Entrevista a Abdullah al-Hourani sobre a situação na Palestina
Avante Edição N.º 1698, 15-06-2006
Do Médio Oriente, os ventos continuam a soprar notícias de combates e ocupação, massacres e assassínios selectivos, atrocidades que nos levam a pensar que com a política da guerra vamos recuar décadas de conquistas civilizacionais.
A par do Iraque e das ameaças belicístas contra a Síria e o Irão, a Palestina continua no centro dos conflitos, apesar do povo ter eleito, tão democraticamente como as potências ocidentais exigiram, um parlamento e um governo.
Em conversa com Abdullah al-Hourani, presidente da Assembleia Palestiniana pela Defesa do Direito ao Regresso e da Comissão Política do Conselho Nacional Palestiniano, ficámos a saber que, afinal de contas, a vitória do Hamas nas legislativas funciona mais como pretexto que como causa fundamental do reacendimento das diferenças israelo-palestinianas, até porque, explicou-nos, o centro da questão continua a ser a ocupação ilegítima dos territórios palestinianos e a negação do direito do povo à autodeterminação.
Qual é o actual quadro da situação nos territórios palestinianos? Fala-se em fome entre o povo, escassez de géneros de primeira necessidade...
A situação, quer na Cisjordânia quer na Faixa de Gaza, é neste momento muitíssimo difícil. A razão de fundo é a de sempre, a ocupação israelita e as suas consequências.
Nas cidades e aldeias da Cisjordânia, todos os dias o exército ocupante faz detenções, mata palestinianos, procede à demolição de habitações e instalações públicas que prestam serviços à população, tudo isto acompanhado pelo permanente estabelecimento de novos postos avançados, de colonatos e, claro, continuam a construção de um muro de betão e arame farpado, a que nós chamamos de «muro racista».
Isto provoca uma divisão cada vez mais evidente dos territórios palestinianos, das aldeias e cidades onde vive o nosso povo, cada vez mais isolado e com cada vez menos parcelas de terra que entretanto vão sendo anexadas com estes projectos.
Os palestinianos procuram resistir. Manifestam-se, denunciam as invasões e os ataques selectivos, mas o facto é que os governos israelitas mantém a mesma política.
Na Faixa de Gaza, onde vivem cerca de um milhão e meio de palestinianos, o povo é atacado diariamente. As bombas, os tanques, as operações aéreas dia e noite.
Para além desta causa de fundo - a ocupação - que transforma o quotidiano do povo numa vida de permanente insegurança, também a situação económica é extremamente complicada. Todas as ajudas que provinham do exterior, da UE, dos EUA, das nações árabes, encontram-se retidas pelo controlo israelita.
Este é um problema que vem desde os tratados de Oslo, quando Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP) acordaram que tudo o que diz respeito a exportações e importações, bens ou fundos, para a Autoridade Nacional Palestiniana (ANP), tinha que passar pela alfândega israelita.
O que agora sucede é que o governo de Tel Avive retém cerca de 600 milhões de dólares mensais destinados à ANP. Em consequência, o desemprego atinge milhares de pessoas e entre os funcionários públicos ninguém recebeu um tostão nos últimos três meses, daí o descontentamento geral.
Este quadro surge na sequência do embargo decretado pelos ditos «doadores internacionais». Mas qual o peso real da vitória do Hamas no estrangulamento dos fundos, argumento que foi usado pelo EUA e pela UE para decretarem a medida?
Penso que temos que «separar as águas», pois o principal problema do povo palestiniano continua a ser a ocupação israelita.
Do ponto de vista económico, os europeus, os norte-americanos e alguns dos governos árabes vizinhos, pretendem fazer crer que estão a sujeitar os palestinianos à carência de meios básicos por causa da vitória do Hamas, mas vale a pena clarificar a situação.
Todos eles estiveram de acordo e estimularam os palestinianos a realizar eleições. O sufrágio cumpriu os padrões que eles entendem como democráticos. Bateram palmas, saudaram o acto, qualificaram-no de livre e justo, mas depois boicotam a decisão do povo palestiniano e punem a população pela escolha que fez. Supões que noutro qualquer país isto acontecia? Supões que outro povo exercia o seu direito de voto, decidia, e depois era castigado?
