Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"Os banqueiros aguentam este Governo e esta política, pois aguentam. O povo português é que não"

Declaração política criticando o Orçamento do Estado que entrou em vigor no início deste ano, salientando que nunca um Orçamento suscitou tantos pedidos de fiscalização da constitucionalidade e tentativas de pressão sobre o Tribunal Constitucional

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
O Orçamento do Estado que entrou em vigor no início deste ano tem pelo menos três originalidades.
Em primeiro lugar, é o pior e o mais injusto Orçamento alguma vez aprovado nesta Assembleia.
Em segundo lugar, é o mais contestado de todos os Orçamentos alguma vez aprovados nesta Assembleia.
Em terceiro lugar, nunca um diploma aprovado nesta Assembleia suscitou tantos pedidos de fiscalização da constitucionalidade.
E, já agora, acrescento uma quarta originalidade: nunca um pedido de fiscalização de constitucionalidade, que é um ato normalíssimo em democracia, suscitou tantas tentativas de pressão sobre o Tribunal Constitucional, vindas de um Secretário de Estado do Orçamento, desastrado mas não desautorizado, e de um batalhão de comentadores e editorialistas de serviço que enxamearam o espaço mediático com observações a propósito, que oscilaram entre o mais simples disparate e a mais sofisticada manipulação.
O clima que foi artificialmente criado em torno dos pedidos de fiscalização da constitucionalidade de diversas normas do Orçamento obriga a que sejam postos alguns pontos nos ii.
Em primeiro lugar: a Constituição não está suspensa.
Não foi declarado nenhum estado de exceção constitucional. O que distingue um Estado democrático é o respeito pelo direito. Nenhum poder pode estar acima da lei e a Constituição, goste-se dela ou não, é a Lei Fundamental do País, que todos os poderes têm a obrigação de respeitar.
E não se invoque a crise, ou a emergência financeira, ou muito menos acordos com troicas, para justificar a violação da Constituição.
É precisamente em tempos de crise, em que os direitos dos cidadãos estão mais vulneráveis a violações e arbitrariedades, e em que aumenta o perigo dos abusos de poder, que o Estado de direito tem de ser afirmado como reduto intransponível da salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e do respeito pelas regras e valores democráticos.
Em segundo lugar: havendo convicções, ou dúvidas que sejam, sobre a constitucionalidade de disposições legais, é o Tribunal Constitucional a instituição própria para que essas questões sejam dirimidas. O facto de tanto o Presidente da República, como o Provedor de Justiça, como Deputados do PS, como todos dos Deputados do PCP, do BE e de Os Verdes, terem recorrido ao Tribunal Constitucional não significa que haja uma corrida ao Tribunal Constitucional, como já alguém disse, ou que haja uma tentativa de intervir politicamente pela via judicial.
A intervenção política sobre o Orçamento do Estado teve o seu tempo e o seu lugar, durante a apreciação parlamentar que precedeu a sua aprovação. As posições dos partidos ficaram claras — mais nuns casos que noutros, mas essa é outra questão.
No presente e no futuro próximo continuará a haver lugar para o debate político em torno das consequências económicas, sociais e políticas da execução deste Orçamento. Mas não é isso que se discute no Tribunal Constitucional. Só por ignorância ou má-fé se pode afirmar que os argumentos invocados perante o Tribunal Constitucional são de natureza política.
O que se pede ao Tribunal Constitucional é uma apreciação estritamente jurisdicional. É a questão de saber se concretas disposições do Orçamento do Estado respeitam disposições constitucionais, concreta e rigorosamente analisado o seu alcance jurídico, e o que se pede é que em caso de violação da Constituição sejam retiradas as consequências constitucionalmente previstas.
O facto de tanto o Presidente da República, como o Provedor de Justiça, como Deputados de todos os partidos da oposição terem apresentado recursos perante o Tribunal Constitucional, não significa, repito, que haja uma corrida ao Tribunal Constitucional.
O que significa é que nunca um Orçamento de Estado suscitou tantas convicções de inconstitucionalidades como este.
A responsabilidade pelos recursos perante o Tribunal Constitucional não é de quem os apresentou, é do Governo, que fez este Orçamento, e da maioria, que o aprovou.
Em terceiro lugar: é preciso desautorizar, com toda a firmeza, as insinuações que têm enxameado a comunicação social acerca dos supostos custos, políticos e financeiros, de uma eventual declaração de inconstitucionalidade de algumas disposições do Orçamento.
As estimativas oscilam entre os 1500 milhões e os 5000 milhões e quase se insinua que, em caso de declaração de inconstitucionalidade, seria o Tribunal a assumir a responsabilidade financeira da sua decisão.
Diz-se, por outro lado, que a consequência inevitável de uma declaração de inconstitucionalidade seria a queda do Governo, como que a insinuar que seria, nesse caso, o Tribunal Constitucional a decidir a demissão do Governo.
Entendamo-nos pois: quem fez o Orçamento, tal como está, não foi o Tribunal Constitucional nem os que a ele recorreram. E se alguma disposição for declarada inconstitucional, a responsabilidade não é de quem o invoca nem de quem o declara. A responsabilidade única é de quem insistiu em propor e aprovar um Orçamento sem respeitar a Constituição.
