O PCP realizou uma Audição Parlamentar às organizações representativas dos trabalhadores da Assistência em Escala no dia 12 de janeiro de 2016. Uma Audição que contou com mais de três dezenas de trabalhadores, muitos deles representando Organizações de Trabalhadores do sector, e permitiu aprofundar o conhecimento do sector e discutir as medidas a implementar, tendo motivado a apresentação deste projeto de resolução.
A Assistência em Escala, vulgo «Handling», é uma das operações estruturantes do regular funcionamento dos aeroportos nacionais, envolvendo mais de 5000 trabalhadores. Fruto das opções políticas impostas ao sector nos últimos 20 anos, a Assistência em Escala encontra-se profundamente desestabilizada, a qualidade do serviço diminuiu, grassa a precariedade e a subcontratação, degradam-se os níveis salariais e as condições de trabalho, anularam-se as exigências de certificação profissional, transformou-se a formação inicial num negócio das empresas, e coloca-se em causa a segurança operacional e a fiabilidade dos aeroportos nacionais.
A importância do sector para a segurança da operação aérea está completamente desvalorizada pelas autoridades e posta em causa pela liberalização. Não se pode continuar a ignorar questões como a importância do correto equilíbrio do avião ou do cumprimento de todos os procedimentos na circulação de passageiros e bagagem. Hoje, fruto da falta de formação, da precariedade e do medo instalado em largos sectores, das orientações economicistas e da falta de pessoal, existem aviões a voar sem que seja realizada a busca de bagagem dos passageiros ausentes, registam-se casos de aviões abandonados ou abertos na placa e há incidentes que não são devidamente reportados.
Com a liberalização e a precarização das relações laborais, degradaram-se as condições de trabalho, com um aumento brutal dos acidentes de trabalho, do desgaste profissional e do número de baixas. Paralelamente, os trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho são cada vez pior tratados pelas seguradoras privadas, que concorrem entre si para prestar o pior serviço possível. E a concorrência, a par da cumplicidade dos reguladores, tem atuado objetivamente como fator de degradação dessas condições, sendo tudo submetido à necessidade da redução de custos a qualquer preço.
Tal como outros sectores, o processo de liberalização tem sido conduzido suportado em diretivas comunitárias, mas levando-as mais longe. Como sempre, no que diz respeito às Diretivas Comunitárias, é nos resultados (e não nos objetivos formais) que se podem verificar as suas verdadeiras intenções. Procuraram, e conseguiram, reduzir o custo da Assistência em Escala às Companhias Aéreas à custa da redução do preço da força de trabalho e da degradação das condições de trabalho. Procuraram degradar a soberania nacional e fragilizar as companhias aéreas de bandeira dos Estados periféricos, e foi exatamente isso que aconteceu, com a Assistência em Escala, que era um sector lucrativo da TAP, arrancada à companhia às ordens das diretivas. Degradaram a segurança e a fiabilidade da operação para reduzir custos. Não podemos esquecer o objetivo, que esteve formalmente expresso num dos relatórios da Comissão: o degradar as condições de trabalho da Assistência em Escala até colocá-las no mesmo plano do sector da vigilância.
Mas com o Governo PSD/CDS, em vez de se combater as diretivas como elas mereciam, optou-se por ir mais longe. Com o Despacho 14886-A impôs o alargamento do número de operadores de Assistência em Escala no Aeroporto de Lisboa, e através da ANAC adotou uma interpretação (única na Europa) da Diretiva – para Aeroportos com menos passageiros, o número de operadores é ilimitado. E paralelamente, permitiu tudo: o escandaloso despedimento coletivo nas mangas de Faro; o falso self-handling da Ryanair nos Açores; etc.
Mesmo quando a Comissão foi forçada a reconhecer que se estava a degradar «demasiado» as condições de trabalho e a segurança operacional, e a suspender o processo de maior liberalização, o Governo manteve o rumo liberalizador, primeiro seguido por causa das diretivas, e depois mantido apesar das diretivas.
A privatização da ANA (detentora de 100% da segunda maior operadora, a Portway) e o processo em curso de privatização da TAP (detentora de 49,9% da propriedade e maior cliente com 75% da operação da maior operadora, a SPDH/Groundforce) trouxeram novos e preocupantes fatores de desestabilização de um sector que já estava profundamente desestabilizado. A multinacional Vinci cedo revelou que o centro das suas prioridades não estava na Assistência em Escala, onde não poderia retirar os lucros massivos que conta arrecadar à custa da ANA e dos Aeroportos Nacionais. E o plano da Azul e de David Neeleman para a TAP terá como consequência provável a adoção por esta das mesmas práticas da Ryanair, ou seja, um falso self-handling assente em prestadoras de serviços e empresas de trabalho temporário.
Este é o quadro que temos, e sobre o qual é imperioso agir em defesa do trabalho e do sector, pois nem queremos ser um país de mão de obra precária e sobre-explorada, nem queremos ser um país que aposte no baixo custo como fator de atração. Portugal tem que ser pensado para os que cá vivem e trabalham, e não para os seus exploradores, tenham estes a nacionalidade que tiverem.
