Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Autoriza o Governo a aprovar o novo Código do Procedimento Administrativo

(proposta de lei n.º 224/XII/3.ª)

Sr.ª Presidente,
Estava a pensar inscrever-me um pouco mais adiante, mas creio que se justifica plenamente intervir agora.
Manifestamente, o que aqui foi sugerido pelo Sr. Deputado Filipe Neto Brandão não foi nem mais nem menos do que aquilo que se fez sempre que, nesta Assembleia, foi discutido o Código do Procedimento Administrativo, quer em 1991, quer em 1995. Foi por autorização legislativa, ninguém contestou isso, mas quem está aqui há mais anos lembra-se perfeitamente de a ex-Secretária de Estado Isabel Corte-Real se ter disponibilizado, e de ter sido o próprio PSD a propor ao Plenário, para participar numa reunião da 1.ª Comissão para discutir aquilo que se entendeu que era importante discutir, não para avocar a votação do decreto-lei na especialidade, porque isso nunca esteve em causa, mas para que houvesse uma discussão na Assembleia da República sobre o Código do Procedimento Administrativo que fosse para além dos escassos minutos que temos para discutir em Plenário. Nunca ninguém pôs nada disso em causa!
Sempre houve, em Portugal — e com isto iniciava a parte mais substancial da minha intervenção —, quer na comunidade jurídica, quer na Assembleia da República, um grande consenso quanto à necessidade de haver um Código do Procedimento Administrativo, que só houve em 1991. Foi amplamente consensual.
Em 1996, foi publicada a primeira e única, até agora, reforma do Código do Procedimento Administrativo, aprovado na sequência de uma lei de autorização legislativa, mas que foi discutido em comissão, tal como, aliás, posteriormente, e aí já com os Governos do Partido Socialista, quando se fez a primeira legislação integrada sobre contencioso administrativo, que também ocorreu por autorização legislativa, mas o Prof. Mário Aroso de Almeida foi à 1.ª Comissão discutir as opções fundamentais.
Portanto, aquilo que aqui se propõe não é nem mais nem menos do que aquilo que sempre se fez em matéria de procedimento administrativo.
A Sr.ª Deputada Francisca Almeida falou aqui como se estivesse do lado da oposição uma barricada para toda a gente vir fustigar a proposta de Código do Procedimento Administrativo. Ora, não é isso que está em causa. Todos reconhecerão que esta proposta de revisão, aliás, tal como sucedeu com o projeto inicial e a primeira revisão, foi preparada por comissões revisoras que nos merecem toda a consideração, com eminentes administrativistas, que tiveram discussões amplas entre eles — quem teve interesse em acompanhar esta matéria leu, com certeza, as publicações já feitas, designadamente os Cadernos de Justiça Administrativa, com os debates, muitos deles dogmáticos, científicos, mas meritórios —, e, portanto, não temos aqui barricadas opostas relativamente ao Código do Procedimento Administrativo. O que haverá é dúvidas em relação a determinadas disposições, a determinados conceitos, que se é legítimo que tivessem surgido nos debates da Comissão Revisora, ainda é mais legítimo que surjam na Assembleia da República. Isto é naturalíssimo, e nada justifica que a maioria queira coartar um debate com o qual a Assembleia da República só terá a ganhar se se realizar. E, aliás, ficaremos com os trabalhos preparatórios enriquecidos, o que, seguramente, só contribuirá, no futuro, para uma melhor aplicação do Código do Procedimento Administrativo.
Portanto, espero que a maioria tenha bom senso e que esta revisão do procedimento administrativo não fique manchada na Assembleia da República por uma embirração da maioria e do Governo, porque, manifestamente, não há nenhuma necessidade disso. Insisto: não há nenhuma necessidade disso!
Relativamente à proposta que aqui está em debate, reconhecemos que há um trabalho meritório por parte da Comissão Revisora e que este Código do Procedimento Administrativo pode conter melhorias significativas em relação ao Código atualmente existente, que já tem, de facto, uns anos, pelo que é natural que, ao fim destes anos, seja feita uma revisão. Quer-nos parecer que a entrada em vigor, a vacatio legis de 60 dias para uma alteração tão profunda num Código é muito temerária. Seria, do nosso ponto de vista, mais avisado haver uma dilação um pouco maior da entrada em vigor. 60 dias parece-nos manifestamente curto, pelo que 90 ou 120 dias, no mínimo, seria mais avisado,
Aquilo que nos parece é que este Código do Procedimento Administrativo é um Código em contraciclo com aquela que tem sido a atuação do Governo em matéria de Administração Pública. Ou seja, estamos a aperfeiçoar um Código do Procedimento Administrativo para aproximar a Administração dos cidadãos, para que os cidadãos possam ter maior participação, para que os seus interesses protegidos e legítimos relativamente à atuação da Administração Pública tenham uma maior tutela, mas, depois, está o Governo está a desmantelar a Administração Pública, depois há para aí um PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado) que prevê o encerramento de mais de metade das repartições de finanças, depois, os cidadãos querem ser atendidos por um funcionário da Administração Pública, mas esse funcionário já não existe, porque, entretanto, o Governo já desmantelou o serviço, extinguiu o posto de trabalho e mandou-o para a mobilidade. Estamos, de facto, em contraciclo, ou seja, esperamos poder ficar com um Código do Procedimento Administrativo que tenha um conjunto de direitos importantes perante a Administração, que aumente as garantias dos cidadãos, mas, depois, quando os cidadãos procuram um relacionamento normal com a Administração Pública, não conseguem, porque são atendidos por um call center, porque não conseguem resolver o problema, porque têm de perder dois dias para renovar a carta de condução, uma vez que o Governo tem vindo a desenvolver não só uma prática de ataque aos funcionários públicos, de todas as formas e feitios, desde cortes salariais a rescisões de contratos na Administração Pública, mas também tem vindo a desenvolver uma ação profundamente destrutiva da relação dos cidadãos com a Administração Pública, na medida em que, com esta ofensiva contra a Administração Pública, contra os serviços públicos, os cidadãos não conseguem encontrar na Administração Pública a resposta necessária, que era legítimo que pudessem encontrar. E aí a culpa não é dos funcionários, a culpa é de quem tem governado o País desta forma.
(…)
Sr.ª Presidente,
Para além de ser evidente o que disse o Deputado Filipe Neto Brandão, ou seja, que se não houver uma baixa à Comissão, não há audições na Comissão, provavelmente isso não foi feito, porque nunca foi necessário, uma vez que sempre que se discutiu aqui o Código do Procedimento Administrativo houve consenso de baixa à Comissão e de realização de audições na Comissão, que, normalmente, são as audições do membro do Governo responsável — da última vez, lembro-me perfeitamente que foi a Dr.ª Isabel Corte-Real, que era Secretária de Estado da Administração Pública — e, eventualmente, de um responsável da Comissão Revisora, que, no caso concreto, será o Prof. Fausto de Quadros. Mas nunca foi necessário fazer propostas prévias de audição na Comissão, porque isso foi sempre consensualizado no Plenário e nunca houve qualquer problema.
(…)