A decisão do Tribunal Constitucional, seja ela qual for, não custará ao País, nem um nem 5000 milhões de euros. As inconstitucionalidades é que custam muito, ao País e a quem as sofre.
O que se pede ao Tribunal Constitucional é a afirmação ou a reposição da legalidade constitucional. Ninguém lhe peça que assuma as responsabilidades políticas que são do Governo e que só o Governo tem de assumir.
Quanto à demissão do Governo, sejamos também claros. O Tribunal Constitucional, seja qual for — sublinho — a sua decisão, nunca demitirá o Governo. O que vai demitir o Governo são as consequências das suas decisões; o que vai demitir o Governo é o fracasso rotundo da sua política e o total descrédito em que este Governo já caiu aos olhos dos portugueses.
Este Governo vai cair, porque já quase ninguém o aguenta. Este Governo já só tem o apoio dos ministros — mais de uns que de outros —, da troica e dos banqueiros, que esperam a recapitalização dos seus bancos à custa dos contribuintes.
Os banqueiros, esses aguentam este Governo e esta política. Aguentam, pois aguentam! O povo português é que já não aguenta.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Luís Fazenda,
Agradeço a sua pergunta e, em resposta, permito-me sublinhar alguns aspetos.
Em primeiro lugar, quanto à legitimidade de todas as iniciativas que foram tomadas de pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade de normas do Orçamento perante o Tribunal Constitucional, tal como disse da tribuna, é um ato normal em democracia que quem tem o poder constitucional de poder suscitar a fiscalização da constitucionalidade o faça, havendo a sua convicção de que, de facto, um diploma contém inconstitucionalidades.
Foi isso que presidiu à iniciativa que subscrevemos junto do Tribunal Constitucional e foi, seguramente, esse o espírito que presidiu à iniciativa que o Presidente da República tomou, à iniciativa que o Provedor de Justiça tomou e à iniciativa que Deputados do Partido Socialista também tomaram. Portanto, isso é normalíssimo — mas não parecia! Quando, há pouco, da tribuna, me referi a este ato como um ato normalíssimo, ouvi um bruaá na bancada PSD, seguramente vindo de quem ainda não percebeu que vive num Estado democrático, onde os direitos constitucionais são direitos para exercer com toda a normalidade.
Por outro lado, relativamente às declarações do Sr. Secretário de Estado do Orçamento, gostaria de dizer que elas são, de facto, inconcebíveis, são daquelas coisas que se ouve mas nem se acredita, daquelas que é preciso ouvir duas vezes, para termos a certeza de que não nos enganámos, de que não foi uma ilusão auditiva.
Ou seja, houve um Secretário de Estado que se permitiu apresentar uma espécie de fatura, em milhões de euros, sobre os custos de uma eventual decisão do Tribunal Constitucional, o que suscitou da parte de alguns Deputados da maioria a sensatez de procurar demarcar-se daquela afirmação. Mas, da parte do Governo, não vimos nenhuma desautorização daquele Secretário de Estado, o que é, de facto, lamentável.
Enfim, diria que essa declaração pouco afeta as instituições, porque é uma afirmação inconsequente. É óbvio que o Tribunal Constitucional nunca se deixará influenciar por afirmações desse tipo, porque no dia em que os juízes se deixassem influenciar por afirmações desse tipo era sinal de que já não viveríamos num Estado de direito democrático saudável. E, obviamente, não estamos nessa situação e estamos convictos de que não é coma firmações dessas que o Governo «levará a água ao seu moinho».
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Paulo Mota Pinto,
Eu esperaria da sua parte uma intervenção mais elevada sobre esta matéria.
O seu pedido de esclarecimento, para além de, em grande parte, se limitar a «tirar esqueletos do armário», contém falsidades históricas, porque se há partido que sempre combateu a Constituição de 1976 é o PSD. Sempre!
Aliás, já que o Sr. Deputado fala de memória histórica, lembro que o PSD queria que a Constituição, mesmo tendo sido aprovada na Assembleia Constituinte, fosse submetida a um referendo.
Não queria que entrasse em vigor!
O PSD começou a contestar a Constituição ainda antes de ela ter sido aprovada, e continua depois. Mais: em 1980, o PSD queria, através da eleição presidencial do General Soares Carneiro, consumar um golpe de Estado constitucional.
Portanto, Sr. Deputado, não vamos por aí, porque o PSD nunca se conformou com a Constituição, nem ontem, nem hoje, como é evidente. Aliás, do nosso ponto de vista, o Orçamento do Estado para 2013 demonstra isso, mas não é por aí que vamos.
Porém, Sr. Deputado, há um aspeto em que concordo consigo: o Tribunal Constitucional não se deixa pressionar. Daí que, na minha intervenção — o Sr. Deputado terá reparado e, como tal, não se referiu a isso —, eu tenha tido o cuidado de não vir para aqui esgrimir argumentos sobre a constitucionalidade do Orçamento. Esses argumentos foram esgrimidos no debate parlamentar e é o Tribunal Constitucional que terá de os apreciar, não aqui; não é essa a fase em que estamos. Portanto, quanto a isto estamos de acordo, mas tenho de dizer-lhe, Sr. Deputado, que a referência que fez, ao terminar a sua intervenção, ao Sr. Dr. Vital Moreira é caricata. E é caricata, para já, porque não pode confrontar-nos com as posições políticas do Dr. Vital Moreira; se quiser, poderá confrontar o Partido Socialista, a que ele pertence, mas a nós não.
