Intervenção de

Código de Processo Penal - Intervenção de João Oliveira na AR

 

Altera o regime de segredo de justiça para defesa da investigação (alteração ao Código de Processo Penal)

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Para que se entenda com clareza aquilo de que estamos agora a tratar, analisemos três exemplos ficcionados, cuja semelhança com a realidade é pura coincidência.

Primeiro exemplo: um conjunto de grandes empresas e bancos engendram um esquema de fuga às suas obrigações fiscais, com recurso à migração de empresas para paraísos fiscais, a partir de operações clandestinas feitas num balcão virtual de um banco. O Estado é lesado em centenas de milhões de euros e está em causa um furacão de crimes de fraude e evasão fiscais, falsificação de documentos, burla qualificada, branqueamento de capitais e gestão danosa. Segundo exemplo: um banco, perto da falência, é nacionalizado pelo Estado e um seu ex-presidente é sujeito a prisão preventiva por suspeita da prática de crimes de branqueamento de capitais, abuso de confiança agravado, aquisição ilícita de acções, falsificação de documentos, infidelidade, burla e fraude fiscal qualificadas.

Terceiro exemplo: um indivíduo furta de casa do sogro uma baixela de prata que, posteriormente, vende a um outro indivíduo, a troco de estupefacientes.

Há nestes exemplos uma nota óbvia que distingue os dois primeiros do terceiro.

Enquanto que, no último, a investigação é de reduzida complexidade e o acesso aos autos pode não constituir entrave à sua eficácia, nos dois primeiros, a dificuldade de obtenção da prova torna a investigação complexa e morosa e o acesso aos autos pode significar o fracasso do processo penal e a impunidade dos autores dos crimes.

O que o PCP traz hoje à discussão desta Assembleia é uma proposta de alteração do Código de Processo Penal, visando a correcção de um problema para o qual alertámos em devido tempo. Os problemas que são, hoje, publicamente conhecidos e reconhecidos na investigação da criminalidade mais grave e complexa e que resultam do novo regime de segredo de justiça, foram por nós atempadamente identificados e denunciados.

Quando votámos sozinhos contra o actual artigo 86.º, «cozinhado» entre PS e PSD, quando avocámos para Plenário as propostas de alteração ao segredo de justiça, quando apresentámos a declaração de voto, na votação final global, fizemo-lo alertando para o prejuízo que resultaria deste novo regime para o combate e a eficácia da investigação da criminalidade mais grave e complexa, nomeadamente para a grande criminalidade económica e financeira e a corrupção. Os recentes acontecimentos em torno da «Operação Furacão», demonstram como a investigação e combate a este tipo de criminalidade podem ficar comprometidos em nome da alteração do paradigma do segredo de justiça.

Quando se trata de criminalidade grave e complexa, Sr.as e Srs. Deputados, estamos a falar de crimes cuja investigação é difícil e morosa.

É difícil porque implica a investigação de redes de crime organizado, porque implica a realização de perícias económicas e financeiras especializadas, porque implica a investigação de movimentação de capitais através de paraísos fiscais sem qualquer controlo, porque implica a obtenção de provas facilmente ocultáveis às entidades responsáveis pela investigação criminal. É morosa porque implica a recolha e análise de milhares de documentos, porque implica a cooperação com autoridades judiciárias estrangeiras, porque, por exemplo, a movimentação de capitais por paraísos fiscais que se consegue fazer em 10 minutos, a partir de um computador, pode demorar às autoridades judiciárias mais de três anos a reconstituir

Dos pareceres que recebemos sobre o projecto de lei apresentado pelo PCP (projecto de lei n.º 452/X) é de registar que a única opinião discordante surge da parte da Ordem dos Advogados, que entende que a eficácia da investigação e o combate à criminalidade mais complexa podem ser sacrificados perante o direito de informação dos arguidos e o controlo dos prazos de duração dos inquéritos.

O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República e a Associação Sindical dos Juízes Portugueses confirmam a justeza e a necessidade das soluções que propomos e apontam algumas sugestões, que entendemos serem de acolher, no sentido de melhorar a lei processual penal.

