&quot;15 de Fevereiro&quot;<br />Octávio Teixeira no &quot;Diário Económico&quot;

As manifestações populares do passado dia 15, a favor da paz e contra uma nova guerra no Iraque, foram um acontecimento impressionante, de enormes importância e significado.Pela sua dimensão, que dificilmente encontrará paralelo no passado: mobilizou seguramente mais de 10 milhões de homens e mulheres, de todas as raças, cores, confissões religiosas e convicções políticas (sendo que o jornal britânico “The Guardian”, com base em números fornecidos pelas forças policiais e pelas entidades organizadoras, calcula que naquele dia terão saído às ruas cerca de 30 milhões de pessoas). Também porque esse tão amplo movimento popular abrangeu as cinco partidas do mundo, numa verdadeira globalização do protesto contra a guerra. Ainda porque esses muitos milhões de manifestantes deram voz à enorme maioria da população mundial que, como o mostram as sondagens publicitadas nos mais diversos países e regiões do planeta, condena de forma inequívoca o recurso e abuso da guerra desejado e praticado pelos senhores da mesma, exige que os governos ouçam e respeitem a vontade dos seus povos, rejeita de forma viva que a potência hegemónica mundial, os EUA, se arvore e comporte como o decisor, o juiz e o polícia do nosso globo. Mas este grito uníssono pela paz, que no passado dia 15 a opinião pública internacional fez ouvir em mais de 600 cidades de todo o mundo, corre o risco de não ser tido em conta nas decisões e acções dos falcões da guerra. A teimosia cega e surda da Administração americana liderada por Bush, a arrogância imperialista com que pretende impor a “legitimidade” (que lhe seria dada pelo seu poderio económico e, fundamentalmente, militar) para dominar e gerir o mundo de acordo com os interesses geopolíticos e económicos dos EUA e das suas multinacionais, parece não deixar margem para que vinguem a razão da paz e as razões dos povos. E nesta corrida para a guerra Bush arrasta no seu séquito o coadjuvante Tony Blair e os aios submissos do “bando dos oito”. Para Bush, a invasão do Iraque visando o controlo de uma das principais reservas petrolíferas mundiais, tornou-se uma obsessão. Entretanto, os pretextos publicamente aduzidos vão caindo pela base. A posse, pelo Iraque, de armas de destruição maciça. É possivel. Mas o relatório dos inspectores apresentado ao Conselho de Segurança da ONU a 14 de Fevereiro não confirma a existência dessas armas. Antes conclui, no que se refere às químicas e biológicas, que “as inspecções tinham progredido e dado resultados, que o Iraque tem cooperado (mais que anteriormente), e que é necessário prosseguir as inspecções”, afirma a não existência de “provas de actividades nucleares interditas” e contesta “provas” dias antes esgrimidas por Collin Power. Porém, para os defensores da acção militar, as armas têm de existir. É um dogma. O regime iraquiano é suspeito de relações com a Al-Qaeda. Sucede que nem Bush nem Blair apresentaram, até hoje, provas de tais ligações, ao mesmo tempo que calam as suspeitas sobre a Arábia Saudita. Dois pesos duas medidas, porque eles assim o querem. O Iraque violou várias resoluções das Nações Unidas. Sem dúvida. Omitindo, entretanto, que o país que reiteradamente vem violando mais resoluções da ONU é Israel. Num caso, a violação sistemática é coberta e apoiada pelos EUA. Noutro, é pretexto para a guerra. Saddam Hussein é um ditador. Todos estaremos de acordo. É um ditador. Como tal, execrável. Infelizmente, não é caso único, incluindo na região. Mas os que nesse facto pretendem justificar a guerra, calam que o governo americano apoiou a ditadura de Saddam (como muitas outras por esse mundo fora) enquanto isso foi do seu interesse, e que eles próprios não levantaram a sua voz quando Saddam chacinou muitos milhares de comunistas iraquianos e de outros opositores políticos a essa ditadura. Para os apologistas da guerra, vale tudo. Não olham a meios. O relatório com que Blair justificou a entrada do RU na guerra contra o Iraque plagia quatro páginas, “mantendo mesmo os erros de ortografia e de sintaxe originais”, de um artigo numa revista especializada que descrevia a actividade dos serviços secretos iraquianos no Koweit... em 1990 e 1991. Nem temem cair na mais ridícula subserviência. Como a tentativa de vender às opiniões públicas a ideia de que “a única maneira de preservar a ONU seria não se opor frontalmente aos EUA e o único meio de salvar a UE, profundamente dividida após o apoio de vários dirigentes europeus a Bush, seria alinhar no imediato com o Tio Sam”. Do género, o que é bom para a América é bom para o Mundo, obedecer aos EUA é preservar a harmonia na Terra e a felicidade entre os Homens. É hipocrisia dizerem que também eles defendem a paz, mas que no caso não há alternativa. Há alternativas. A França e a Alemanha apresentaram uma. Podem não concordar com ela. Mas existe. E é política e intelectualmente torpe, colocar a questão do apoio ou da oposição à invasão militar do Iraque como a defesa da democracia ou da ditadura. Os muitos milhões de manifestantes de 15 de Fevereiro, a maioria das populações que as sondagens referem, opõem-se às ditaduras como se opõem à guerra. Mas rejeitam conceitos de “guerras preventivas” que assentam no arbítrio dos poderosos. Recusam que a potência hegemónica dite ao mundo a lei do mais forte. Defendem que o direito internacional obrigue todos os Estados, independentemente do seu peso económico e militar. Para a resolução de conflitos advogam a via política, não a militar. Pensam a paz como um valor nas relações internacionais, reafirmando que “nunca há guerras boas, nem paz má”. Nesta matéria, a responsabilidade política impõe clareza de posições. A afirmação de Ferro Rodrigues de que apoiar a manifestação de Lisboa seria “fazer o jogo do regime iraquiano”, tem um corolário: não apoiar foi fazer o jogo de Bush. Aliás, a posição do PS sobre esta questão tem sido lamentável e insustentável. O PS demite-se de ter opinião própria sobre a guerra. Desde que seja decidida pelo Conselho de Segurança, apoiará a guerra no Iraque ou algures. Quaisquer que sejam os fundamentos ( e os interesses) que ditem a decisão. Se é um facto que Durão Barroso e o PSD praticam a vassalagem face à Administração dos EUA, bem se pode dizer que Ferro Rodrigues e o PS defendem o mero e acrítico seguidismo em relação ao Conselho de Segurança da ONU. Triste sina esta.

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