Camaradas
Vir aqui falar deste espantoso conceito da Escola a Tempo Inteiro remete-me para a minha infância. Visto a pele da criança que já fui e entro em pânico. ESCOLA A TEMPO INTEIRO???
E o tempo para brincar? E o tempo para fazer o que eu gosto? E o tempo para estar com a minha família? E o tempo para inventar brincadeiras com os meus amigos sem os adultos meterem o bedelho?
Brincar, participar da vida da família e da comunidade é tão estruturante para o desenvolvimento e aprendizagem como a actividade curricular que a escola dá. Mas ter tempo para as crianças não serve os interesses do capitalismo. A organização do tempo escolar é usada para assegurar que os pais estarão sempre disponíveis para trabalhar, garantindo, também dessa forma, o seu domínio económico assente na exploração.
O programa Escola a tempo Inteiro, surgiu em 2005/2006 com o governo do PS e a Ministra de má memória Lurdes Rodrigues. Começa com o inglês para os alunos dos 3º e 4ºs anos do 1º Ciclo, reforça-se no ano seguinte e generaliza-se a outras áreas de actividade de enriquecimento curricular (AEC). Para que o tempo inteiro seja assegurado de manhã à noite surge a componente de apoio à família (CAF).
Debrucemo-nos primeiro sobre as AEC. Em documentação recente produzida pelo Ministério da educação pode ler-se que “Com a introdução do “Programa Escola a Tempo Inteiro”, em 2005/2006, o ME procurou dar resposta à Lei de Bases do Sistema Educativo. Este prevê “acções orientadas para a formação integral e a realização pessoal dos educandos no sentido da utilização criativa e formativa dos seus tempos livres”, visando nomeadamente “o enriquecimento cultural e cívico, a educação física e desportiva, a educação artística e a inserção dos alunos na comunidade”, valorizando “a participação e o envolvimento das crianças na sua organização, desenvolvimento e avaliação”. Dito assim parece interessante. Dito assim até conseguimos vislumbrar algumas ideias que nos são caras, nomeadamente as que resultam do pensamento de Bento de Jesus Caraça sobre a formação integral do indivíduo e a relevância dos contextos não formais de educação; ou os contributos de Dewey sobre a aprendizagem significante para a criança porque emana dos seus interesses e necessidades. Estimulada a agir como membro da comunidade, no seio da comunidade, saberá o que significam as suas acções em termos sociais pelo efeito que as mesmas produzem nos outros.
No entanto todos sabemos que as AEC não são nada disso. As AEC são de facto mais tempo escolar para as crianças, mais currículo, mais sala de aula e até mais avaliação como o define a portaria que as regulamenta. É o próprio Ministério da Educação que, referindo o resultado de um estudo de avaliação externa dos impactos do Programa de AEC, alerta para a excessiva escolarização destas actividades e cito ” traduz-se em ofertas de carácter segmentado disciplinar e formal, pouco articuladas com o período curricular e com o projecto educativo dos agrupamentos de escolas. Alertam ainda para o carácter substitutivo que algumas AEC têm tido relativamente à componente de expressões artísticas e físico-motoras, parte integrante da matriz curricular do primeiro ciclo do ensino básico. A manter-se esta realidade, poderemos estar a contribuir para uma preocupante distensão do período curricular para cerca de 30 horas semanais. Se a esta componente associarmos o período da Componente de Apoio à Família, poderemos estar perante horários escolares superiores a 35 horas semanais, para crianças de apenas 6 a 10 anos de idade.” Fim de citação.
Neste ponto justifica-se referir um pormenor que será por ventura o por maior que subjaz à ideia da escola a tempo inteiro. O argumento de que havia “necessidade de adaptar os tempos de permanência das crianças nos estabelecimentos de ensino às necessidades das famílias.” A verdadeira necessidade não é originalmente das famílias mas sim do patronato que as emprega. Com a desregulamentação dos horários de trabalho, que culminou em 2013 no aumento do horário de trabalho dos funcionários públicos para as 40h semanais, havia necessidade de acomodar as crianças em algum lugar e a escola estava ali mesmo á mão. Ajustar o horário de trabalho dos pais ao imperativo de poderem acompanhar os seus filhos era, e ainda é para muita gente, impensável. Mas é exactamente aí que as necessidades das famílias se colocam mesmo que algum movimento associativo de pais não o reivindique como devia. Nós comunistas, reivindicamos!
Mais recentemente, quer no Ofício-Circular/DGE/2016/3210, quer na Carta dirigida aos promotores das AEC assinada pelo Director-Geral da Educação, o discurso oficial colocou-se numa perspectiva que nos parece correta. Mas foi só mesmo o discurso, camaradas, porque as práticas mantiveram-se iguais e nalguns casos pioraram com as AEC a invadirem o tempo por excelência da actividade lectiva e curricular, cortando-o ao meio como está a acontecer em muitos agrupamentos do país.
