Senhor Presidente, Senhores Deputados Há neste debate uma questão, que é a de saber como deve ser constituído o capital das sociedades concessionárias dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos. Sobre essa questão, há a solução Cavaco Silva ( Decreto-Lei 397/93, de 5 de Novembro), de entregar a maioria de capital a entidades públicas dependentes do Governo, solução que foi combatida, quando o PS era oposição, pelo PS de António Guterres e pelo PCP. Com o argumento muito claro que essa solução expropriava os municípios do seu património, e mais importante, expropriava-os de uma atribuição que era sua face à lei de delimitação de atribuições entre a administração central e local. E há outra solução, de a maioria do capital ser dos respectivos municípios ( se o quiserem deter), que é a solução aprovada pela Assembleia da República no termo da legislatura passada, pela lei nº 176/99 de 25 de Outubro, solução combatida agora pelo Governo de António Guterres, em completa contradição com a posição do PS de António Guterres tomar em 1994. Sobre esta questão, não mudamos de opinião: a solução de expropriar os municípios do controlo destes sistemas ditos multinacionais, é uma solução que viola a esfera de atribuições dos municípios e é uma má solução quanto à defesa dos interesses das populações. Afastar os municípios da política de investimentos e de preços desses sistemas, corresponde a afastar, quem representa e melhor conhece os problemas das populações, das opções essenciais quanto a estas matérias essenciais para a qualidade de vida dessas mesmas populações. Sobre estas questões, está tudo dito. Mas esta não é a questão essencial deste debate. A questão essencial é política, tem conteúdo procedimental, e refere-se concretamente ao modelo de relações entre a Assembleia da República e o Governo. O que se passar hoje e aqui é um teste ao comportamento deste Governo não maioritário na sua relação com a Assembleia da República. Os factos falam por si. A história da publicação da Lei nº 176/99 desta Assembleia da República e da sua revogação pelo Decreto-Lei nº 439-A/99 parece o resultado do Celta de Vigo - Benfica. O resultado é o mesmo: truques e velhacarias - 7, Assembleia da República - zero! Primeiro, a Lei é votada em 2 de Julho, uma lei de dois artigos, mas só é enviada pela Mesa da Assembleia para a Presidência da República em 30 de Julho. Segundo, o Presidente da República só a promulga em 10 de Setembro, quarenta e dois dias depois, apesar do artigo 163º da Constituição, que lhe dá vinte dias para o fazer. Terceiro, o Governo demora 33 dias para a referenda, feita a 13 de Outubro e atrasa a publicação do diploma mais doze dias , que só ocorre a 25de Outubro. Quarto, a 8 de Outubro, mesmo 5 dias antes da referenda e 17 dias antes da publicação da lei da Assembleia, o Governo em Conselho de Ministros revoga-a. Quinta, aceleradamente o Presidente da República promulga-a em 25 de Outubro. Sexta, aceleradamente também, vem a referenda em 26 de Outubro e a publicação do Decreto-Lei revogatório, com o habitual suplemento ao Diário da República, isto é, com a habitual manipulação de datas, o que permite a publicação a 29 de Outubro do Decreto-Lei, isto é, quatro dias depois da publicação da lei. Sétimo, o Governo mete no seu Decreto-Lei um artigo de entrada imediata em vigor; ora, como a Lei não tem essa norma e assim, tem cinco dias para entrar em vigor, a lei é revogada no mesmo dia em que entraria em vigor. Palavras para quê? É um artista português e usa uma lata institucional marca PS. Muita lata e nenhum pudor. E não venha o Governo falar da competência legislativa concorrente. Porque, o que o Governo aqui fez foi usar essa competência, não só para afrontar a Assembleia da República, mas, na prática, para impedir uma lei de vigorar. O Governo não exerceu uma competência legislativa, arrogou-se um direito de veto, com a complacência do seu titular único que é o Presidente da República. Mas, o que está contido neste caso não é só um juízo de procedimento político. Não se trata só de condenar a grosseira manipulação, a afronta à Assembleia, o envolvimento de entidades excessivas, o espírito de trafulhice com que isto tudo foi feito, a perversão constitucional que foi consumada. O que está em evidência neste caso é o relacionamento deste Governo não maioritário com a Assembleia da República. O Governo, em vez de diálogo, mostra querer usar perversamente a artilharia constitucional para obter na secretaria o que os eleitores não lhe deram nas urnas. Através de um esquema simples. Sempre que houver leis da Assembleia em matéria que lhe não seja reservada, o Governo mostra não hesitar em fazer decretos-leis contra essas leis da Assembleia, contando que os seus 115 parlamentares façam o bloqueio da eventual apreciação parlamentar desses decretos-leis, impedindo a sua alteração ou revogação. Isto é, a competência legislativa, de concorrente, passa a exclusiva do Governo. Teríamos uma subversão do modelo constitucional, com a supremacia legislativa do Governo. Isto é, o Governo mostra que quer governar contra a Assembleia, e sem respeito pelo seu papel constitucional. Quer ultrapassar o limite de 115 Deputados, que o povo português lhe impôs, pela via da prepotência e do uso fraudulento e abusivo de mecanismos constitucionais. É o Governo que mostra assim querer governar abrindo crises no terreno do funcionamento dos órgãos de soberania. A bola cai agora, inteirinha, no regaço da bancada rosa. É a V. Exas., senhores Deputados do PS, que cabe decidir se aceitam ser cúmplices desta governação contra a Assembleia, ou se querem garantir o Parlamento como órgão legislador e como centro da vida política. Bloqueando a apreciação parlamentar de decreto-leis como este, que revogam leis, os senhores Deputados do PS fazem-se cúmplices desta perversão perigosa da vida política. É a cruzada pela crise. Se pelo contrário derem já um sinal que não aceitam este tipo de relacionamento, então a bancada do PS prestará um serviço às instituições e ao seu funcionamento regular. O Governo borrou a pintura. Vejam lá os senhores Deputados se querem continuar a obra do Governo e deitar a casa abaixo. Disse.