Na próxima quarta-feira a Assembleia da República iniciará o debate da “reforma fiscal”.
É facto que se impõe sublinhar, pois significa que da aparente
unanimidade sobre a necessidade da reforma se passa agora ao patamar
muito mais exigente da concretização da reforma. É evidente que a
reforma fiscal se não esgota nos impostos sobre o rendimento, e que o
processo que se vai iniciar deverá, desejavelmente, ter continuidade
noutras áreas do sistema fiscal, desde logo na da tributação do
património. Mas continuo a pensar, por um lado, que seria temerário,
eventualmente contraproducente, avançar em simultâneo com todo o
processo de reforma fiscal e, por outro lado, que a prioridade deve ser
dada aos impostos sobre o rendimento, por ser nestes que mais gritantes
se tornam a actual política de “favores fiscais” e a mais grave
afectação dos princípios da igualdade e da justiça fiscais.
Ao
fazer uso do seu direito de agendamento potestativo com o seu projecto
de lei sobre a reforma dos impostos sobre o rendimento e ao autorizar
que outros projectos sobre idêntica matéria pudessem ser discutidos e
votados no mesmo momento, o Grupo Parlamentar do PCP conseguiu, desde
já, dois resultados a assinalar: obrigou outros grupos parlamentares e
o Governo a apresentarem as suas propostas concretas para essa reforma;
impôs que de uma vez por todas se passe das palavras aos actos, que a
reforma fiscal deixe de ser objecto recorrente de um debate abstracto e
se transforme num processo em que se confrontam as diversas ( e em
muitos aspectos divergentes) soluções concretas de cada força política
para essa mesma reforma. E espero que a estes se venha somar um
terceiro resultado, o de a curto prazo o país poder dispor de um novo e
mais justo regime de tributação dos rendimentos.
Ao projecto de
lei do PCP (apresentado em Janeiro passado) juntam-se agora os do BE,
do CDS-PP, do PSD e do Governo. Mas é um facto incontornável para quem
os leia, que só o projecto do PCP e a proposta do Governo apresentam
uma visão global de reforma do IRS, do IRC e do Estatuto dos Benefícios
Fiscais. Os restantes projectos quedam-se por propostas de natureza
muito pontual, fundamentalmente centradas nos aspectos que podem ser
mais simpáticos para os eleitores (tabela de escalões e taxas e
deduções à colecta, em IRS). Assim sendo, necessariamente terão de ser
aquele projecto e aquela proposta a base da reforma que vier a resultar
do processo parlamentar.
Porque já em “Ponto de Vista” anterior
me referi às orientações essenciais das propostas contidas no projecto
de lei de que sou subscritor, ocupar-me-ei hoje de alguns aspectos
relacionados com a proposta do Governo, designadamente daqueles em que
maior é a minha crítica (e que, logicamente, mais se afastam das
propostas do PCP).
Diga-se desde já que, na generalidade, a
proposta do Governo representa um avanço face à situação actual. Isto
sem prejuízo de haver soluções que, em sede de especialidade,
necessitam de aprofundamento e ponderação. Mas depois de cinco anos de
atraso no avanço da reforma por parte dos Governos liderados pelo PS,
depois dos muitos relatórios e estudos que a sua solicitação foram
realizados, seria de esperar mais. Fundamentalmente, mais determinação
e mais vontade política em atacar as fontes da injustiça fiscal,
nomeadamente a injustiça patente na desigual tributação dos rendimentos
do trabalho e de capital, e da fraude e evasão fiscais.
No que
concerne ao âmbito da equidade fiscal, considero inaceitável que,
depois de tanto atraso e de múltiplas declarações de intenções, o
Governo mantenha na sua proposta, contra sugestões e soluções que lhe
foram apresentadas nos relatórios e estudos realizados, a continuação
da política de favores e a descaracterização da unidade decorrente da
lógica do imposto único que o IRS deve ser. Isso é particularmente
visível na não integração no regime geral de tributação das mais-valias
as relativas a acções e a outros valores mobiliários, permanecendo a
sua tributação sujeita a uma taxa especial de privilégio (na proposta
20%, que, aliás, se transformam em 15% e 10% em termos efectivos).
Identicamente a intenção do Governo de manter os rendimentos de acções,
de juros e de títulos de dívida sujeitos a taxas liberatórias, também
aqui violando o princípio do englobamento dos rendimentos. E, ainda, a
falta de vontade política para reduzir e eliminar múltiplos benefícios
fiscais, especialmente no âmbito dos planos de poupança em acções, nos
dividendos de acções cotadas em Bolsa ou de empresas privatizadas, etc.
No
âmbito do combate à fraude e evasão fiscais, reputo de incompreensível
que o Governo, tendo (finalmente) reconhecido a insustentabilidade do
actual regime fiscal das provisões para riscos gerais de crédito,
proponha a concessão de um período de transição de dois anos, com “meio
beneficio”, às instituições de crédito. Assim como o continuar a
permitir a distribuição camuflada de lucros pela via de juros de
suprimentos, ou a pouco fazer para “moralizar” o reporte de prejuízos,
a não considerar a taxa efectiva de IRC paga pelas empresas, no âmbito
da chamada eliminação da dupla tributação económica dos lucros
distribuídos. Ou, ainda, a não tributação de certas vantagens
acessórias (p.ex., cartões de crédito) nem o avanço decidido na
presunção de rendimentos em determinadas situações, como seja a do
exercício de cargos de administração em empresas e instituições de fins
lucrativos.
Finalmente, no que respeita à quebra do sigilo
bancário, a proposta do Governo apresenta-se demasiado tímida,
resultado eventual de pressões de certas entidades empresariais,
divulgadas pela comunicação social. Mas ao conceder efeito suspensivo a
recursos judiciais sobre a derrogação do sigilo, a natureza tímida da
proposta governamental tende a transformar-se numa mera manobra de
diversão, tendente a deixar tudo como está.
Se estes elementos
essenciais da proposta do Governo não vierem a ser alterados em sede de
especialidade, temo que a reforma dos impostos sobre o rendimento venha
a continuar adiada. A opção está nas mãos do Governo e do PS.