Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Aprova o Acordo entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para reforçar a cooperação no domínio da prevenção e do combate ao crime, assinado em Lisboa, a 30 de Junho de 2009

(proposta de resolução n.º 1/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
Em 30 de Junho de 2009, os Ministros Alberto Costa e Rui Pereira, subscreveram em nome do Governo Português um Acordo bilateral para permitir às autoridades dos Estados Unidos da América terem acesso aos dados pessoais biométricos e biográficos que constam das bases de dados de identificação civil e criminal, bem como da base de dados de perfis de ADN do Estado português.
Tal Acordo põe em causa princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa e merece as mais sérias críticas, quer quanto ao método, quer quanto ao conteúdo.
A alegada motivação para este Acordo bilateral foi, ainda e sempre, a necessidade de combater o terrorismo. Porém, basta ler o artigo 2.º do Acordo para ver que ficam abrangidos pelas suas disposições os crimes puníveis com pena privativa de liberdade de duração máxima superior a um ano, ou seja, vai até às chamadas bagatelas penais, as quais, evidentemente, nada têm a ver com o terrorismo.
O terrorismo surge aqui, mais uma vez, como a palavra mágica que tudo justifica e tudo permite. Invoca-se o terrorismo e deita-se pela borda fora todo um património civilizacional de
direitos e garantias conquistado ao longo de séculos.
O secretismo que rodeou a assinatura deste Acordo em 2009 não envolveu apenas a opinião pública. A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que, nos termos da lei, se
deveria ter pronunciado oportunamente, só foi consultada no final de 2010, ou seja, mais de um ano depois da assinatura do Acordo.
O parecer que a CNPD veio, entretanto, a produzir é contundente quanto à inconstitucionalidade do Acordo, apontando-lhe 15 críticas fundamentais, que procurarei, muito sinteticamente, enumerar.
A lei exige um parecer prévio da CNPD quando estão em causa direitos fundamentais — esse parecer não foi solicitado.
A protecção de dados pessoais nos Estados Unidos não dá garantias adequadas aos dados enviados.
Estando a decorrer negociações para um acordo-quadro União Europeia/Estados Unidos sobre protecção de dados pessoais, deveria ter sido ponderado se tinha sentido este Acordo.
Não é salvaguardada a possibilidade de os dados transmitidos serem utilizados em processos que envolvam a pena de morte.
Os fins do Acordo são demasiado amplos.
O catálogo de crimes abrangidos (pena de prisão superior a um ano) é excessivo.
Os mecanismos de consulta automatizada não garantem o controlo dos acessos nem permitem verificar consultas abusivas.
O Acordo prevê troca de dados de pessoas que «se crê poderem vir a cometer um crime», mesmo que a conduta em causa não seja considerada crime na ordem jurídica portuguesa.
A falta de um prazo máximo para a conservação de dados excede o grau de determinação aceitável.
O Acordo não respeita o princípio da proporcionalidade.
Os responsáveis pela transmissão e tratamento de dados não estão definidos.
O direito de acesso dos cidadãos titulares dos dados não está consignado.
A forma como os Estados Unidos consultam os dados em Portugal é vaga e imprecisa, não oferecendo garantias.
A possibilidade de os dados serem utilizados para outros fins não especificados não é aceitável.
Finalmente, a previsão de transmissão de dados para outros países, organizações, entidades privadas ou pessoas, sem qualquer justificação e sem garantias, não é de todo admissível.
Estas 15 objecções não fomos nós que as inventámos, constam expressamente do parecer dado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Em resumo, o parecer da CNPD é esclarecedor quanto à verdadeira barbaridade deste Acordo, rejeitando-o, por isso, de forma peremptória.
Para além da possibilidade de devassa dos dados pessoais dos cidadãos portugueses por parte das autoridades norte-americanas, sem controlo e garantias, e sem que seja sequer exigida uma suspeita séria do seu envolvimento na prática de crimes, bastando que se creia que alguém possa vir a cometer um crime, a questão da pena de morte merece uma preocupação particular.
A Constituição Portuguesa rejeita em absoluto a pena de morte e proíbe a extradição ou a entrega a qualquer título por crimes a que corresponda a pena de morte. Como escreveu o constitucionalista, e ao tempo Deputado do PSD, Jorge Bacelar Gouveia, em artigo publicado no Diário de Notícias de 25 de Fevereiro de 2011, em que critica este Acordo de modo muito contundente, «será sempre intolerável tornar a administração da justiça em Portugal uma entidade colaboracionista com um sistema penal que aplica as penas de morte e de prisão perpétua.»
Não fomos nós que o escrevemos, foi o Prof. Jorge Bacelar Gouveia.
A rejeição deste Acordo não significaria a recusa de colaborar com as autoridades dos EUA no combate ao crime. A cooperação judiciária internacional para o combate ao crime organizado e transnacional é um valor estimável e não constitui sequer novidade. Existem mesmo instituições criadas para esse efeito, como a Interpol.
O Estado Português não deve recusar participar no esforço de cooperação internacional para combater a criminalidade, mas tem de o fazer respeitando os princípios constitucionais e as bases fundamentais em que assenta a ordem jurídica portuguesa, incluindo as competências próprias das autoridades judiciárias portuguesas.
Qualquer possibilidade de cedência indiscriminada de dados pessoais dos cidadãos portugueses a autoridades de outro país, seja ele qual for, é de rejeitar em absoluto. Uma coisa é a cooperação judiciária internacional, feita numa base de reciprocidade, no respeito pelas competências das autoridades judiciárias de cada Estado, pelas garantias dos cidadãos e pelos princípios do estado de direito democrático; outra coisa é, em nome do combate ao terrorismo, ou seja em nome do que for, tornar o Estado português numa espécie de filial do FBI e tratar todos os cidadãos portugueses como suspeitos de terrorismo, entregando-os à devassa
discricionária das autoridades de um Estado que, nos últimos anos, tem dado ao mundo tristes exemplos de desrespeito pelo direitos humanos.
É tristemente significativo que seja esta a primeira proposta de resolução que este Governo apresenta à Assembleia da República para aprovação de uma convenção internacional, apresentada e agendada de rompante, quase pela calada. Pensará o Governo que, assim como assim, no meio de tantas atrocidades legislativas cometidas à sombra do acordo com a tróica, pode ser que os portugueses nem reparem ou nem se importem com mais esta barbaridade? Mas há quem repare e há quem se importe. É que, a partir de agora, os dados pessoais de identificação civil e criminal dos cidadãos portugueses passam a ficar ao dispor das
autoridades norte-americanas. É mais uma enormidade que os cidadãos portugueses ficam a dever aos partidos da tróica.

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