Atribuição de Licenças, desregulamentação e falso Self-handling
No que diz respeito à renovação das licenças, são duas as situações que importa corrigir desde já e exigem intervenção: a que se reporta aos aeroportos com mais de 15 milhões de passageiros por ano, e aquela que se reporta aos aeroportos com menos de 1 milhão de passageiros.
No primeiro caso, o alargamento imposto, através do despacho 14886 A, de dois para três operadores no que respeita às licenças de Assistência em Escala no Aeroporto de Lisboa, exigência que supera o previsto pela diretiva e pela lei, deve ser imediatamente alterada, com a renovação à SPDH das devidas licenças - a Portway está, por enquanto, dispensada desta necessidade - acabando com uma situação que se arrasta há demasiado tempo e impedindo o seu agravamento. Um outro aspeto grave deste despacho, o de separar as licenças por tipo de atividade, que poderia implicar, no limite, a existência de oito operadores diferentes no Aeroporto de Lisboa, deve também ser corrigido.
No segundo caso, a extraordinária interpretação da ANAC de que para Aeroportos com menos de 1 milhão de passageiros o número de operadores deve ser ilimitado, impõe uma portaria ou despacho clarificador, na medida em que não se justificará uma alteração ao decreto-lei, pois este não permite a leitura que a ANAC tem feito.
Este é um problema essencialmente de combate à precariedade, pois a precarização e a exploração são de facto os verdadeiros objetivos deste despacho. Mas à sua aplicabilidade colocam-se todo o tipo de objeções concretas, como por exemplo o facto, atestado por qualquer profissional do Aeroporto de Lisboa, da ausência de espaço até para a colocação do material dos dois atuais operadores, quanto mais de 3, 4 ou 8 deles.
Resolvidos estes problemas, o combate à precariedade e à desregulamentação passa pelo cumprimento da legislação existente. As autoridades têm sido cúmplices daquilo que devem combater. Mas ainda assim, pode ser útil uma intervenção legislativa que clarifique o conteúdo da Assistência em Escala, que aperte os critérios para o self-handling, impedindo práticas de falso self-handling como as que a Ryanair realiza hoje nos Açores. Essa clarificação pode ser realizada por via da Assembleia da República, mas pode igualmente ser realizada pelo Governo através de um despacho clarificador.
Já a necessidade de restringir as possibilidades de subcontratação de serviços e o recurso a empresas de trabalho temporário para defender a estabilidade laboral e a segurança operacional implicará alterar o decreto-lei 275/99 e a portaria 804/99, o que poderá ser feito mais facilmente pelo Governo que pela Assembleia, apesar desta, em última análise, também o poder fazer.
Contratação Coletiva
Não existe contratação coletiva sectorial nem legislação laboral específica. Os únicos instrumentos coletivos existentes são o Acordo de Empresa da SPdH e o Acordo de Empresa da SATA. A Portway continua a fugir à assinatura de um contrato coletivo. O facto destes instrumentos sectoriais não existirem funciona como mecanismo que permite que a «concorrência» se exerça não entre a qualidade do serviço ou da gestão, mas atue sobre o preço da força de trabalho e as condições de trabalho.
Temos perfeita consciência que só a luta dos trabalhadores conseguirá inverter este quadro. Só a luta dos trabalhadores conseguirá impor ao patronato essa assinatura. Mas o Governo e a Assembleia da República não são neutros nesta luta. Da mesma forma que intervieram no passado dando força ao patronato do sector, podem passar a intervir no sentido contrário, dando força aos trabalhadores.
E essa intervenção impõe-se. Desde logo fazendo respeitar a lei, através de um funcionamento eficaz da ACT e da ANAC, onde esta impõe que «a atribuição de uma licença, para o exercício da autoassistência ou para a prestação a terceiros de serviços de assistência em escala, depende» de se «aplicar os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho» como determinam alíneas 1g e 2d do artigo 6.º do Decreto-lei 275/99. E se necessário, reforçando ainda mais esses mecanismos que exigem a aceitação da contratação coletiva como requisito para o acesso à atividade.
Formação e certificação profissional
O anterior governo eliminou a necessidade de certificação profissional, numa medida destinada a facilitar a precarização das relações laborais e a redução do preço da força de trabalho. Uma medida que é lamentável por outras e poderosas razões, tão evidentes, como as responsabilidades destes profissionais na segurança aérea. Recentemente, e resultando da ação direta do SITAVA/CGTP-IN, da sua luta e proposta técnica, foi homologada a profissão de TTAE, medida positiva que deve agora ser utilizada para a normalização profissional em todos os operadores.
Paralelamente, a formação profissional transformou-se cada vez mais num negócio das empresas de handling, que cobram valores entre 400 e 700 euros pelo acesso à formação inicial, sem garantias de trabalho, e arrancando ainda trabalho gratuito aos formandos. É evidente que as empresas se limitaram a aproveitar a situação para ganhar dinheiro à custa do crescente desemprego e do desespero de milhares de trabalhadores. Mas este comportamento reprovável só aconteceu por cumplicidades dos reguladores e do Governo. Essas cumplicidades devem ser eliminadas.