O Hamas é um partido de direita, mas partidos de direita existem em vários países nos quais também ganham eleições. Não vejo a UE e os EUA fazerem disso um problema, pelo contrário. O que asseguro é que estavam à espera da vitória do Hamas para recuar na solução do problema israelo-palestiniano.
Mesmo no que toca ao reconhecimento de Israel, o Hamas não o nega, não recusa terminantemente, pelo contrário, ao admitirem que a ANP é o órgão que tutela a Cisjordânia e a Faixa de Gaza estão, implicitamente, a afirmar que do outro lado da fronteira existe um Estado. O que não fazem é reconhecer formalmente o Estado de Israel sem que da parte dos israelitas se proceda da mesma maneira, isto é, que estes dêem o passo de reconhecer a existência de um Estado palestiniano livre e soberano, cujo povo tem direitos.
De facto, Israel não está interessado em reconhecer a Palestina, pretende tão só ser reconhecido pelos palestinianos.
Mudam os partidos, continua a ocupação
E entre o povo palestiniano, entre os movimentos e partidos que lutam pela independência, houve alguma esperança que a mudança de governo em Israel levasse a uma alteração de conduta nesse aspecto?
De forma nenhuma. Todos os partidos israelitas que se sucedem no poder, quer seja o Kadima, o Likud ou os trabalhistas, todos sem excepção, são sionistas. Todos têm o mesmo plano a respeito dos palestinianos e da independência da sua pátria.
Durante os governos trabalhistas de Perez ou Barak, o número de colonatos construídos na Cisjordânia foi superior aos construídos pelo Likud, que é de direita. Isto quer dizer que todos negam o direito à soberania palestiniana, todos negam o direito dos refugiados voltarem ao seu país, todos negam que a Cisjordânia é um território ocupado, consideram-na como parte de Israel e entre eles até se lhe referem como a Judeia.
Então, neste quadro, estão do mesmo lado, por isso, sempre que muda o governo, a política continua e da parte da comunidade internacional mais e mais exigências são feitas aos palestinianos, como se os israelitas estivessem a avançar em direcção à paz e à convivência pacífica.
Quer dizer então que a vitória do Hamas foi usada simplesmente como um «bom pretexto»...
Exactamente, neste momento estão a elevar quase ao extremo o nível da propaganda antipalestiniana. Convém não esquecer que antes da vitória do Hamas, antes deles assumirem o executivo, já o governo israelita se negava a reconhecer um parceiro legítimo para negociar do lado dos palestinianos. Aconteceu assim com a presidência de Arafat e repete-se com Abbas, que no caso até é um homem de diálogo.
A solução passa por focar o debate e as negociações na questão central. Vamos lembrar que até 1987 o Hamas não existia enquanto organização. Temos que recordar que mesmo depois da OLP reconhecer a existência do Estado de Israel e assinar vários acordos de paz, o Hamas não tinha expressão nem força entre as massas populares.
Divisão facilita ocupantes
Pode-se então falar em cansaço e descrédito, entre o povo palestiniano, na solução negociada?
Sim, claro que sim. O desejo profundo dos palestinianos é a paz e a soberania, por isso aceitaram tantas concessões perante os israelitas, mas não obstante os nossos esforços, nada mudou.
O Hamas chega ao poder com um lema de campanha que traduz o contexto: «A Palestina reconheceu Israel, mas Israel não fez o mesmo». Se Israel reconhecer os nossos direitos, então não há razão para que esta «bandeira» do Hamas se mantenha.
O povo apoiou o Hamas pela situação criada. Talvez os EUA e a UE pensem que colocando pressão sobre o povo, sobre as suas condições de trabalho e de sobrevivência, estão a golpear o Hamas, mas isso não corresponde à realidade.
