Intervenção de João Ramos na Assembleia de República

Alteração à Lei dos Baldios

Sr.ª Presidente,
Queria perguntar aos Deputados do PDS e do CDS, ou ao Sr. Secretário de Estado enquanto coautor da proposta, se conseguem responder à seguinte questão: no preâmbulo do projeto de lei, os subscritores justificam a necessidade desta lei porque existem barreiras e entraves à gestão dos baldios, mas em parte alguma do diploma se diz quais são esses entraves e essas barreiras. Podem explicar isto, Srs. Deputados?
(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
O PSD, o CDS e a direita, que tanto gostam de atribuir preconceitos de propriedade a outros, têm um preconceito relativo à propriedade comunitária, que atacam desde que foi publicada a Lei dos Baldios, em 1976.
A devolução aos povos dos baldios roubados pelo fascismo representou para as comunidades serranas do Centro e Norte do País provavelmente a maior conquista do 25 de Abril. Hoje, dia em que se assinala o aniversário da aprovação da Constituição da República, PSD e CDS fazem, mais uma vez, tábua rasa da Lei Fundamental e atacam a propriedade comunitária que esta consagrou.
Este não é o primeiro ataque aos baldios e ao direito dos povos. Desde 1976, foram quase 20 as tentativas de desvirtuar a Lei dos Baldios, e vindas de diferentes quadrantes. Não esquecemos que foi pela mão do PS que o domínio público hídrico das águas dos baldios passou a pertencer às autarquias, mas as alterações que hoje discutimos vão mais longe e mais fundo do que todas as outras.
Este ataque define muito bem a opção de classe deste Governo. Os mesmos para quem expropriar o latifúndio, para produzir, para combater o desemprego e para travar o boicote económico à democratização do País era um crime imperdoável, roubar, por lei ordinária, as terras comunitárias aos compartes, pequenos agricultores e pastores para as entregar ao duopólio das celuloses é um ato meritório de modernização e transparência.
Para justificarem as alterações, PSD e CDS não se importam de recorrer a um conjunto de mentiras, de passa-culpas e de confusões com que enchem o preâmbulo da iniciativa.
São as suas próprias palavras que os desmentem. Num parágrafo, dizem que os baldios «deixaram de ser aproveitados e geridos de modo a produzirem os benefícios idealizados», para, logo a seguir, dizerem que há «um crescente aumento de receitas, resultantes da exploração dos terrenos baldios».
Depois, dizem que é preciso transparência na apresentação de contas. Parece impossível, Srs. Deputados! Alguns dos Srs. Deputados que subscrevem esta afirmação participaram numa visita da Comissão de Agricultura a diversos baldios, onde foram fotografados a analisar os livros de contas de alguns dos baldios. E ainda aprovaram o relatório dessas visitas, que tem como anexos os relatórios de contas. Um pouquinho de seriedade exige-se!
Depois, falam de má gestão dos baldios. Ora, nos baldios em cogestão — a maioria —, a obrigatoriedade de elaboração de relatórios de conta cabe ao representante dos serviços florestais. O Governo limita-se a falar de uma «lacuna de regulamentação». Na verdade, a lacuna existe no cumprimento da legislação.
Quem contribuiu para a má gestão dos baldios não foram os compartes, foram os serviços do Estado. Quantos baldios não puderam aceder a fundos comunitários para investimento, até para fazerem a prevenção estrutural, porque para tal precisavam do aval do representante do Estado enquanto gestor, que nunca chegou? Quantas árvores em condições de serem cortadas arderam a aguardar a marcação para o corte, que competia aos serviços florestais? Quantos planos de utilização dos baldios, feitos pelos conselhos diretivos, aguardam o parecer do Governo? Quantas casas de guardas florestais estão em ruínas por não terem sido cedidas aos baldios, que as reclamavam? Quantos milhões de euros das comunidades foram cativados pelo Estado desde 1980 por indefinições nos limites dos baldios ou por inexistência de conselhos diretivos, quando o Estado nada fez (e era sua obrigação fazer) para ultrapassar estas dificuldades? Só em três anos da década de 90 foram mais de 6 milhões de euros.
Se há má gestão dos baldios, os senhores e os vossos governos estão associados a ela e por isso é lamentável que queiram agora penalizar as comunidades pelas vossas culpas.
Os baldios geridos pelas comunidades têm sido importantes fontes de rendimento, fundamental à sobrevivência de muitas aldeias do interior do País.
Dou como exemplo as intervenções realizadas apenas nos baldios visitados pela Comissão de Agricultura e indicados pelos Srs. Deputados: Valdegas, em Boticas; Sabrosa de Aguiar e Cidadelha de Aguiar, em Vila Pouca de Aguiar; Ansiães, em Amarante; e Vilarinho, em Mondim de Basto
São uma realidade as obras de regadio, captação e canalização de água para os compartes, arranjos de caminhos rurais, gestão de equipas de sapadores florestais; construção de espaços para junta de freguesia, posto médico, associações; dinamização de grupo de teatro, centros culturais e jardim de infância; construção de polivalente desportivo, campo de futebol e basquetebol; reconstrução das casas do guarda-florestal; dinamização do centro de dia com uma rede de transportes e refeições diárias, para além dos projetos de investimento florestal e arborizações sem recurso a fundos comunitários.
Os baldios do País representam ainda a possibilidade de 13 000 criadores de gado acederem a apoios à sua atividade.
Com base em argumentos mentirosos, procede-se à subversão do conceito de compartes, roubando os baldios aos seus legítimos donos — as comunidades locais que mantêm com eles uma relação económica e afetiva — e entregando-os a todos os que vivem na freguesia, agora alargada por via das uniões.
Procede-se ao alargamento dos motivos para extinguir os baldios, sem necessidade de decisão judicial; integram-se os baldios no património privado das freguesias e das câmaras; abre-se a sua entrega a privados; promove-se a ingerência na vida interna dos conselhos diretivos; roubam-se as verbas cativas, de que o Estado é apenas fiel depositário; aplicam-se impostos aos baldios e aos compartes. Tudo medidas que porão em causa a paz social no mundo rural.
Os apetites sobre os baldios são diversos. Os rendimentos das centrais eólicas, de antenas e, acima de tudo, a madeira. Sim, porque a indústria da celulose não escondeu as suas pretensões, logo no início da Legislatura, ao entregar na Assembleia da República o seu caderno reivindicativo para a obtenção de madeira a baixo custo. Com a lei da arborização, saiu o primeiro «fato por encomenda»; com a Lei dos Baldios, pretende-se que saia mais outro.
A Ministra da Agricultura conhece a verdadeira dimensão destas alterações e, por isso, e apesar de ter desenvolvido todo o processo legislativo, passou para os grupos parlamentares da maioria o odioso da questão — sempre é uma forma de diluir responsabilidades nos consensos que procurem encontrar.
Não se esqueçam, Srs. Deputados, que esta não é a primeira vez que tentam roubar os baldios aos pobres, Salazar também tentou.
Mas, tal como os beirões da mítica serra dos Milhafres, contados por Aquilino Ribeiro, as comunidades saberão resistir a mais esta ofensiva, saberão defender os seus direitos ancestrais e darão conta disso mesmo, amanhã, integrando as manifestações da CNA (Confederação Nacional de Agricultura).
Se esta maioria conjuntural fizer aprovar esta malfeitoria, este roubo, podem contar, Srs. Deputados, com o empenho do PCP para vos dar luta e não descansaremos até à reversão completa deste esbulho. Resistiremos a mais este ataque às conquistas de Abril.
Não descansaremos enquanto os lobos uivarem sobre os baldios.

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