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
Só um Governo e uma maioria totalmente desorientados é que conduziriam a Assembleia da República a que, pela primeira vez, a apreciação de uma proposta de alteração legislativa sobre o Código do Procedimento Administrativo fosse o enxovalho da Assembleia.
Quando alguém for consultar os trabalhos preparatórios e confrontar o que aconteceu em 1991 e em 1996 com o que aconteceu neste infeliz ano de 2014 ficará com a noção da total desorientação com que estes trabalhos foram conduzidos pela maioria e pelo Governo.
É que o Governo pede à Assembleia da República autorização para, daqui a seis meses, aprovar o Código do Procedimento Administrativo — o pedido de autorização é para 180 dias!
Ora bem, o Governo pede autorização para aprovar o decreto-lei no prazo de seis meses, mas nem a Sr.ª Ministra da Justiça, nem o representante da Comissão Revisora têm tempo para, na semana que vem, virem à 1.ª Comissão explicar as suas opções.
E diz a Sr.ª Deputada Francisca Almeida: «Mas toda a gente discutiu isto; a Comissão Revisora passou largos meses a discutir isto». É verdade que passou largos meses a discutir isto, mas nós, na Assembleia da República, tivemos 6 minutos.
Nós, que representamos o povo, temos 6 minutos!… Gostaríamos de ter um pouco mais. Ou seja, gostaríamos que esta matéria pudesse ser debatida na Comissão com um pouco mais de profundidade.
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados,
É pedir muito? Não é! É pedir o mínimo dos mínimos, é pedir o que se fez!
É pedir o que maiorias anteriores, do PSD e do CDS, aceitaram pacificamente que se fizesse, porque não estavam, manifestamente, com o grau de desorientação com que os senhores estão hoje, apostados em criar conflitos institucionais e fazendo tábua-rasa das mais elementares regras de funcionamento democrático desta Assembleia da República.
É uma pena, é lamentável que este debate do Código do Procedimento Administrativo fique manchado pelas piores e absolutamente gratuitas razões. Esta atitude da maioria e do Governo é absolutamente gratuita, só vem manchar este debate e vem, obviamente, criar uma situação no mínimo embaraçosa e enxovalhante para com a Assembleia da República, porque, quando se fizer a história deste debate deste Código, toda a gente vai dizer que a Assembleia da República, pura e simplesmente, debateu esta matéria em modo de «gato sobre brasas», sem ter o mínimo de cuidado que seria exigível na apreciação de um diploma tão relevante como é o Código do Procedimento Administrativo.
É lamentável que isto tenha acontecido.

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