Por outro lado, entre nós, partidos e organizações palestinianas, estamos a trabalhar no estabelecimento de um programa comum e se o Hamas não responder positivamente a este esforço, será o povo, o nosso povo, o primeiro a condenar essa atitude. O facto é que o Hamas está a analisar os pontos do programa, as várias matérias contidas, e já deixou claro que reconhece Israel se os israelitas reconhecerem a Palestina.
Ainda outra questão que importa esclarecer é que aos israelitas isto não parece interessar, ou seja, o estabelecimento de uma plataforma de entendimento histórica entre as várias formações políticas palestinianas como base para a paz e a soberania não é do agrado dos sionista. Talvez por isso procurem fomentar as divisões, explorem tanto as questões internas. O que posso garantir é que nunca haverá uma guerra civil entre os palestinianos. Nunca! Por isso, a solução passa por focar o centro da questão na ocupação dos nossos territórios. É para esse aspecto que Israel se tem que voltar se quiser chegar a algum lado.
Outra das bandeiras do Hamas nas legislativas foi o combate à corrupção no interior da ANP e do partido até então maioritário, a Fatah. Existia mesmo um quadro de corrupção generalizada?
Havia fenómenos de corrupção no governo palestiniano tão profundos como em qualquer outro governo ocidental. Nem mais, nem menos. Não vale a pena iludir a questão, fazer de conta que os erros e as deturpações não acontecem, mas os que nos apontam o dedo não deviam ser tão ligeiros.
Se queremos explicar a partir deste aspecto a vitória do Hamas, então é claro que o povo exigiu o fim de fenómenos negativos no governo, agora, mais uma vez, não é aqui que se explica o fundamental.
Dou-te um exemplo simples que demonstra que o Hamas se organizou melhor nas eleições que os restantes partidos. A Fatah, na liderança palestiniana há mais de 40 anos, pensou que eram «favas contadas», surgiu dividida. Em vez de nomear candidatos de acordo com o número de lugares disponíveis em cada círculo, apresentou-se dispersa.
A cidade de Gaza tinha direito a dez lugares no parlamento. O Hamas nomeia dez candidatos e a Fatah nomeia 15, logo, os votos ficam dispersos por muitas cabeças, mas se juntares os votos de todos os 15 candidatos da Fatah naqueles círculos tens mais do que os depositados na Hamas.
Reorganizar para ganhar força
Visto que existem muitos e graves problemas laborais no seio das comunidades palestinianas, existe alguma linha política que aponte para a organização dos trabalhadores?
Até agora essa tem sido uma das debilidades do movimento palestiniano, a não existência de uma organização sindical unificada, sólida, necessária, com certeza, desde logo porque os trabalhadores palestinianos não existem apenas nos nossos territórios, também estão para lá da fronteira. Eu arrisco mesmo a afirmar que se já tivéssemos um trabalho mais adiantado nesta matéria, talvez os tais fenómenos de corrupção não tivessem tido tanto espaço e a nossa força se fizesse sentir de forma mais efectiva.
As organizações palestinianas têm relações com organizações de esquerda de Israel? É também por esse caminho que passa a solução do conflito?
Sim, com algumas, mas a que se destaca mais é o Partido Comunista, até porque os restantes partidos são sionistas. Em Israel, a maioria dos comunistas são de origem árabe, isto é, são árabes israelitas. Os sionistas no interior daquele partido não têm expressão, a maioria foi embora.
Quanto à solução, o que te posso dizer é que, entre os povos europeus, fundamentalmente, existe uma grande consciência de que os palestinianos têm direito à autodeterminação, mas os governos não ouvem o próprio povo.
Se os governos europeus quiserem, podem pressionar Israel, podem colocar a questão na ocupação, como aliás era o que acontecia quando a União Soviética ainda existia. Havia um Estado, um contra-poder que pressionava Israel a reconhecer o direito dos palestinianos a uma pátria igualmente soberana.
Nos dias de hoje, o que tem que se fazer é pressionar Israel, obrigá-los a mudar de política e de atitude. Não é aceitável que seja o povo palestiniano, mais uma vez e sempre, a pagar a factura com fome, miséria e morte.