Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Altera o crime de incêndio florestal e os crimes de dano contra a natureza e de poluição, tipifica um novo crime de actividades perigosas para o ambiente

Procede à 28.ª alteração do Código Penal e transpõe a Directiva 2008/99/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Novembro de 2008, e a Directiva 2009/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Outubro de 2009

(proposta de lei n.º 10/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
A proposta de lei ora em discussão aborda matérias relacionadas com o incêndio florestal e com crimes ambientais, propondo alterações ao Código Penal. E fá-lo afirmando objectivos que consideramos compreensíveis e que facilmente recolhem unanimidade. De facto, a defesa de valores ambientais e o combate às condutas que põem em causa e que prejudicam o ambiente é algo que, obviamente, também no PCP, acompanhamos e partilhamos.
Não vamos tão longe quanto foi a Sr.ª Deputada Andreia Neto, do PSD, indicando esta proposta de lei como o novo paradigma do Governo, até porque — e a Sr.ª Deputada, provavelmente, não reparou — a proposta de lei é, praticamente em 90%, idêntica a uma outra apresentada pelo anterior governo do Partido Socialista. Portanto, se é este o novo paradigma do PSD, copiando 90% daquilo que eram as soluções propostas pelo Partido Socialista, estamos mal encaminhados.
Mas a verdade, Sr.as e Srs. Deputados, é que a proposta de lei suscita vários problemas, alguns,
obviamente, mais preocupantes do que outros. Começarei por aqueles que são menos elevantes.
O primeiro problema, já aqui referido, Sr.ª Ministra da Justiça, é que a proposta de lei não vem
acompanhada de qualquer estudo ou parecer que fundamente as soluções apontadas. E estes estudos e pareceres poderiam ser particularmente relevantes se tivermos em conta que países, como, por exemplo, a França, já incorporaram, antes da aprovação das directivas, medidas penais da natureza daquelas que agora nos são propostas, podendo ser útil percebermos, na discussão na Assembleia da República, qual foi o impacto dessas medidas aprovadas em França, qual foi o efeito dissuasor que a adopção dessas medidas penais teve em matéria de defesa dos valores ambientais.
Um segundo problema, Sr.ª Ministra, tem a ver com as alterações propostas em matéria de incêndio florestal.
É certo que a alteração não é uma alteração de monta, significando antes um ligeiro alargamento, digamos, do tipo de ilícito, mas a verdade, Sr.ª Ministra, é que a preocupação que nos suscita esta questão tem a ver com outra dimensão do problema. É que, a nosso ver, esta alteração não resolverá e poderá até ser ultrapassada pelas dificuldades que, em matéria de combate aos incêndios florestais, têm a ver, por um lado, com o desmantelamento do dispositivo de combate aos incêndios e, por outro, com as dificuldades que resultam da falta de ordenamento do território em matéria florestal e particularmente dos espaços rurais.
Portanto, do ponto de vista do ordenamento do território, enquanto não forem adoptadas outras medidas, não serão estas alterações, do ponto de vista penal, que permitirão resolver o problema.
Um terceiro problema, Sr.ª Ministra, tem a ver com o facto de algumas técnicas apontadas na proposta de lei poderem comprometer os objectivos afirmados. Quando se prevê, por exemplo, que a conduta deixe de ser punível quando a quantidade de espécies apreendidas não for
significativa, isto pode comprometer a perseguição e a dissuasão da captura de espécies protegidas. Ou seja, se um indivíduo for detido na posse, por exemplo, de um lince ibérico, esse lince ibérico não é uma quantidade significativa, apesar de só haver cerca de centena e meia de exemplares dessa espécie.
Portanto, Sr.ª Ministra, de duas, uma: ou se clarifica aquilo que é a quantidade significativa com orientações que sejam suficientemente objectivas para que, do ponto de vista jurisprudencial, possa haver alguma segurança na aplicação de normas criminais, ou, então, o tipo de soluções técnicas apresentado na proposta de lei pode comprometer os objectivos afirmados.
Um quarto problema, também já aqui referido, nomeadamente pela Sr. Deputada Teresa Anjinho, tem a ver com a inexistência de meios de fiscalização que possam, depois, concretizar as medidas penais agora apontadas. Enquanto tivermos as nossas áreas protegidas, por exemplo, despidas de meios de fiscalização, particularmente de vigilantes da natureza, que assegurem a cobertura daquele território, garantindo a aplicação das regras legais e também criminais que lhes são destinadas, obviamente teremos grandes dificuldades em que estas medidas penais possam ser concretizadas e possam garantir este efeito dissuasor.
O último problema, Sr.ª Ministra, é o que consideramos de maior relevância e de maior gravidade, e também já foi aqui referido, mas, infelizmente, não com tanta veemência quanto
aquela que o PCP lhe reconhece. Tem este problema a ver com o facto de estarmos a discutir alterações ao Código Penal português que resultam de imposições, a nosso ver, ilegítimas e ilegais, da União Europeia aos Estados-membros.
É que, Sr.ª Ministra, o que estamos a discutir são alterações que resultam de directivas que impõem aos Estados-membros a criação de crimes e a definição de penas — e, como a Sr.ª Ministra bem sabe, este foi um problema discutido durante largos anos no seio da União Europeia.
O que está em causa são directivas que violam os princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade, pondo em causa um aspecto central do núcleo essencial da soberania dos Estados que é da competência para a definição de crimes e de penas.
E, Sr.ª Ministra, se o Estado português deixa de ser soberano numa matéria como a da definição de crimes e de penas, em que é que, afinal de contas, se manifesta a soberania nacional?
A verdade, Sr.ª Ministra, é que estas directivas foram discutidas durante anos precisamente porque a questão que se colocava era não só a do cumprimento daqueles princípios que
norteiam a construção comunitária, designadamente os princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade, mas também a de saber se o legislador comunitário seria competente para intervir em matéria de Direito Penal ou se este domínio estaria reservado aos Estados-membros.
E apesar de nunca ter sido assumida, clara e inequivocamente, a competência do legislador comunitário, a verdade é que as directivas aí estão e o Governo aceita que assim seja.
Ora, Sr.ª Ministra, pela nossa parte, PCP, entendemos que estamos a discutir matéria da maior relevância.
E por muito que os bondosos propósitos da proposta de lei sejam afirmados, a verdade é que a definição de ilícitos criminais e respectivas penas é matéria de importância tal que a própria Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 165.º, a integra naquelas matérias que são de competência reservada da Assembleia da República.
Assim sendo, Sr.ª Ministra, o PCP considera que não é admissível que a Assembleia da República possa legitimar um processo que põe em causa a soberania nacional e que transforma, afinal de contas, os Deputados desta Assembleia da República em monges copistas daquilo que são as determinações da União Europeia.
Chega-se mesmo ao ridículo, como já aqui foi referido pelo Sr. Deputado Ricardo Rodrigues, do Partido Socialista, de propor a incorporação no Código Penal português de normas que remetem a definição de condutas para pontos de regulamentos da União Europeia.
Ora, Sr. Ministra, consideramos que isto, para além de uma péssima técnica legislativa, confirma, com um argumento absurdo, aquilo que é a submissão da soberania nacional aos ditames da União Europeia. E esta, Sr.ª Ministra, é uma questão de princípio que motiva a oposição do PCP a esta proposta de lei.

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