(proposta de lei n.º 114/XII/2.ª)
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Esta é a proposta de lei com que o Governo pretende encerrar tribunais, deixar mais distantes dos cidadãos os serviços do sistema de justiça e dificultar o acesso à justiça à generalidade dos cidadãos, em particular aos que, dispondo de menos recursos económicos ou vivendo em zonas mais interiores do País, ficarão mais longe dos tribunais, mais longe da justiça, mais longe do respeito pelos seus direitos e da possibilidade de fazerem vingar em tribunal os direitos que por lei lhes assistem.
Além disso, com esta proposta de lei, o Governo procura subverter alguns dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema de justiça e, de uma forma declarada, governamentalizar aspetos importantes do funcionamento do sistema de justiça.
É precisamente para evitar que tudo isso aconteça que o PCP apresentou um conjunto de propostas de alteração, algumas das quais chamamos agora aqui, a Plenário, avocando-as.
Com estas propostas, pretendemos evitar a alteração das estruturas das comarcas, das quais resultará a extinção de tribunais e a subversão da Constituição da República Portuguesa, que atribui à Assembleia da República a competência para definir a organização dos tribunais, como resulta do seu artigo 165.º.
Procuramos também evitar a violação e o desrespeito pelo princípio do juiz natural, que está consubstanciada nas normas relativas à substituição dos juízes e magistrados do Ministério Público, e a possibilidade de reafectação de juízes e de processos dentro da comarca pelo juiz presidente da comarca.
Procuramos, igualmente, em matéria de gestão dos tribunais, evitar que, por via da divisão de competências entre juízes, magistrados do Ministério Público e os respetivos serviços, se introduza conflitualidade na gestão dos tribunais e que, por via das normas relativas à gestão dos tribunais, alterando o estatuto do administrador judiciário, alterando a sua forma de nomeação e, sobretudo, alterando a sua dependência funcional, se evite a governamentalização do funcionamento dos tribunais, nomeadamente em relação à sua gestão.
Por último, Sr.ª Presidente e Sr.as e Srs. Deputados, propomos também uma alteração em relação à entrada em vigor desta lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais.
E, Sr.ª Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, chamamos particularmente a atenção para esta norma que consta da proposta de lei e que será, certamente, uma norma de estudo nas nossas faculdades pelo desconserto que vai implicar, pela subversão que implica do ponto de vista da alteração da hierarquia das leis, com uma lei orgânica a entrar em vigor ao mesmo tempo que a lei regulamentadora e com a compatibilização, que devia existir, da articulação entre a lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais e o Código do Processo Civil.
O PCP reafirma aqui, com esta avocação, a necessidade de compatibilizar a entrada em vigor do novo mapa judiciário com as alterações introduzidas ao Código do Processo Civil e apresentamos uma proposta de alteração para que esse seja o objetivo a atingir.
Assim, se se mantiver a redação da entrada em vigor que está prevista na proposta de lei, Sr.ª Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, estaremos hoje a criar, nesta Assembleia da República, dificuldades com as quais os tribunais, provavelmente em alguma dimensão, não conseguirão lidar e dificuldades de articulação que podem hoje ser resolvidas.
Apelamos, por isso, à consideração que, em matéria de entrada em vigor, fazemos com a proposta de alteração que apresentamos.
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Declaração de voto
O PCP assumiu desde o início a sua oposição aos pressupostos do processo de reorganização judiciária enquadrado pela presente lei.
O Governo e a maioria PSD/CDS encararam a reorganização judiciária como instrumento de reconfiguração da orgânica dos tribunais, da sua estruturação interna e distribuição territorial visando novas e acrescidas limitações à independência dos tribunais bem como a poupança de encargos do Estado à custa dos direitos dos cidadãos e da coesão social e territorial.
O enquadramento da orgânica judiciária agora aprovado não pode ser avaliado desligado do projeto conhecido de instalação em concreto das comarcas e respetivos juízos e instâncias, o que naturalmente evidencia as preocupações quanto ao desacerto de muitas das soluções adotadas e a adotar.
A presente lei segue de perto as opções da Lei n.º 52/2008, da responsabilidade do Governo PS/Sócrates, ainda que não tenha considerado soluções entretanto construídas para problemas identificados nos últimos anos nas comarcas-piloto.
Mantém-se um conceito de comarca marcado pela opção de organização «piramidal» dos tribunais, com a figura do juiz-presidente no topo, introduzindo fatores de hierarquização e liderança quando o que se deveria salvaguardar era a independência e a autonomia.
Considerando os poderes do juiz-presidente como um todo, facilmente se compreende que quem pode proceder à substituição de juízes ou propor a sua reafectação inevitavelmente exercerá ascendente sobre os colegas quando tal não deveria poder ocorrer.
A este respeito estamos convictos de que algumas das normas relativas às competências do juiz presidente, designadamente de natureza processual e de gestão dos magistrados, poderão vir a ser impugnadas por inconstitucionalidade.
Registe-se ainda que a presente lei comporta não só desequilíbrios relativos à estruturação interna do poder judicial, como também problemas relativos à articulação e relacionamento externo do poder judicial com outros poderes constitucionais, nomeadamente com o poder político na sua dimensão governamental.
A intromissão do Governo em matéria que deveria ser de exclusiva responsabilidade do poder judicial é manifesta, não só nas normas relativas aos objetivos do sistema judiciário, sua definição, avaliação e consequências como também — e sobretudo — no que diz respeito à figura do administrador judiciário, suas competências, designação e possibilidade de controlo a partir do (ou de reporte ao) Ministério da Justiça.
Registe-se ainda a discordância do PCP quanto às normas de entrada em vigor.
Mantém-se a desarticulação na entrada em vigor da presente lei com a entrada em vigor de outros diplomas estruturantes — de que é exemplo o Código de Processo Civil —, repercutindo-se negativamente tal opção não só nas normas da lei como nos problemas para os quais foi preciso encontrar solução.
A maioria PSD/CDS optou por estabelecer uma fórmula para a entrada em vigor que sacrifica a certeza, a segurança e a previsibilidade na aplicação da lei à flexibilidade imposta pelos calendários políticos ou partidários, nomeadamente deixando em suspenso o momento exato em que a lei entrará em vigor para evitar eventuais prejuízos eleitorais (autárquicos) decorrentes da opção de encerramento de dezenas de tribunais por todo o País, como de resto há mais de um ano está anunciado.
O PCP apresentou inúmeras propostas visando corrigir potenciais inconstitucionalidades e outras opções que, ainda que não se mostrando suscetíveis do mesmo juízo de inconstitucionalidade, mereceriam correção pelos efeitos que delas decorrerão.
Lamentavelmente, neste como em praticamente todos os processos legislativos ocorridos na presente legislatura, não houve disponibilidade da maioria PSD/CDS para acolher as propostas apresentadas ou sequer corrigir opções cujo desacerto é evidente desde o início, o que não permite ao PCP senão votar contra a presente lei.