Entrevista a José Reinaldo Carvalho, Secretário de Política e Relações Internacionais do PC do Brasil ao Avante Edição Nº2233 - 15-9-2016
O golpe de Estado institucional ocorrido no Brasil não visou apenas substituir o governo de Dilma Rousseff, afirma Reinaldo Carvalho, secretário de Política e Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em entrevista ao Avante! «O que está a ser instalado é um regime político, não apenas um governo. Um regime neoliberal na economia e conservador na política», assegura, defendendo a unidade das forças progressistas para defender a democracia e o progresso no país.
A presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff, foi destituída pelo Senado, num processo que a generalidade dos observadores, nacionais e estrangeiros, reconhece como um golpe de Estado institucional. Quais as consequências deste golpe, nomeadamente no que respeita às políticas sociais desenvolvidas durante os governos de Lula e Dilma?
Com a instauração do governo golpista afigura-se uma brutal ofensiva contra os direitos do povo brasileiro, que obviamente será feita com demagogia, com mistificação. O ataque aos direitos sociais implementados pelos governos de Lula e prosseguidos e aperfeiçoados pelo governo de Dilma poderá não ser directo. O governo golpista pode não proclamar abertamente a liquidação do programa Bolsa Família, por exemplo, que simboliza o programa de assistência (visa garantir às famílias mais carenciadas o direito à alimentação e o acesso à educação e à saúde), mas pode ir alterando as suas características, reduzindo a sua dimensão.
A ofensiva contra os direitos sociais não virá principalmente daí. Virá através das seguintes iniciativas:
1.ª – Implementação do chamado ajuste fiscal, que corresponde na Europa à política de austeridade, mas que na verdade é uma política de arrocho brutal, de esmagamento dos direitos. No programa de ajuste fiscal do governo está previsto um projecto de emenda constitucional que estabelece que durante 20 anos a despesa pública só poderá ser ajustada pela taxa de inflação. Trata-se de congelar a despesa pública durante 20 anos, o que terá um impacto brutal na saúde, na educação, nas infra-estruturas, na política de desenvolvimento nacional, no estímulo ao desenvolvimento económico. Muitas das conquistas sociais vão ser liquidadas por esta via, com a agravante de que esta política pode provocar uma recessão económica no país. O projecto de emenda já foi enviado para debate. Entretanto, já foi previamente aprovada uma prerrogativa do poder executivo para uso das verbas do orçamento...
A legalização das «pedaladas fiscais», apenas dois dias depois do golpe...
… Isso. O Congresso Nacional aprovou uma lei que beneficia o executivo e torna as «pedaladas fiscais» em procedimento permitido pelo governo federal. Flexibiliza as regras para abertura de créditos suplementares sem necessidade de autorização do Congresso.
2.ª – Alteração da legislação laboral, o que significa retirar direitos. O princípio que querem adoptar é o da prevalência do negociado sobre o legislado. Isto significa que, mesmo havendo uma legislação que estabelece direitos, se patrões e sindicatos negociarem outra coisa, é isso que prevalecerá. Obviamente, nas condições em que nós estamos, dificilmente o negociado será melhor, já que as partes não têm o mesmo poder. A lei deixa de se aplicar.
3.ª – A já anunciada reforma da Previdência, a reforma das pensões. Discute-se a idade mínima para a reforma; a desvinculação do salário mínimo do valor das pensões, o que vai fazer com que ao longo dos anos estas se desvalorizem, deixando as pessoas idosas desprotegidas, a viver o resto dos seus dias na miséria. E há também um estímulo à privatização da Previdência, levando a que cada trabalhador seja obrigado a poupar para a reforma... Mas quem é que pode poupar? Só as camadas já bem estabelecidas. É uma forma de esvaziar a Previdência pública.
Este conjunto de medidas é o primeiro aspecto da ofensiva contra os direitos sociais. Mas não é o único. Haverá uma consequência sobre o conjunto da sociedade que será o fechamento do regime político. Na verdade, o que está a ser instalado é um regime político, não apenas um governo. Um regime neoliberal na economia e conservador na política. Está a ser preparada uma reforma política, alterando o sistema eleitoral, através da criação de uma cláusula de barreira, em que abaixo de uma certa percentagem não se poderá aceder ao parlamento. Também estão a propor a proibição das coligações para eleições por método proporcional, para excluir as minorias, favorecer as forças maioritárias e impedir uma representação política que abarque a diversidade política do país.
Quanto ao financiamento dos partidos, das campanhas eleitorais, a direita não abre mão do financiamento por parte das empresas, que como se tem verificado é um dos principais responsáveis pela corrupção eleitoral. Outra alteração importante é a distribuição dos tempos de antena, que passaria a ser feita de acordo com a votação anterior, o que mais uma vez favorece os grandes partidos e prejudica a diversidade.
Apesar de todas as suas contradições, o processo contra a corrupção conheceu sob o mandato da presidente Dilma uma notória projecção. Como fica agora a situação?
A luta contra a corrupção, a que foi amplamente noticiada nos grandes meios de comunicação social, foi sempre uma bandeira usada pela direita para atacar governos progressistas. Basta dizer que o governo de Fernando Henrique Cardoso foi um dos mais corruptos do Brasil e nunca foi alvo de qualquer ataque ou denúncia nos media. Afastada a presidente Dilma, o que vai suceder é uma «operação abafa», como nós dizemos. Não é por acaso que já está em formatação no Congresso Nacional a minuta de um projecto de lei que permitirá amnistiar partidos, políticos e empresários envolvidos em doações eleitorais irregulares. Temer e os seus apoiantes vão fazer tudo o que puderem para abafar as denúncias, para parar a sangria.
No plano internacional, quais as consequências deste golpe de Estado no respeitante à América Latina?
O golpe institucional no Brasil não pode ser separado da ofensiva do imperialismo na América Latina visando liquidar as conquistas dos povos da região. O objectivo é mudar o carácter da integração regional que se desenvolveu fora da alçada imperialista, e travar os processos de cooperação anti-imperialista. O governo golpista de Temer está já a mudar as linhas da política externa e privilegiando a aproximação com os EUA e a União Europeia.
Como vai o PCdoB prosseguir a luta nas novas condições criadas na vida política brasileira?
O PCdoB defende a necessidade de antecipar as eleições, como forma de reposição da legalidade democrática. Esse objectivo exige a unidade das forças progressistas e a mobilização popular, a exemplo do que aconteceu com a campanha «Directas Já», mas é preciso sanar muitas divisões que resultaram do processo golpista. A convergência existente no seio da Frente Brasil Popular – coligação criada para disputar as presidenciais de 1989, integrando o Partido dos Trabalhadores, o Partido Comunista do Brasil e o Partido Socialista Brasileiro – permitiu a sua manutenção para além das eleições, mas posteriormente houve divergências que abalaram a coligação, designadamente o facto de o PT se ter oposto à realização de eleições antecipadas antes do afastamento da presidente Dilma. O PCdoB defendia essa solução, que também foi defendida nas ruas.
Agora importa reconstruir a unidade entre todas as forças progressistas para afastar o governo golpista ou, se tal não for possível, para enfrentar a direita nas eleições de 2018.