O rol de declarações contraditórias, de desmentidos formais e de mentiras descaradas dos últimos dias revela até que ponto os responsáveis políticos e militares dos países membros da NATO estão desorientados com a polémica gerada em torno das armas com urânio empobrecido (depleted uranim, DU). Numa altura em que já não restam dúvidas estarmos perante a ponta de um iceberg de dimensões e consequências incalculáveis, é de temer que uma cortina de silêncio caia sobre o assunto.
Poucos dias passaram desde que um comunicado do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) confirmou a detecção de plutónio e de um isotópico artificial do urânio (236) no teatro de guerra dos Balcãs, mas já são outros os temas que ocupam as primeiras páginas dos órgãos de informação. Dir-se-ia, no que toca a Portugal, que a promessa de análises completas e rigorosas, feita pela equipa científica que se deslocou aos Balcãs, bastou para colocar uma pedra sobre o assunto. E no entanto, uma pequena discrepância salta desde logo aos olhos mais desatentos: se os cientistas, como afirmaram, necessitam de dois meses para apresentar as suas conclusões, como é possível dizer desde já que está tudo bem com o pessoal que prestou ou presta serviço nas zonas de risco? A insistência com que se tem falado da normalidade dos níveis de radiação assemelha-se cada vez mais, à luz dos factos que vêm sendo divulgados, a uma manobra de diversão. De acordo com a opinião de reputados cientistas das mais diversas nacionalidades, o perigo está menos na radioactividade do que na toxicidade das munições utilizadas. E se, como revelou o PNUMA, para além de munições de urânio empobrecido foram utilizadas munições com urânio reciclado, a toxicidade é ainda maior e de proporções desconhecidas. A semana passada, numa audição promovida no Parlamento Europeu pelo Grupo da Esquerda Europeia Unitária/Esquerda Verde Nórdica, Abraham Béhar, presidente da Associação Internacional dos Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear, e Prémio Nobel da Paz em 1985, revelou que as evidências acumuladas e os estudos epidemiológicos já feitos identificam dez síndromas e patologias coincidentes entre as vítimas militares e civis nos teatros de guerra do Golfo (1991) e dos Balcãs (1994 e 1999). As diferenças respeitam apenas ao tempo em que os efeitos se manifestam. Como não admitir então a existência de uma causa comum?
A exemplo do que haviam feito em relação ao uso de armas com urânio empobrecido, a NATO e o Pentágono minimizam agora os perigos para a saúde pública que podem resultar dos vestígios de plutónio encontrados nos Balcãs. O porta-voz da Aliança, Mark Laity, afirmou que "se sabe desde há algum tempo que pode haver traços de urânio 236 e de plutónio no urânio empobrecido", mas garantiu que "de acordo com peritos independentes, foram encontrados em níveis tão baixos que não representam nenhum motivo de preocupação". Citando um relatório dos EUA datado de 13 de Dezembro, Laity assegura, por outro lado, que os vestígios de plutónio encontrados são tão insignificantes que "do ponto de vista sanitário, a presença de quantidades tão pequenas de plutónio é irrelevante". Idêntica é a posição do Pentágono, para quem esses "restos" de plutónio são "cientificamente insignificantes". Segundo o tenente-coronel Paul Phillips, os vestígios de plutónio foram detectados nas existências de urânio enriquecido que o Departamento de Energia fornece ao Departamento de Defesa para fabrico de munições.
... para quem?
"Insignificante" será certamente uma classificação que 100 000 norte-americanos e pelos menos 6000 britânicos, veteranos da guerra do Golfo, não usam para descrever o estado em que se encontram, dez anos depois de terem participado na guerra. Num encontro realizado a semana passada em Madrid, no âmbito da Campanha pelo Levantamento das Sanções contra o Iraque, a sargento norte-americana Carol Picou e o oficial britânico Ray Bristow deram conta das suas dramáticas experiências. Picou, enfermeira, esteve no Golfo em 1991, integrando uma unidade de 150 elementos; 40 dos seus companheiros adoeceram rapidamente, e dez deles morreram. Ela adoeceu ao regressar aos Estados Unidos. Hoje sofre de danos cerebrais, dores musculares, incontinência, entre outros problemas. Não recebe nenhuma ajuda médica do Pentágono, que a dispensou em 1995, porque aquela instância não considera existir qualquer relação entre a sua estranha doença e a participação na guerra. Ray Bristow esteve na Arábia Saudita apenas entre Janeiro e Março de 1991, mas apresenta um nível de urânio no seu organismo cem vezes superior ao normal. Bristow sofre de danos cerebrais, dores nas articulações, fadiga crónica, claustrofobia, entre outras coisas, sendo forçado a deslocar-se numa cadeira de rodas. Tal como a sua congénere norte-americana, não recebe ajuda médica oficial. Ambos os veteranos acreditam que os casos conhecidos da "síndroma dos Balcãs", em tudo idêntica à "síndroma do Golfo", são apenas a ponta do iceberg de um drama ainda por descobrir, e aconselham que se tomem medidas para que a sua experiência não se repita. Esta semana, enquanto os prosseguiam as garantias de não haver nenhuma prova científica que ligasse as armas utilizadas no Golfo e nos Balcãs à "misteriosa doença", foi declarado o primeiro conhecido entre os soldados russos no Kosovo. À falta de "provas", sobejam os casos, e ainda nem sequer se conhece, com profundidade, a situação das populações dos países bombardeados... por razões ditas humanitárias.