O Sr. Eurodeputado Vital Moreira não tem rigorosamente nada a ver com o PCP, obviamente, e não tem nada a ver também com as posições que, enquanto constitucionalista, sempre defendeu.
De facto, eu diria que as declarações de hoje do Eurodeputado Vital Moreira são uma espécie de Constituição da República Portuguesa do próprio, desautorizada.
É que tudo aquilo que o Dr. Vital Moreira escreveu até há muito pouco tempo em matéria constitucional é rigorosamente o contrário daquilo que, pelos vistos, hoje defende. Mas, Sr. Deputado, isso é um problema dele, não é um problema nosso, como compreenderá!
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado José Luís Ferreira,
Aagradeço a questão colocada.
Sr. Deputado, vamos ver, de facto, em que ponto estamos.
Esta Assembleia teve oportunidade de, durante o tempo constitucional e regimentalmente previsto, debater o Orçamento do Estado, tendo todos os partidos manifestado aqui as suas posições. Nessa altura, durante o debate político, não faltou também quem alertasse para o facto de, independentemente das discordâncias políticas, haver disposições do Orçamento de duvidosa constitucionalidade. Mas isso fez parte do debate político. Agora estamos na fase em que entidades com competência para o fazer requereram ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade de diversas normas, e o Tribunal Constitucional vai decidir como muito bem entender, no seu juízo jurisdicional de constitucionalidade. Não vale a pena estar aqui agora, seja de que lado for, a esgrimir argumentos que defendam constitucionalidade ou que invoquem a inconstitucionalidade das disposições orçamentais. Como se costuma dizer, os dados estão lançados e o Tribunal Constitucional julgará com os poderes soberanos de que dispõe.
Porém, é preciso dizer também que o Governo e a maioria que aprovou o Orçamento são os únicos responsáveis por todas as disposições que constam do Orçamento do Estado.
Se alguma disposição do Orçamento do Estado for declarada inconstitucional, o Governo e a maioria são os únicos responsáveis por isso.
Portanto, não podem querer atirar a responsabilidade por essas normas e pelas suas consequências para outrem quando a responsabilidade é inteiramente sua.
Quando vemos, da parte do Governo e da maioria, um indisfarçável nervosismo por a questão ter sido suscitada perante o Tribunal Constitucional somos levados a pensar que, como quem não deve não teme, haverá também da parte do Governo e da maioria alguém que esteja muito receoso relativamente à constitucionalidade das normas que inseriram no Orçamento do Estado. Mas esse é um problema da maioria; o que vamos fazer, como toda gente deve fazer, é aguardar serenamente a decisão do Tribunal Constitucional e atuar com toda a serenidade seja qual for a decisão que o Tribunal venha a tomar.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Luís Pita Ameixa,
Muito obrigado pela sua questão, que nos remete para uma outra muito relevante, que tem a ver com a validade da Constituição enquanto Lei Fundamental do País e com a forma como esta maioria se conforma mal com esse princípio basilar do Estado de direito.
O respeito pela Constituição é a pedra de toque do Estado de direito democrático.
Ora, sabemos que o PSD e o CDS convivem mal com a Constituição, embora o CDS tenha tido a coerência de ter votado contra a Constituição em 1976, coisa que o PSD não fez, tendo preferido votar a favor com reserva mental.
O PSD nunca se conformou, pois, com a Constituição. Aliás, a História recente mostra-nos isso: lembramo-nos de que a primeira operação lançada pelo Dr. Pedro Passos Coelho assim que assumiu a liderança do PSD foi o ataque à Constituição, defendendo a abertura de um processo de revisão constitucional.
O que é fundamental afirmar é que não podemos aceitar que Portugal viva num estado de exceção constitucional não declarado. Não vivemos em estado de sítio, nem em estado de emergência, embora estas situações, na sua declaração, têm de respeitar regras constitucionais.
Mas nós não estamos numa situação de exceção constitucional, em que se possa dizer que, devido a uma situação de emergência, devido a uma grave situação financeira, a democracia, ou seja, a Constituição suspende-se por um determinado período. Isso é inaceitável! O Governo tem a legitimidade que a própria Constituição lhe confere e não pode pretender invocar nenhuma legitimidade de qualquer espécie para não respeitar a Constituição.
Essa é uma questão fundamental. E trata-se de respeitar a Constituição em todas as suas dimensões, não apenas na dimensão de organização do poder político e do respeito pelo funcionamento regular das instituições, mas também do respeito pelos direitos económicos, sociais e culturais que a Constituição consagra e, entre eles, o Estado social de direito, que continua a consagrar.
Isso é importante que seja hoje, mais do que nunca, afirmado sem qualquer hesitação e com toda a firmeza.

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