Entrevista a Eduardo Lerner, embaixador de Cuba em Portugal
Avante Edição N.º 1892, 04-03-2010
Recentemente indicado como representante diplomático de Cuba em Portugal, Eduardo Lerner concedeu uma entrevista ao Avante! na qual falou dos laços solidários entre os dois povos e da actualidade na ilha socialista e na América Latina.
Avante!: Como têm sido estes primeiros cinco meses em Portugal? Já teve contacto com as associações de solidariedade portuguesas?
Eduardo Lerner: Foi uma surpresa encontrar em Portugal tantos amigos de Cuba. E amigos combativos, que expressam e dinamizam uma solidariedade activa, não daqueles com quem se passa um bocado agradável sem outra consequência.
Depois temos no vosso país um amigo histórico, o Partido Comunista Português. Uma das minhas primeiras iniciativas foi encontrar-me com o Secretário-geral, Jerónimo de Sousa.
Também já tomei contacto com os comités de solidariedade e com a Associação de Amizade Portugal-Cuba, que já tem 36 anos de actividade. Isso tem muito valor, pelo que fazemos tudo para manter e reforçar laços com essa organização e outras semelhantes, até porque continuamos bloqueados pelo imperialismo norte-americano e, nesse contexto, a solidariedade dos povos para com Cuba e o seu povo adquire redobrada centralidade.
Tomemos como exemplo o caso dos Cinco patriotas cubanos injustamente presos nos cárceres norte-americanos. Eles nunca vão ser libertados se não por um movimento internacional de solidariedade e exigência da sua libertação.
Até porque recentemente as instâncias judiciais reviram as condenações recusando-lhes um novo julgamento imparcial…
Exacto. Ainda que tenham diminuído ligeiramente algumas das penas, tal não é suficiente para reparar um processo todo ele injusto, o que, aliás, é amplamente reconhecido, inclusivamente por agentes judiciais dos EUA.
Bastaria uma assinatura do presidente Barack Obama para que fosse feita justiça, mas infelizmente ele não age porque pretende manter o processo político, marcando, assim, a distância com Cuba, mas demonstrando, igualmente, que tem medo de libertar aqueles presos políticos. Tem medo de fazer justiça e os Cinco continuam presos.
O contacto com essas associações e a promoção da solidariedade para com os Cinco é uma prioridade do seu trabalho em Portugal?
Não tanto minha, mas das próprias associações e comités, e, claro, dos Cinco. Em Cuba conhecemos muito bem o imperialismo norte-americano, por isso sabemos da importância dos movimentos de solidariedade. Sabemos também que para acordar esse movimento nos EUA é preciso uma dinamização forte em todo o mundo. Temos essa experiência no caso do Elián González, em que a mobilização internacional teve um papel fundamental no esclarecimento da opinião pública norte-americana e, consequentemente, na sua libertação. Julgamos que também neste caso a solidariedade internacional e a crescente exigência da libertação dos Cinco é o caminho.
Razões não faltam para a defesa desta causa. É sabido e está provado que os Cinco estavam nos EUA para evitar actos de terrorismo contra Cuba por parte de grupos que operam livremente na América do Norte. Está provado que ao condenarem os Cinco patriotas cubanos os EUA têm dois pesos e duas medidas quando se trata de terrorismo.
Fala de dois pesos e duas medidas. Ainda em Dezembro foi preso em Cuba um indivíduo supostamente ligado a grupos promotores do terrorismo em Cuba. Pode-nos contar mais pormenores?
Não tenho muitos elementos. Sei que é um cidadão norte-americano [Alan Gross] e que os indícios apontam para que seja um infiltrado. Levava equipamento sofisticado de comunicações para os chamados grupos de dissidentes, afectos ao terrorismo com sede em Miami e organizados pela secção de interesses dos EUA em Havana. Foi detido quando procurava sair de Cuba. Qualquer país do mundo faria o mesmo.
Os EUA desmentiram uma única vez que fosse seu agente. Perante os vínculos entretanto descobertos, nada mais disseram. Mas também não é o primeiro caso, basta lembrar a acção destes grupos sediados em Miami ao longo dos anos. Apesar de todos os nossos esforços, não conseguimos evitar a morte de milhares de cubanos e pessoas de outras nacionalidades em atentados que deixaram ainda muitos outros compatriotas mutilados.
Potencialidades e perigos
Com o golpe de Estado nas Honduras, as bases norte-americanas na Colômbia e a reactivação da IV Frota, os EUA estão a tentar virar o tabuleiro a seu favor na América Latina?
Nos últimos anos o imperialismo perdeu influência no que considerou sempre o seu «quintal das traseiras». Do ponto de vista de Cuba, não é o mesmo estarmos isolados, praticamente sozinhos, como aconteceu nos anos 90 – em que ainda assim resistimos fruto da unidade do povo e da solidariedade de outros povos para connosco –, ou incluídos numa resistência regional anti-imperialista. Receiam que toda a América Latina se transforme numa nova Cuba, mas não percebem que na raiz dos processos em curso está o cansaço dos povos para com a exploração capitalista e a dominação de séculos.