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A necessidade de introduzir alterações ao regime do segredo de justiça actualmente em vigor foi já reclamada pelas autoridades judiciárias - Procurador-Geral da República incluído - e por vários órgãos de polícia criminal.

A questão que o PCP, hoje, coloca a esta Assembleia é a de saber quem está disposto a contribuir para essas alterações, para que possa haver verdadeiro combate à criminalidade grave e complexa, nomeadamente à grande criminalidade económica e financeira e à corrupção.

O que hoje está em causa é saber se PS e PSD, que «cozinharam» a última revisão do Código de Processo Penal, estão dispostos a garantir uma alteração fundamental para o sucesso do combate à criminalidade grave e complexa, ou se, pelo contrário, pretendem manter um regime de segredo de justiça que, independentemente das intenções que o justifiquem, serve objectivamente apenas os interesses do crime organizado, de corruptos, corruptores e dos senhores das grandes fraudes económicas e financeiras.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

Tivemos hoje neste debate os porta-vozes do bloco central de interesses a fazer a defesa do seu Pacto para a Justiça, que redundou na realidade que hoje temos.

Ficámos a saber que, para o PS e o PSD, os arguidos em processos como o da «Operação Furacão» não devem se prejudicados pela morosidade da justiça e, portanto, «conheçam lá o processo»!...

Ficámos a saber que, para o PS e o PSD, a complexidade da investigação criminal deve ser sancionada com a publicidade do processo e com a impunidade de quem pratica os crimes.

A pergunta que se impõe, Sr.as e Srs. Deputados do PS e do PSD, é se acham ou não que é complexo um processo que obriga um juiz de instrução a analisar 200 CDRom como documentos que precisam de ser analisados. Se acham ou não que é complexo um processo que obriga à análise de milhares e milhares de documentos, que obriga à realização de complicadíssimas perícias sobre esses documentos para a apreciação da prova. Se entendem ou não que, às vezes, há demoras nas perícias por falta de meios, que, muitas vezes, não estão ao dispor da investigação criminal. Se entendem ou não como aceitáveis os atrasos que por vezes decorrem da necessidade de cooperação com autoridades judiciárias estrangeiras. E se acham ou não que, perante esta realidade, é justificado que o processo se mantenha a coberto do segredo de justiça para salvaguardar a eficácia da investigação criminal.

A propósito da monitorização da reforma processual penal, Srs. Deputados, não chega já a monitorização daquilo que está a acontecer com o processo concreto da «Operação Furacão»? Não chegam já seis decisões contraditórias de um Tribunal da Relação sobre a apreciação do regime actualmente em vigor do segredo de justiça? Não chega já isto para se perceber que o regime legal tem de ser alterado? Não chegam já as propostas de alteração ao Código de Processo Penal, que o Procurador-Geral da República, os juízes e os magistrados do Ministério Público apresentaram, para se perceber que aquilo que temos pela frente é uma porta escancarada para a impunidade da criminalidade mais grave e mais complexa, para a impunidade económica e financeira, para a corrupção? Não chega já tudo isto para se perceber o que está em causa?

Sr.as e Srs. Deputados,

No nosso projecto de lei, fazemos o justo equilíbrio entre aquilo que é a salvaguarda da eficácia da investigação criminal e os direitos de acesso aos autos por parte dos arguidos. Fazemo-lo precisamente por ter em conta que por vezes é necessário que os arguidos tenham acesso aos autos para prepararem a sua defesa, para responderem, por exemplo, à aplicação de uma medida de coação - é necessário ter acesso aos autos e nós prevemos essa possibilidade. Prevemo-la é salvaguardando aquilo que é a eficácia da investigação criminal, porque um arguido não pode ter acesso aos autos nos termos em que actualmente o Código de Processo Penal prevê, sob pena de se pôr em causa a investigação criminal, sob pena de ficarem completamente impunes os senhores das grandes fraudes económicas e financeiras do nosso País, os corruptos e os corruptores, que neste País vão vivendo «à grande e à francesa», brincando com o sistema de justiça, situação para a qual os senhores hoje contribuem decisivamente.

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