, como caminho,
a necessidade de um travão às liberalizações e uma
revisão do Pacto de Estabilidade para permitir o reforço dos sectores
sociais, pondo em prática a Agenda Social Europeia, aprovada em Nice,
que reconhece o duplo papel da política social - enquanto factor produtivo
e instrumento fundamental para reduzir as desigualdades e promover a coesão
social -, as decisões da Cimeira vão no mesmo sentido do relatório
do Parlamento Europeu, preparatório da Cimeira de Barcelona, insistindo
na " progressão no sentido da flexibilização dos mercados
de produtos, serviços e trabalho, e, em especial, da liberalização
de sectores-chave da economia europeia como os transportes, a energia eléctrica,
as fontes alternativas de energia, as telecomunicações e os serviços
financeiros", na sequência da proposta da Comissão Europeia,
a que acresceu a conhecida carta Blair/Aznar com mesmo objectivo: mais liberalizações,
maior flexibilidade e mobilidade do trabalho.

Com mais do mesmo, só resta aos trabalhadores e às forças
progressistas prosseguirem a luta contra este capitalismo cada vez mais agressivo.

Ilda Figueiredo