Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados
: O Grupo Parlamentar do PCP traz hoje ao Plenário da Assembleia da República o debate das alterações introduzidas pelo Governo ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, alterando o respectivo regime de passagem à reserva e à reforma, e ao regime de Assistência na Doença aos Militares das Forças Armadas.
Fazemo-lo, desde logo, por respeito para com as competências deste órgão de soberania. Não é aceitável que o Governo tenha legislado sobre matérias estruturantes atinentes ao estatuto da condição militar completamente à revelia da Assembleia da República e da sua Comissão de Defesa Nacional, que não foi envolvida, nem sequer informada, do conteúdo das alterações aprovadas pelo Governo.
Fazemo-lo também por respeito para com os militares lesados nos seus direitos e desrespeitados ao longo de um processo que o Governo conduziu de forma deplorável e em violação da Lei Orgânica n.º 3/2001, de 29 de Agosto, que estabelece sem qualquer dúvida, no seu artigo 2.º, o direitos de as associações profissionais dos militares serem ouvidas sobre as questões do respectivo estatuto profissional, remuneratório e social. Estando em causa a aprovação de legislação com profundas implicações nesse estatuto, não é admissível que o Governo a tenha aprovado substituindo o diálogo que deveria ter mantido com as associações por um grotesco simulacro de audição.
Fazemo-lo, ainda, na esperança de que esta Assembleia, através da sua Comissão de Defesa Nacional, possa fazer o que o Governo não quis fazer, isto é, abrir um processo de debate sério com os militares e as suas associações, que tenha como preocupação não apenas poupar umas milésimas do famigerado défice à custa dos direitos dos militares e das suas famílias mas também minimamente em conta critérios de justiça e de razoabilidade e que tenha devidamente em consideração a situação e os problemas concretos com que as Forças Armadas se confrontam.
Nesse sentido, o Grupo Parlamentar do PCP apresentará de seguida na Mesa um conjunto de propostas de alteração aos diplomas em causa, para que a Comissão de Defesa Nacional tenha a possibilidade de os alterar, corrigindo, pelos menos, os aspectos que se afiguram mais lesivos dos direitos dos militares e do interesse das próprias Forças Armadas.
Sr. Presidente, Srs. Deputados:
o mal-estar que se vive nas fileiras das Forças Armadas não é de hoje nem de ontem. Como é geralmente reconhecido, desde há duas décadas para cá que os problemas se têm vindo a avolumar, sem que algum Governo os tenha resolvido. Pelo contrário, a cada Governo que se sucede, novos problemas se vão juntando aos anteriores.
Quando o actual Governo tomou posse, os militares das Forças Armadas confrontavam-se com injustos e frustrantes bloqueamentos à progressão nas carreiras, com o inaceitável incumprimento de leis da República, como a que estabeleceu um complemento de pensão que nunca foi pago, com a constante degradação do seu estatuto socioprofissional, com uma situação financeira dos três ramos profundamente desmotivadora para todos os que lutam e trabalham pela dignificação da capacidade operacional das nossas Forças Armadas.
Conhecidos os problemas, esperava-se que, com o actual Governo, alguns deles fossem minorados.
Ninguém esperava milagres, mas era legítimo esperar que, à demagogia palavrosa do governo anterior, se sucedesse um Governo disposto a enfrentar com diálogo e seriedade os problemas existentes. Infelizmente, isso não aconteceu. À obsessão do défice, somou-se a obsessão de destruir direitos adquiridos, acompanhada de uma atitude insultuosa para com os cidadãos a lesar. Mais: no caso dos militares, as medidas lesivas dos seus direitos em matéria de passagem à reserva e à reforma e de assistência na doença foram acompanhadas de grosseiras violações dos seus direitos fundamentais de reunião e manifestação consagrados na Constituição e na lei.
Confrontado com o compreensível descontentamento dos militares e das suas famílias e com a disposição destes em usar os direitos que a Constituição lhes confere para manifestar o seu desagrado, o Governo tomou a atitude arbitrária e prepotente de se arrogar o direito de proibir o exercício do direito de manifestação por parte dos militares com a invocação discricionária de que tal participação poria em causa «a coesão e a disciplina das Forças Armadas».