Há um outro fenómeno que tem peso nesta alteração da correlação de forças. Cuba contribui há décadas para a alfabetização dos povos do subcontinente. Ora um povo culto, instruído, é mais dificilmente subjugado, e, pelo contrário, está até mais preparado para assimilar a realidade política e social à sua volta.
Por outro lado surgiram líderes que ascenderam ao poder através da democracia representativa, a que os imperialismo gosta e defende, causando-lhes embaraço e retirando-lhes manobra para contestarem a sua legitimidade. É o caso de Evo Morales, Rafael Correa, Daniela Ortega ou Hugo Chávez, eleitos por sufrágio universal.
Neste quadro, os EUA não podiam permitir que, nas Honduras, o governo liderado por um homem que nem sequer era de esquerda assumisse posições valentes, de defesa da soberania. Tal como as bases militares na Colômbia ou a reactivação da IV Frota da Armada, as Honduras são parte de uma estratégia de cerco dos povos e das alterações progressistas na América Latina.
Referiu o cerco através das bases, da IV Frota, mas as notícias que nos chegam da América Latina mostram outra dinâmica paralela, a da criminalização e perseguição dos comunistas, por exemplo no Chile ou no Paraguai.
Após as derrotas do socialismo na URSS, creio que os partidos comunistas andaram um pouco confusos. Isto é, ninguém estava preparado para uma coisa daquelas precisamente no momento em que se desenvolvia uma nova vaga de movimentos de soberania nacional, de vitórias sobre o colonialismo e o neocolonialismo.
Passado esse período, estamos numa etapa de recuperação, estamos a sair do retrocesso histórico iniciado com a propaganda do «fim da história» e devemos confiar na experiência adquirida e na preparação política e ideológica dos povos da América Latina, que actualmente não é a mesma que há 50 anos.
Dou-te um exemplo. Quando triunfou a revolução em Cuba, eu e os da minha geração gostávamos do Fidel, do Che, dos revolucionários, apoiávamos as transformações sociais e todo o processo mas não podíamos ouvir a palavra «comunista». Ainda mantínhamos os sedimentos do bombardeamento ideológico constante que, pouco a pouco, foi sendo derrotado. Infelizmente, a derrota do campo socialista deu novo vigor à campanha reaccionária. Só agora os sectores progressistas e revolucionários estão a dar a volta por cima, e a consciência dos povos desperta para a necessidade de alterações profundas no sistema.
Se tivermos como medida o nosso tempo de vida enquanto seres humanos, 50 anos é muito, é quase uma vida inteira. Mas no contexto mais amplo da história da humanidade, meio século é um período curto. Com todos os avanços e recuos, consolidou-se a preparação e a experiência dos povos; apareceram líderes com capacidade e coragem, combateu-se o desprestígio dos partidos comunistas, muito fustigados no subcontinente.
É então um momento de grandes potencialidades na América Latina?
Sim, é um momento bom, embora encerre grandes perigos porque o imperialismo não vai ficar parado, não quer permitir o avanço de novos movimentos revolucionários e procurará dividir para reinar. O que aconteceu nas Honduras é evidente. Um golpe num dos países mais pobres da América Latina, que os EUA, sem mostrarem o rosto, apoiaram para ganhar posição.
Tal como aproveitaram o terremoto no Haiti, onde estacionaram imediatamente milhares de soldados e equipamentos de guerra. Imagina a quantidade de alimentos necessários para sustentar mais de 10 mil soldados. Até me questiono se nos aviões que transportam víveres para os militares resta espaço para a ajuda ao povo haitiano…
Solidariedade de classe
Falou no Haiti, onde Cuba tem tido uma grande presença solidária para com o povo haitiano após a catástrofe natural. Tem alguns dados que nos possa fornecer?
Cuba está a ajudar o povo do Haiti desde o ano de 1998, fruto de um acordo com o presidente de então, René Preval. Naquele momento enviámos mais de 400 profissionais de saúde integrados num programa abrangente para todo o país. Nestes 12 anos melhorou-se muitíssimo a assistência de saúde ao povo haitiano, embora o nível de pobreza extremo impeça maiores avanços. Ainda assim desceram os índices de mortalidade infantil e de mortalidade materna.
Quando ocorreu o terremoto, muitos dos médicos cubanos já se encontravam no Haiti. Os hospitais colapsaram, mas os médicos tiraram tudo o que puderam e montaram unidades de campanha. Ou seja, antes de chegar o auxílio internacional já nós trabalhávamos no terreno. No balanço, posso adiantar que até ao dia de ontem [17 de Fevereiro] tinham sido atendidas mais de 300 mil pessoas e realizadas mais de 4500 cirurgias.
Mas não são apenas os médicos cubanos presentes no Haiti que contam. Desde 1998, muitos jovens haitianos têm sido formados em Cuba sem qualquer custo, apenas com o compromisso de seguirem para o seu país depois de terminarem as respectivas licenciaturas.
