A actualidade do pensamento de Clara Zetkin
Algumas notas - Intervenção de Manuel Gusmão, do CC do PCP
I
Quando queremos pronunciar-nos sobre a actualidade de um tipo de pensamento, de um conjunto de referências, de princípios metodológicos, de formulações que resultam da análise e de soluções para determinados problemas, um dos procedimentos habituais está no estudo da génese e formação desse pensamento em relação com o contexto histórico que o viu nascer. Entretanto, esta contextualização deve ter em conta que um pensamento vivo e novo pode antecipar outros contextos; até na medida que ele contribui para uma reconfiguração do seu próprio contexto genético. No caso de Clara Zetkin, podemos referi-la ao seu contexto em termos do pensamento social e político, mas não posso ignorar que ela é parte activa desse contexto, ou seja não é apenas parte a compreender tendo em conta o seu tempo, mas ela ajuda a compreender o seu tempo. Por outro lado, se quero compreender a actualidade do seu pensamento, tenho, precisamente, que procurar aquilo que, para além de ser determinável em termos de uma dada situação histórica concreta, ganhou uma validade demonstrável em outras situações, que podem ser conjunturalmente muito diferentes.
Clara Zetkin é alguém que exprime uma profunda unidade entre teoria e acção prática e encontra o seu contexto de compreensão não apenas na história das ideias sociais, na viragem do séc. XIX para o séc. XX, mas mais produtivamente, no processo de evolução do movimento operário internacional, nesse arco de tempo que é em simultâneo o contexto do desenvolvimento do marxismo após a morte de Marx e Engels. Desde a fundação da II Internacional (1889), à sua degenerescência política, à Revolução de Outubro e à fundação da III Internacional (1919), encontramos um riquíssimo período, marcado pelos combates que vão opor os herdeiros revolucionários do pensamento marxista, entre os quais Lénine, Rosa Luxemburgo e, também, Clara Zetkin e os revisionistas social-democratas. É desse caldo revisionista que se alimentam as posições capitulacionistas perante a explosão da I Guerra Mundial, as daqueles dirigentes sociais-democratas que, rompendo os seus compromissos internacionais cederão às burguesias dos seus países e entregarão os seus povos à carnificina sangrenta que foi a I Guerra Mundial.IIÉ neste contexto que Clara Zetkin nos surge como alguém que não repete um pensamento acolhido e como que culturalmente herdado, antes alguém que é suficientemente atenta e ágil, não apenas para usar criadoramente a teoria marxista, mas para a desenvolver. E isso de três maneiras:
(a) pela análise teoricamente informada das condições concretas de uma situação concreta, procedendo ao mesmo tempo ao desenvolvimento do marxismo e à apropriação crítica de outros programas de pensamento e acção.
(b) pela reelaboração teórica tornada necessária por essa análise e que deverá ser tida em conta na discussão de orientações para a acção transformadora.
(c) pela elaboração de novas orientações concretas e das condições da sua concretização.
1. Vejamos um pouco mais de perto como ela opera.
Com a concepção materialista da história, Marx não nos forneceu fórmulas acabadas sobre a questão feminina, ele deu-nos uma coisa melhor, um método justo, seguro, para a estudar e compreender – escreve ela. E o que de imediato acrescenta é todo um programa de investigação virado para a acção: Só a concepção materialista da história nos permite situar, com clareza, a luta das mulheres no fluxo do desenvolvimento histórico geral, de aí ver a justificação e os limites históricos à luz das relações sociais gerais, de reconhecer as forças que a animam e a conduzem, os objectivos que persegue, as condições nas quais os problemas levantados podem encontrar solução (p. 155).
2. O que vos proponho de seguida é o destaque de alguns pontos, a meu ver estratégicos, desse programa de teoria e acção políticas revolucionárias, tal como se pode depreender dos textos de Clara Zetkin, publicados neste livro. Desde o princípio, designadamente, desde a sua intervenção no Congresso Internacional Operário de 1889, que funda a II Internacional, Clara Zetkin afirma uma relação que julgo básica e fundamental para o seu pensamento: «o problema da emancipação das mulheres ... faz parte da questão social». A «questão social», entenda-se, é a questão da emancipação social dos trabalhadores. Ao aperceber-se do carácter histórico da «moderna questão das mulheres» e ao colocá-la como parte da questão social, Clara Zetkin, referirá insistentemente essa questão à contradição nuclear entre o Trabalho e o Capital que, nas sociedades contemporâneas, estrutura o terreno da luta de classes.
Estas são julgo articulações teóricas fundamentais do seu pensamento.
Algumas observações.
A primeira para chamar a atenção para o carácter decisivo da percepção de que a «moderna» questão das mulheres é uma questão histórica e muda com as mutações técnicas e sociais das forças produtivas, assim como com os estádios de desenvolvimento da luta de classes.
Foi só o modo de produção capitalista que, ao promover a transformação social, originou a moderna questão das mulheres, porque destruiu o antigo sistema económico familiar que, durante o período pré-capitalista, garantia à grande massa das mulheres não só a subsistência como um sentido de vida (p. 127).
Uma segunda observação: a historicidade da questão e o modo como ela é concebida como parte da questão social são justamente a raiz daquilo que no pensamento de Clara Zetkin se opõe a uma concepção da questão feminina como uma espécie de eterna «guerra dos sexos»; é esta historicidade que a leva a distinguir a diversidade das reivindicações das mulheres de acordo com as diferentes classes e a estudar atentamente a progressão do número de mulheres assalariadas nos diferentes sectores da produção agrícola, industrial e comercial, e o crescimento muito mais lento da sua sindicalização e da sua participação na acção política.