Não é aceitável que, num Estado de direito democrático, um qualquer ministro se possa arrogar o direito de, através da mera invocação de um conceito vago e indeterminado como a «coesão e a disciplina das Forças Armadas», proibir o exercício de um direito fundamental constitucionalmente consagrado.
Assim como não é aceitável que, na sequência dessas manifestações, estejamos a assistir a uma vaga de repressão selectiva, através da interposição de processos disciplinares a 18 militares escolhidos a dedo de entre os muitos que se manifestaram.
É sabido que esses processos disciplinares foram instaurados a partir de imagens transmitidas pelas televisões, que, assim, funcionaram como delatores involuntários, mas o que ninguém sabe, e é importante que se saiba, são os critérios que conduziram à escolha dos militares a sancionar e, já agora, a quem foi dada a honra de escolher os visados.
Como é óbvio para toda a gente, não estão realmente em causa quaisquer problemas de disciplina das Forças Armadas. O que está em curso é um processo de intimidação sobre os militares, visando desencorajar o exercício dos seus direitos associativos e punir o exercício do direito de manifestação.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados:
Os militares das Forças Armadas portuguesas têm sido justamente enaltecidos pela forma abnegada e competente com que cumprem as suas missões.
É exigido aos militares que, nas suas missões, não recuem perante qualquer sacrifício, nem que seja o da própria vida — e sabemos, por amarga experiência recente, que o que acabo de dizer não é mera retórica.
Os militares portugueses não recebem de ninguém lições de civismo, de coesão e de disciplina e não merecem que o Ministro da Defesa Nacional os trate como se fossem arruaceiros, em nome de uma coesão e disciplina de que eles são os mais abnegados defensores.
Infelizmente, são mais as razões que o País tem para se orgulhar dos seus militares do que as razões que os militares têm para se orgulhar da forma como o País tem sido governado.
Se alguém põe em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas não são os militares que, nos termos da Constituição e da lei, lutam pelos seus direitos, são aqueles que abusam da sua autoridade para impor medidas lesivas da motivação e da dignidade dos cidadãos que servem o País nas Forças Armadas.
Sr. Presidente, Srs. Deputados:
Todos sabemos que, em matéria de destruição e redução de direitos socioprofissionais de há muito adquiridos, os militares não são um caso isolado. A ofensiva governamental contra estes direitos tem, nesta fase, como alvo todos os trabalhadores da Administração Pública, pois todos foram tratados, perante os demais cidadãos, como privilegiados, relapsos e culpados pelo despesismo, pelo défice e pela situação económica do País. O primeiro alvo a atingir foram os chamados regimes especiais: os militares, os polícias e os operadores judiciários; o segundo alvo, já atingido, foram todos os demais funcionários públicos, com a alteração das regras gerais da aposentação e a sistemática degradação salarial; e o terceiro alvo, já visado, são os direitos de todos os trabalhadores.
A destruição de regimes especiais de aposentação e de protecção na doença, em nome de uma suposta igualdade, é apenas um passo para a liquidação dos direitos de todos. Não é um imperativo de justiça, é um imperativo do retrocesso social.
No caso dos militares, como acontece, aliás, com outros sectores funcionais, existem especificidades que justificam determinados regimes especiais, como a própria lei reconhece. Os militares estão sujeitos a um regime de permanente disponibilidade, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais, aos riscos inerentes ao cumprimento das missões, de subordinação à hierarquia e de restrição de direitos e liberdades.
Não é por acaso nem por benemerência, que as Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, constantes da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho, consagram, a par dessas restrições e como compensação por elas, especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da segurança social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação.
Ora, os diplomas hoje em apreciação fazem letra morta das disposições desse Estatuto, não no que diz respeito às restrições, mas apenas no que diz respeito às compensações.
