(projeto de lei n.º 32/XII/1.ª)
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados,
A matéria que agora debatemos tem importância acrescida por diversos motivos e envolve várias dimensões de preocupações fundamentais que têm a ver com a organização do poder democrático e do Estado democrático.
É porque por detrás destas alterações ao Estatuto dos Deputados que o Bloco de Esquerda agora apresenta e por detrás das questões imediatas que se colocam a propósito destas alterações estão preocupações que têm a ver com a credibilização da atividade política, com o reconhecimento e o crédito aos olhos dos cidadãos por parte dos eleitos e dos responsáveis políticos, e questões que também têm a ver com o entendimento que cada partido terá das condições de exercício do mandato parlamentar.
Para o PCP — e temo-lo dito nos diversos debates que têm ocorrido na Assembleia da República a este respeito —, a atividade parlamentar deve ser a atividade principal do Deputado e não uma atividade em parte time que um Deputado tem, seja advogado, seja empresário, seja o que for. Entendemos que esta deve ser a atividade principal do Deputado e que ela não deve estar subordinada a qualquer outro tipo de interesse, nomeadamente a interesses de natureza económica ou privada, nem à atuação de outros órgãos de soberania.
Sabemos, obviamente, que há entendimentos diferentes e por isso muitas das propostas de alteração ao Estatuto dos Deputados que o PCP tem apresentado não têm sido acolhidas e também por isso temos o Estatuto dos Deputados que temos…!
Sabemos que há entendimentos diferentes que têm também a ver com conceções políticas e ideológicas diferentes daquilo que é não só a atuação no âmbito do exercício do mandato parlamentar mas de acordo com a orientação política de cada partido.
Portanto, é facilmente percetível que os partidos que, no governo, sacrificam o interesse nacional aos interesses de grupos económicos e financeiros, que defendem políticas de subordinação do poder político ao poder económico, no que diz respeito à configuração do Estatuto dos Deputados, nomeadamente ao regime de incompatibilidades e impedimentos, compreende-se que não tenham posição distinta dessa e que, portanto, também não se importem, a esse nível, com a subordinação do poder político ao poder económico.
O problema da subordinação do poder político ao poder económico é a questão central deste debate e ultrapassa em muito o Estatuto dos Deputados, porque tem a ver com as orientações concretas, com as decisões políticas que nesta Assembleia da República são tomadas pelos Deputados no exercício das suas funções.
Há vários exemplos que podem ilustrar as orientações de privilégio aos interesses económicos e aos interesses do capital económico e financeiro em relação aos interesses dos cidadãos, dos eleitores e do próprio País, que é muitas vezes colocado em causa com as decisões que são assumidas.
Há pouco mais de um ano, PS, PSD e CDS-PP chumbaram uma proposta que o PCP havia apresentado para impedir os grupos económicos de fugirem aos impostos, distribuindo antecipadamente os dividendos.
Ainda recentemente, um episódio mais atual: o Grupo Jerónimo Martins (Pingo Doce) resolve fugir aos impostos mudando a sua sede social para a Holanda.
Em relação a isto, parece que da parte dos partidos da maioria nada há a exigir, ao contrário do que todos os dias é entendido em relação aos sacrifícios a impor ao povo e aos trabalhadores, em que parece não haver limites.
Estas são questões concretas que determinam a subordinação do poder político aos interesses dos grupos económicos e daqueles que são muitas vezes os contextos que fundamentam, individualmente, as relações que os Deputados da Assembleia da República podem assumir a coberto da definição do Estatuto dos Deputados em matéria de incompatibilidades e impedimentos, não limitando as relações de verdadeira promiscuidade.
Ao contrário do que disse o Sr. Deputado Telmo Correia, os Deputados estão, de facto, impedidos de estabelecer relações com o Estado nas empresas em que tenham uma participação social relevante. Porém, há situações em que o Estatuto dos Deputados é insuficiente e não serve para impedir que essas situações aconteçam, como é o caso das sociedades de advogados.
O Sr. Deputado Telmo Correia sabe bem que, nos termos em que hoje estão definidos os regimes de incompatibilidades e impedimentos, em particular estes últimos, no Estatuto dos Deputados, as sociedades de advogados constituem um «cavalo de Troia» para inviabilizar a concretização dos impedimentos que se colocam a praticamente todas as restantes sociedades. Este é um problema que continua por resolver, e não por falta de propostas, porque, inclusivamente, o PCP tem trazido à Assembleia da República inúmeras vezes propostas para ultrapassar este problema. Só por falta de vontade política desta maioria, destes três partidos que se vão alternando no governo, é que este problema ainda hoje não está resolvido.
Sabemos que não há lei que resolva integralmente todos os problemas que se colocam a este nível — há uma dimensão inegável que tem a ver com o compromisso pessoal e individual de cada um dos Deputados —, mas a Assembleia da República não pode deixar de aperfeiçoar a lei, o Estatuto dos Deputados, para impedir que estas situações de promiscuidade entre funções políticas e negócios privados existam, e o Estatuto dos Deputados deve contribuir para esse combate.
O projeto de lei do Bloco de Esquerda apresenta soluções que, obviamente, se aproximam muito até de propostas que o PCP tem apresentado noutros momentos — e, por isso, votá-lo-emos favoravelmente —, mas receamos que, infelizmente, ele tenha o mesmo destino de anteriores propostas apresentadas pelo PCP. Receamos que PS, PSD e CDS-PP, «mandando às urtigas» a retórica da ética na austeridade e da transparência, que ainda há umas semanas o Partido Socialista pretendia vender aos «pacotes» na Assembleia da República, façam, afinal de contas, uma inversão de 180º e acabem, uma vez mais, como já no passado fizeram, por rejeitar uma iniciativa que tem o mérito de contribuir para que haja algum avanço no combate à promiscuidade entre funções políticas desempenhadas pelos Deputados da Assembleia da República e os negócios privados, que têm de ser obviamente delimitados até onde puderem ser pelo Estatuto dos Deputados.