Uma terceira observação: é ainda este conjunto de relações que permite a Clara Zetkin criticar aqueles que, no interior do movimento operário, começaram por ter como reivindicação a supressão do trabalho da mulher fora de casa, que eram levados a considerar esse trabalho como concorrente com o seu próprio emprego e salário. As páginas em que a imagem do trabalho das mulheres como concorrência desleal é desmontada como efeito económico e ideológico da exploração capitalista, como violência material sobre as mulheres trabalhadoras e também indirectamente sobre os trabalhadores, são páginas brilhantes que mostram a capacidade do marxismo funcionar como crítica daquelas ilusões da ideologia dominante que tendem a passar como evidências do senso comum. É aliás curioso verificar que o tipo de raciocínio ou de operação intelectual aqui envolvido é do mesmo tipo daquele com que mais tarde se poderá mostrar o carácter mistificatório dos discursos racistas que tendem a apresentar o trabalho dos trabalhadores imigrantes como «concorrência desleal».
3. Clara insiste a cada vez que volta à questão: as mulheres não formam uma classe social ou um grupo socialmente homogéneo antes constituem um grupo social heterogéneo do ponto de vista de classe. É esta constatação que se transforma num guia da análise social e a leva a distinguir as reivindicações inspiradas pela diferente situação social, que teriam no ponto de vista de classe uma distinção fundamental que estrutura uma série de outras diferenças: as mulheres burguesas seriam levadas pelos seus próprios objectivos a conceber ou a imaginar as suas lutas pela igualdade na formação e acesso às várias profissões como lutas contra os homens da sua classe. Diferentemente,
«a libertação social [da mulher proletária] ela não a arrancará, como a mulher burguesa, lutando com ela contra o homem da sua classe, ao contrário, ela conquistá-la-á lutando com o homem da sua classe contra a sociedade burguesa, incluindo a maioria das senhoras da burguesia» (p. 144).
4. Verificando que a estratificação social do mundo feminino se manifesta na própria luta pela igualdade política entre mulheres e homens e, nomeadamente, nas divergências sobre as finalidades do direito de voto e sobre o seu valor intrínseco, concluindo pela impossibilidade da luta unitária de todo o sexo feminino, a sua posição não se fecha numa posição sectária mas vai até a admissão de uma convergência, numa base de princípios de autonomia e independência.
Não podemos exigir às mulheres da burguesia que se reneguem. É por isso que as proletárias não podem contar com o seu apoio e devido aos antagonismos de classe está posto de parte que elas próprias se juntem às fileiras das feministas burguesas. O que não quer dizer que repelissem as mulheres da burguesia se estas, na luta pelo direito de voto das mulheres, se colocassem atrás, ou ao seu lado, a fim de bater em conjunto continuando a marchar separadamente. Mas as proletárias devem compreender bem que não poderão conquistar o direito de voto lutando contra os homens e ao lado das mulheres, sem distinção de classe, mas somente lutando ao lado de todos os explorados sem distinção de sexo, contra todos os exploradores, homens ou mulheres (p. 166).
III
Uma questão sobre a qual gostaria de terminar é o modo como tudo tende no pensamento de Clara Zetkin, e graças a ela em larga medida no pensamento marxista e marxista-leninista, para a ideia de que só na luta pela emancipação social dos trabalhadores se conseguirá a emancipação social das mulheres. Esta ideia está associada a uma outra que quase aparece como a outra face da mesma ideia. Trata-se agora de que o socialismo e o comunismo só vencerão com o contributo das mulheres proletárias, só vencerão com a integração activa do processo de emancipação social das mulheres. Esta segunda ideia aparece aliás em Lénine como uma constatação histórica, referindo-se ao triunfo de Outubro: «sem elas não o teríamos conseguido, ou então teria sido apenas uma meia vitória».
Esta unidade concreta entre a emancipação social dos trabalhadores e a emancipação das mulheres, não é apenas para a autora um desejo, ou um ideal. Essa unidade concreta é desde logo um princípio de inteligibilidade de qualquer situação concreta das mulheres, um critério de medida, pelo qual «o grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral» e um horizonte de possibilidade que ilumina as fases e passos do processo revolucionário da emancipação humana.
Clara Zetkin demonstra a inanidade dos argumentos pseudo-científicos que, no seu tempo, procuravam argumentar como inferioridade a alteridade da especificidade feminina no plano intelectual. Critica a unilateralidade das diferentes posições feministas burguesas suas contemporâneas no que diz respeito à valorização quer da especificidade feminina, quer da sua pertença geral ao humano. Clara Zetkin opõe-lhes uma dialéctica social concreta que une o humano e o feminino: «É necessário – escreve ela – que, na mulher, o humano e o feminino possam desenvolver-se em harmonia em conjunto e paralelamente» (p. 143). Por outro lado, ela não cai no erro daquelas que critica e que é o de não reconhecerem o processo de individuação social, processo de auto-formação dos indivíduos sociais, porque como é próprio da ideologia burguesa indivíduo e sociedade são à partida pensados como regidos por uma oposição abstracta. Finalmente, colocando, à partida e à chegada, a real dimensão social das razões de luta assim como dos obstáculos a vencer, Clara Zetkin consegue revelar a superioridade do critério de classe enquanto factor de inteligibilidade da situação das mulheres e dos seus caminhos de luta.