Sem entrar neste momento em observações na especialidade, que terão o seu tempo e lugar na Comissão de Defesa Nacional, importa recordar que as alterações introduzidas pelo Governo no Estatuto dos Militares das Forças Armadas cria problemas aos militares e à própria instituição militar, não apenas pela desmotivação dos seus efectivos mas também pelos problemas imediatos decorrentes da falta de confiança no futuro, que faz com que milhares de militares do quadro permanente passem de imediato à reserva, e pelos problemas que decorrerão a prazo, logo que, na falta de uma solução equilibrada, os quadros das Forças Armadas se vejam confrontados com a saída prematura de uns e o envelhecimento excessivo de outros.
Por outro lado, no que se refere ao regime de assistência na doença, para além da óbvia perda de direitos dos familiares dos militares, pondo decisivamente em crise o conceito de família militar que a lei há muito consagrou, são mais que legítimas as preocupações suscitadas pelas associações militares quanto ao futuro do IASFA e quanto à possibilidade de esta instituição, detentora de um vasto património construído inteiramente à custa do esforço contributivo dos militares do quadro permanente, ser enredada e consumida por défices crónicos da ADM. Tal situação só não ocorrerá se, a par da garantia do financiamento público adequado da ADM, se garantir igualmente a clara separação entre as funções de ADM e de Acção Social Complementar do IASFA.
Concluo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, com um apelo ao Governo e a todas as bancadas, um apelo para que se aproveite a oportunidade gerada com estas apreciações parlamentares para iniciar um novo ciclo no relacionamento entre o poder político e os militares e para que o ciclo da arrogância e da imposição dê lugar ao diálogo e à procura de soluções mais consensuais e razoáveis.
É este o nosso propósito. Esperamos que da parte do Governo e da maioria haja a abertura ao diálogo que não houve até agora.
(…)
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo e Srs. Deputados,
No pouco tempo que nos resta, queremos apenas deixar claro o seguinte: é verdade que o Sr. Ministro da Defesa já compareceu algumas vezes nesta Assembleia, mas em nenhuma das reuniões com o Sr. Ministro da Defesa a Comissão de Defesa foi informada, antes da aprovação destes diplomas, sobre o que o Governo tencionava fazer.
Portanto, se houve alguma informação, foi posterior. Aliás, hoje é, precisamente, a primeira vez que a Assembleia tem oportunidade de debater estes diplomas.
Quero também deixar claro que a forma como as associações foram ou não ouvidas ficou patente nos pareceres que fizeram chegar a esta Assembleia e à opinião pública, onde referem as condições absolutamente inadmissíveis como tudo sucedeu, as quais não passaram, de facto, de uma simulação de audição, na medida em que não lhes foram dadas quaisquer hipóteses de participar na elaboração destes diplomas, como, aliás, a lei determina.
Finalmente, o Sr. Secretário de Estado da Defesa disse que não ouviu aqui referência e contestação concreta a estas medidas, mas remeto o Sr. Secretário de Estado para as propostas que acabámos de entregar na Mesa, para lhe dizer que contestamos vários aspectos. Contestamos, designadamente, a imposição de taxas moderadoras aos beneficiários da ADM, que os familiares dos militares sejam excluídos do regime de assistência na doença que assiste aos próprios militares e que o Governo venha com a indefinição que existe neste momento, relativamente ao estatuto do IASFA e à acção social complementar que é prosseguida por este Instituto.
Relativamente ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, o Sr. Secretário de Estado terá oportunidade de ver o que contestamos, mas posso dizer-lhe, desde já, que contestamos, nomeadamente, a passagem compulsiva para o regime de licença ilimitada sem vencimento ao fim de cinco anos de reserva, para os militares que passam à reserva ao fim de 20 anos de serviço, contestamos que o tempo de serviço deixe de ser aumentado em 25% e passe a ser apenas em 15%.
Enfim, Sr. Secretário de Estado, poderia continuar a referir aquilo de que discordamos — o tempo não mo permite —, mas nós apresentamos propostas concretas. Bastará o Sr. Secretário de Estado atentar nelas, lê-las com atenção e, depois, em sede de comissão, se o Governo manifestar abertura para isso, teremos oportunidade de poder discutir, uma a uma, todas as propostas de alteração que apresentamos.
Não é por falta de contestação concreta que o Governo sai daqui de mãos a abanar.