"A água não é uma mercadoria"

Proteção dos direitos individuais e comuns à água (Iniciativa legislativa de cidadãos)
(projeto de lei n.º 368/XII/2.ª)
Sr.ª Presidente,

Srs. Deputados:
Em primeiro lugar, saúdo, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, os cerca de 44 000 subscritores da presente iniciativa legislativa de cidadãos. Saúdo o seu empenho, a sua persistência, a sua luta pela água de todos e pela gestão democrática dos recursos hídricos.
Saúdo também os que estão presentes nas galerias e que representam esses 44 000 cidadãos.
A Lei da Água, do Governo do Partido Socialista e de Sócrates, a pretexto da transposição da Diretiva-Quadro da Água, veio introduzir, em Portugal, a possibilidade de privatização da água e, em boa parte, do domínio público hídrico. O PCP denunciou essa intenção. O Ministro do Ambiente, de então, foi claro e confirmou a estratégia do Governo PS como uma privatização de baixo para cima.
Por essa altura, o Grupo Águas de Portugal perdeu para os privados a sua primeira empresa — a Aquapor —, pelas mãos do Partido Socialista. Ou seja, a ambição de privatização das águas e dos sistemas de abastecimento, distribuição e tratamento é uma velha aspiração dos protagonistas da política de direita, aspiração essa que este Governo PSD/CDS partilha e tenta concretizar com o fervor ideológico que o caracteriza, contra o interesse público, contra as populações, preparando o setor inteiro e as empresas públicas que atualmente o gerem para a sua aquisição por privados.
Todas as peças da política do Governo para o setor da água encaixam numa clara estratégia de reconfiguração empresarial e funcional dos sistemas, no sentido de assegurar a sua rentabilidade económica, fazendo das autarquias cobradores em nome de terceiros.
A água não é uma mercadoria nem constitui um mercado concorrencial. Os seres humanos não podem escolher não beber água, nem podem trocar a água por qualquer outro bem ou produto. Como tal, o valor da água ultrapassa em muito o seu valor económico, tem um valor ambiental, um valor social e um valor que é por natureza vital para todos os seres vivos do planeta.
A conceção do Governo, porém, não contempla as diversas dimensões da importância da água, concentra a sua política na exploração do seu valor financeiro, particularmente num contexto de apropriação por privados.
A chamada reestruturação do setor das águas, isto é, os despedimentos e a preparação para a privatização, o PEASAR II e o novo enquadramento da chamada entidade reguladora são as peças de um puzzle político que consiste na criação e empresarialização de um mercado privado que se apropria de um bem público para o vender de acordo com os seus desígnios de acumulação e de lucro.
E é importante explicar aqui a dívida das autarquias à Águas de Portugal, porque tem sido utilizada como pretexto para a privatização, mas importa referir que essa dívida é empolada quer pelos investimentos cujo retorno é obrigatório em 50 anos — investimentos para os quais as autarquias não opinam, não contribuem, não decidem —, quer pelos consumos mínimos obrigatórios que, muitas vezes, as autarquias são obrigadas a contratualizar, ou seja, que não consomem mas têm de pagar.
A privatização da água tem vindo a demonstrar-se uma opção desastrosa, nos mais diversos sentidos, e em todo o mundo.
Em primeiro lugar, porque retira a gestão da água da intervenção democrática dos cidadãos. Enquanto que os cidadãos elegem os órgãos de soberania locais e nacionais, não elegem os membros dos conselhos de administração das empresas privadas.
Em segundo lugar, porque acrescenta aos custos da água, da sua distribuição e do seu tratamento, o custo do lucro dos acionistas, aumentando os preços.
Em terceiro lugar, a qualidade do serviço tenderá a degradar-se como em qualquer privatização, na medida em que quanto menor for o investimento e quanto menos trabalhadores participarem nas empresas mais lucro essas empresas gerarão.
O projeto de lei que é apresentado pelos cidadãos estabelece o direito fundamental à água e ao saneamento e disposições de proteção desse direito, bem como do direito à água e à sua propriedade pública, como recurso, e à sua gestão no interesse coletivo, hierarquizando as utilizações da água e impedindo a privatização e a mercantilização dos serviços de águas das infraestruturas públicas e do domínio público.
Esta iniciativa legislativa de cidadãos constitui uma afirmação dos direitos e dos interesses de toda a população, no cumprimento da Constituição da República Portuguesa, e garante a Portugal a universalidade do direito humano à água e ao saneamento, tal como já reconhecido pelas Nações Unidas e que Portugal subscreveu, mas ainda não verteu na legislação nacional, apesar de ter um Governo que pratica, no seu território, o contrário.
Todas as privatizações se mostraram, até agora, lesivas do interesse nacional, dos utilizadores dos serviços, da qualidade, e até mesmo lesivas para a economia e a soberania nacionais, entregando aos grandes grupos económicos o controlo de alavancas fundamentais da nossa economia.
A entrega da água aos grandes grupos económicos não só representa politicamente exatamente o mesmo que todas as restantes privatizações, ou seja, a abdicação do interesse nacional por um Governo que se comporta como uma comissão de negócios, que vende o País a retalho, cuja ideia de patriotismo é uma bandeira na lapela, enquanto a convertem numa marca comercial, como representa também a apropriação por interesses privados de uma alavanca absolutamente fundamental para todas as atividades humanas, a começar pela própria existência, pelo bem-estar, higiene e saúde, pela própria vida, mas que tem implicações em todas as dimensões da atividade económica de uma sociedade.
A presente iniciativa é um contributo muito valioso que 44 000 cidadãos entregam a esta Assembleia e é um ponto de partida para a construção de uma lei que impeça o tratamento político da água, como se de uma mercadoria se tratasse.
De todas as bancadas, ouvimos os grandes compromissos com o interesse público, com a natureza pública da água; ouvimos que os serviços públicos podem ser prestados por privados e que o Governo cá está para controlar a ganância dos grandes grupos económicos, pelo que tudo correrá bem.
Não precisaremos de relembrar o que sucede por todo o mundo, o movimento de renacionalização e municipalização da água, depois de experiências catastróficas de privatização. Basta-nos olhar para Portugal e pensar o que seria hoje da nossa água se estivesse entregue a um grupo monopolista, como, por exemplo, o Grupo Espírito Santo?!
A esses partidos, dizemos: façam as promessas e as palavras valerem pela prática, votem a favor do projeto de lei de iniciativa popular, votem por uma água pública, de gestão democrática e ao serviço das populações e do País. Caso contrário, estarão, uma vez mais, a votar no interesse dos acionistas de um qualquer grupo privado e não no dos cidadãos que os elegeram para esta Assembleia.

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