Como é hoje comummente aceite, a energia nuclear não é apenas mais uma
forma de energia, mas uma forma de energia qualitativamente diferente.
Diferentemente de todas as restantes, a energia nuclear e a sua utilização colocam
problemas à espécie humana, que não apenas ao indivíduo, à Humanidade, que não
apenas a cada homem, e à Terra, que não apenas a uma região ou a um país. A
energia nuclear e a sua utilização colocam-nos assim perante problemas que extrava
o domínio meramente quantitativo e nos conduzem naturalmente à área mais nobre,
ou mais perversa, do comportamento humano, à área das opções políticas e ético-políticas.
De tal modo assim é que, a pretexto da sua utilização militar, a energia nuclear
se transformou num palco privilegiado para a afirmação quer da consciência social
e ético-política do cientista, quer do carácter não-neutral da própria investigação
científica e tecnológica. Hoje, a utilização pacífica da energia nuclear, e
particularmente a edificação de centrais para a produção de electricidade, com
todas as questões que se levantam a jusante e a montante dessa edificação, têm
vindo a contribuir para uma outra construção, a da consciência social, cada
vez mais ampla, em torno da gravidade do problema. Neste quadro, são exemplares
as manifestações das populações e dos responsáveis autárquicos de um e de outro
lado da fronteira contra a hipótese de instalação pelo Governo espanhol de um
cemitério de detritos nucleares na zona de Aldeadávila de La Ribera, na bacia
hidrográfica do Douro e próximo da fronteira portuguesa. É preciso que se diga
claramente, e de uma vez por todas, que, no presente estádio de desenvolvimento
dos nossos conhecimentos científicos, tecnológicos e industriais, todos os
cemitérios de resíduos nucleares são provisórios, isto é, envolvem um elevado
risco potencial, pois a verdade é que, de forma definitiva e segura, ninguém
sabe ainda o que fazer com esses resíduos. É que não estamos a falar de uma
"lixeira"(!) comum - mas de resíduos que se mantêm perigosamente radioactivos
por centenas ou mesmo por milhares de anos. Daí a elevadíssima responsabilidade
técnica e política que se deve exigir a quem tenha de lidar com estas situações.
É fácil ceder a voluntarismos mediáticos, seja com o espectáculo do sobrevoo
da região em helicóptero, seja com a sensata sugestão de que se impõe negociar
com a Espanha "à bruta" - e estou a citar, a expressão não é minha. Como
também é fácil, por outro lado, para esconder inoperâncias e incapacidades técnicas
e diplomáticas, vir defender a tese de que o "segredo é a alma do negócio",
ou de que a questão está a ser excessivamente ampliada. A questão é outra, e
é séria, e é grave. Independentemente de um ou outro recúo circunstancial, ditados
pela própria sensibilidade política, social e diplomática do problema, a verdade
é que, já com projecto formal ou ainda sem ele, existem vários documentos oficiais
espanhóis que apresentam a zona de Aldeadávila como uma daquelas em que poderá
vir a instalar-se um cemitério nuclear. Ninguém quer que as garrafas do nosso
maravilhoso, e único, "vinho fino do Douro" se vejam um dia obrigadas a ostentar
o aviso "Beber este vinho prejudica gravemente a saúde", à semelhança do que
acontece já hoje com as embalagens do tabaco. O Governo português não pode neste
domínio - de afirmação estratégica da independência nacional - manter-se numa
atitude de "esperar-para-ver". Aqui, o segredo não é a alma do negócio - quer
porque nenhum negócio é possível, quer porque é fundamental o máximo de informação
clara, rigorosa e mobilizadora.
Não somos daqueles que subscrevem o adágio de que "de Espanha, nem bom vento
nem bom casamento". Na luta comum contra os dois fascismos ibéricos, o desaparecimento
do franquismo e o 25 de Abril constituem passos fundamentais propiciadores do
reforço da amizade e da cooperação entre os povos de Espanha e o povo português.
As manifestações populares em torno da questão de Aldeadávila têm sido transfronteiriças
- e isso mostra bem como têm sabido separar o essencial do acessório. O Governo
português tem a mais estrita obrigação de demonstrar igual capacidade - o que,
de todo, até agora não mostrou. Não queremos que trate destas coisas com a Espanha
"à bruta". Queremos apenas que as trate, e que as trate com seriedade
e com transparência - e que o faça em defesa dos interesses legítimos do povo
português e, permita-se-me o excesso, dos povos de Espanha. Disse.