Acautelar as consequências da privatização da TAP
O processo de privatização da TAP, no que à Assistência em Escala diz diretamente respeito, trouxe riscos gigantescos para a SPdH, quer pelo facto de a TAP deter 49,9% da SPDH, quer pelo facto de 75% da operação da SPdH ser para a TAP. Se a TAP optar por soluções mais precárias, isso irá desestabilizar completamente a SPdH e colocar em risco centenas ou mesmo milhares de postos de trabalho. E com a privatização, a TAP deixaria de ter qualquer tipo de preocupação com os efeitos das suas políticas em Portugal – a criação de lucros e rendas para os detentores do seu capital passaria a ser o único verdadeiro objetivo da sua existência.
O melhor mecanismo que o Estado dispõe face aos perigos da privatização é justamente a opção de não privatizar. Medida que deve ser imediatamente tomada, acompanhada de um papel futuro mais ativo da TAP, enquanto empresa pública e enquanto detentora de quase metade do capital da SPdH, no combate à desregulamentação do sector e à precariedade.
Acautelar as consequências da privatização da ANA
O sector sofre por duas vias as consequências desta privatização. Diretamente, na medida em que a multinacional Vinci não escondeu, desde o primeiro dia, que a Assistência em escala era uma atividade secundária e pouco atrativa para si. Indiretamente porque a Vinci confrontou os operadores, particularmente a SPdH, com significativos aumentos de alugueres e outros custos, cobrando um dízimo cada vez maior às operações que se encontram a jusante do Aeroporto.
Também aqui o melhor mecanismo para combater as consequências desta privatização é revertendo-a. Mas enquanto essa medida não for tomada, o Estado tem instrumentos para atenuar as consequências da oferta da ANA à multinacional Vinci.
Acautelar as consequências do peso das low-cost
A aposta nas «low-cost» é uma opção desastrosa, também para o sector do handling. Durante anos, a Portway praticou preços abaixo do custo à Ryanair, contribuindo para a sua implantação e para a redução generalizada dos custos com a Assistência em Escala. Mas as low-cost atuam sempre da mesma forma: começam por condicionar a sua «vinda» à oferta de condições mais favoráveis, para terminarem chantageando os Estados e os Aeroportos assim que começam a ter um peso significativo.
É o que está a acontecer, e está a ameaçar a própria Portway, que pode vir a rapidamente perder a Ryanair para o falso «self-handling», colocando em risco mais de mil postos de trabalho. É necessário intervir já e sem hesitações – defendendo os postos de trabalho e a segurança aeroportuária.
ANAC e ACT: acabar com as cumplicidades para com a liberalização, recolocar as autoridades do lado da lei
Estas duas autoridades estão hoje completamente desautorizadas aos olhos dos trabalhadores do sector, devido a uma prática sistemática de cumplicidade com as violações mais grosseiras cometidas pelos operadores. Alguns exemplos relatados são particularmente significativos: o caso do despedimento selvagem nas mangas de Faro, onde as autoridades nada fizeram mesmo depois de conhecerem os mails das chefias reconhecendo o crime; ou o sistemático fechar de olhos à violação da lei da greve; a cumplicidade com o falso self-handling da Ryanair nos Açores; as rocambolescas interpretações jurídicas à la carte; etc.
A esta descredibilização – pela sua própria prática – acresce a evidente falta de recursos humanos para cumprirem as suas funções, e o possuírem Administrações politicamente comprometidas com o não cumprimento da lei e, no caso da ANAC, juridicamente impossibilitadas de intervir por incompatibilidades formais.
Também aqui, é urgente uma intervenção do Governo, credibilizando a ANAC e a ACT e dotando-as dos meios necessários à sua atividade.
Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte resolução:
Resolução
A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República,
1. Pronunciar-se pela necessidade de um plano urgente de intervenção para o sector da Assistência em Escala, discutido com as Organizações Representativas dos Trabalhadores do sector, apresentado à Assembleia da República no prazo de 90 dias com as alterações legislativas que o mesmo imponha e que aponte medidas no sentido de, nomeadamente:
a) Travar o processo de liberalização em curso;
b) Reforçar a regulamentação;
c) Combater a precariedade e promover o trabalho com direitos;
d) Combater a sinistralidade laboral e promover a saúde no trabalho;
e) Acautelar as consequências do processo de privatização da TAP e da ANA;
f) Reforçar a fiscalização impedindo o crescente recurso às empresas de trabalho temporário, às prestadoras de serviço e ao falso «self-handling»;
g) Reforçar os mecanismos de certificação e formação profissional, contribuindo para a transparência e lisura de processos;
h) Reforçar e credibilizar a intervenção da ACT e da ANAC.
2. Recomendar que, independentemente desse plano, seja de imediato revogado o Despacho n.º 14886 A/2013, de 15 de novembro, e sejam atribuídas à SPdH/Groundforce as licenças para a respetiva operação aeroportuária.
Assembleia da República, em 15 de janeiro de 2016