No âmbito das AEC há ainda outros problemas que importa referir. Para as assegurar estão a ser usados professores a quem chamam técnicos, mal pagos e desqualificados na sua função que afinal é docente. Há uma multiplicidade de promotores destas actividades tais como Agrupamentos de escolas, Associações diversas, IPSS, APEE, Câmaras municipais e Juntas de freguesia (muitas das quais contratualizam o serviço a empresas privadas). Tantos promotores… é que há muito dinheiro envolvido. Apesar da frequência das AEC ser facultativa, escolas há que pressionam os encarregados de educação a assinar o compromisso de frequência mesmo que não a queiram. O financiamento é por criança e quantas mais estiverem inscritas mais dinheiro o ME envia. 150 € anuais por aluno dos 1º e 2º anos e 90€ anuais por aluno dos 3º e 4º anos. São milhares de euros! No entanto recordo-vos que para a actividade lectiva do 1º Ciclo do Ensino Básico o Ministério da Educação não dá um cêntimo que seja!
É chegada a altura de aprofundar a nossa reflexão sobre tudo isto e de agir politicamente para lhe por fim. É preciso ganharmos consciência colectiva do problema que temos em mãos. E volto ao início… é preciso ter tempo para ser criança… para brincar sem a constante intervenção e orientação do adulto. É preciso que as crianças estejam na escola 5h por dia. É o tempo necessário para a aprendizagem formal, curricular. E nessas 5 horas deverá ser desenvolvido um currículo abrangente que integre o ensino do Inglês (e talvez outra língua em alternativa) e que valorize de igual forma todas as áreas curriculares, da matemática às artes plásticas, do Português à Música, do Estudo do meio à Expressão físico-motora.
Temos consciência que enquanto não for possível reverter os actuais horários de trabalho e as normas de protecção à maternidade e à paternidade, de forma a permitir o adequado acompanhamento das crianças, devemos aprofundar a nossa reflexão visando elaborar uma proposta que dê resposta à necessidade desse acompanhamento durante os seus tempos livres. Naturalmente devemos conseguir conciliar essa proposta com o objectivo definido por Bento de Jesus Caraça para a cultura, de que a educação é a porta, como nos sugere Bruner. Diz Bento de Jesus Caraça “ A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico, significa numa palavra, a conquista da liberdade”.
Para alcançar uma resposta de qualidade que potencie este quádruplo objectivo muitas podem ser as propostas. Da discussão da fase preparatória deste Encontro uma foi ganhando espaço e algum consenso que é necessário continuar a aperfeiçoar. Propomos que num determinado território (concelhio ou freguesia), conciliando contextos de educação formal, não formal e informal , se identifiquem todos os recursos com potencial cultural ou educativo, tais como colectividades, associações diversas, equipamentos municipais (bibliotecas, museus, equipamentos desportivos), escolas, centros de saúde, grupos de teatro, conservatórios ou escolas de música, filarmónicas, associações de defesa do ambiente, etc… e que se organize uma oferta de actividades o mais abrangente possível desenvolvidas maioritariamente fora do espaço escolar. Para tal deverá ser necessário envolver as autarquias locais, as escolas, o movimento associativo cultural e desportivo, o Movimento associativo de pais e outras entidades que sejam relevantes para a concretização desta resposta. Naturalmente há que pensar no financiamento desta oferta. No entanto, é óbvio que caberá ao Estado uma boa parte do financiamento destas respostas, podendo equacionar-se também a participação das autarquias através da cedência de espaços e recursos humanos.
Uma certeza temos, camaradas.
Esta forma de organizar a escola, misturando tempo lectivo e tempo de resposta social, mantendo as crianças numa sala de aula a tempo inteiro, compromete o seu bem-estar, aumenta a conflitualidade inter-pares e diminui a sua disponibilidade para aprender e valorizar a escola.
E outra certeza temos também.
Os pais destas crianças têm o direito inalienável de acompanhar o desenvolvimento e a educação dos seus filhos, devendo ter sempre que possíveis horários adaptados ao exercício pleno da parentalidade, não podendo ser prejudicados profissionalmente por esse exercício responsável.
Há que dar expressão pública a esta exigência. À escola o que é da escola, à família o que é da família, à comunidade o que é da comunidade. Todos sabemos que para educar uma criança é mesmo preciso toda uma aldeia!
Viva o Encontro Nacional sobre educação!
Viva a Escola Pública!
Viva o PCP!