Resumindo, aos 400 cubanos já presentes no Haiti, poucos dias depois do sismo juntaram-se mais 200 profissionais e outros 300 haitianos que estavam a terminar a formação em Cuba. Acrescem ainda mais 200 outros jovens de vários países que igualmente estudam no nosso país.
Ou seja, no total, Cuba contribuiu com cerca de 1200 médicos e outros profissionais de saúde, por isso fico um pouco magoado com o tratamento noticioso desta questão. A nossa presença e empenho na ajuda ao Haiti não é divulgada e enquanto muitos países começam a desmobilizar as respectivas equipas, Cuba incrementa a sua presença. Talvez esta seja a hora em que o povo haitiano mais precisa. As consequências do terremoto ainda se fazem sentir.
Resistir e avançar
Referiu que se recordava da revolução. O ano passado falámos dos 50 anos da revolução e das mudanças em Cuba. Continuam, mesmo num contexto de crise?
Apesar da crise internacional não poupar nenhum país, no final de 2008 fizemos um balanço positivo. É certo que fomos obrigados a tomar medidas fortes, decididas, tais como a diminuição das importações. Embora, deixa-me sublinhar, tenhamos chegado aqui com outra capacidade de enfrentar a crise. Se tivesse ocorrido nos anos 90 seria mais complicado.
Naquela altura enfrentávamos uma dupla crise, consequência da perda de 85 por cento do nosso comércio externo após a derrota do campo socialista do Leste da Europa, e, simultaneamente, resultante do bloqueio norte-americano. Passámos o período especial e apostámos na diversificação do nosso aparelho produtivo e nas exportações. Abrimos ao turismo para obter um rápido retorno de divisas.
Nesta última etapa, o investimento concentrou-se em parte no desenvolvimento da agricultura. Em Cuba já realizámos três reformas agrárias. O objectivo é ajustar o sector às novas condições. Antes tínhamos uma massa de trabalhadores rurais muito grande. Hoje a produção não pode assentar nessa força, mas na realidade existente, a de uma força de trabalho muito mais qualificada. Temos conseguido bons resultados, por exemplo na produção de leite, ovos ou de carne de porco, que nos garante maior autonomia alimentar e, ao mesmo tempo, poupa recursos até agora canalizados para a importação de produtos.
Acresce que Cuba não recebe créditos de ninguém. No nosso país isso é raro e, quando acontece, é com taxas de juro especialmente elevadas. Essa é a realidade de Cuba que nunca devemos esquecer.
Cuba não é hoje um país isolado, tem relações comerciais muito diversificada. Isso foi fundamental para ultrapassar as dificuldades?
É verdade, mas não anula o facto do bloqueio continuar a golpear-nos. Os EUA, por exemplo, têm permitido a Cuba importar certos produtos, mas não permitem exportar muitos outros, o que nos cria sérios constrangimentos. Temos boas relações comerciais com a Venezuela, com a Rússia, com a UE, com a China, mas sempre na base do pagamento, como tudo neste sistema.
É certo que é mais fácil organizar uma economia em que se produz apenas para quem tem dinheiro, como nos países capitalistas, mas em Cuba não é assim. O que se produz e ganha é para ser redistribuído pelos seus 11 milhões de habitantes. Raros são os países que o podem afirmar.
Eu diria mais. Quando se fala dos baixos rendimentos per capita em Cuba esquecem sempre que ninguém tem de pagar assistência médica, educação, que todos têm direito a alimentação, habitação, pensão de reforma, etc. Essas garantias nunca são contabilizadas no rendimento da população.
Fala-se também que em Cuba não permitimos a abertura de comércio. O que acontece é que como a nossa capacidade produtiva ainda é insuficiente numa determinada gama de produtos, permitir a abertura de lojas faria disparar as importações, e isso não podemos permitir em nome da defesa das garantias que hoje damos ao povo cubano.
Diálogo sem novidades
Nos últimos dias a comunicação social tem dito que a administração Obama lançou uma «ponte para o diálogo com Cuba». É assim?
Desde a campanha eleitoral que Obama anuncia isso, mas no fundamental ainda nada mudou. E não é por falta de interesse da nossa parte, pois estamos disponíveis para falar sobre todos os aspectos na base do respeito mútuo entre dois estados soberanos.
O que acontece é que retomámos o diálogo em torno dos acordos migratórios, subscritos em 1995 mas suspensos durante a administração Bush. O diálogo é sobretudo sobre questões que afectam os norte-americanos. Nada mais que isso. Estão a dar passos para voltar ao que acontecia há oito anos, mas recusam normalizar totalmente as relações.
Cuba é o único país do mundo que os norte-americanos não podem visitar. Isso em vez de mostrar força confirma uma grande debilidade. Os EUA dizem que a culpa das carências em Cuba é do Socialismo e não do bloqueio. Pois então, façam a prova. Levantem o bloqueio e veremos para onde vai Cuba. Eles sabem que não é como dizem e, por isso, insistem na propaganda