Exposição
Elementos biográficos de Luís de Camões
- Nasce Luís Vaz de Camões, provavelmente em Lisboa. Adquiriu a sua formação humanista, talvez no Colégio da Ordem de S. Domingos. A lírica aponta uma estada em Coimbra neste período. O desterro para Constância, enraizado na tradição camoniana, pode ter a sua origem em amores nascidos em Coimbra.
- O desterro terá terminado com o alistamento para Ceuta. Daí escreve uma das Cartas que chegaram até nós. Em Ceuta, por golpe de arma de fogo, perdeu o olho direito.
- No regresso da lndia, permanece três anos na ilha de Moçambique.
- Em Lisboa, envolve-se numa briga e é encarcerado no Tronco da cidade.
- Por carta de 7 de Março, D. João Ili perdoa-lhe, atendendo a que "me vai este ano servir na lndia". Embarca nesse mesmo mês. Chega a Goa em princípio de Setembro.
- Parte para a China (data provável).
- Data provável do naufrágio no Camboja. O poeta perde tudo. Salva-se a ele e ao poema.
- Os amigos dão-lhe de comer e de vestir, pagam-lhe uma dívida e a passagem. Embarca para Lisboa.
- Publicação de Os Lusíadas em Lisboa.
- D. Sebastião atribui a Camões uma "tença" (pensão) de 15$000, escassa e paga com atraso.
- Morre a 1O de Junho. Fica sepultado em campa rasa sem letreiro da parte de fora do mosteiro de Santa Ana, em Lisboa.
Camões e a sociedade do seu tempo
Portugal no século xvi, conserva uma estrutura social medieval. As classes dominantes assentavam o seu poder nos privilégios de sangue e no controlo da propriedade fundiária e respectivas rendas.
Camões faz parte da franja mais modesta da fidalguia, que vivia do desempenho de cargos administrativos e militares.
Portugal, com apenas 2 milhões de habitantes, lança-se nos princípios do século anterior na expansão ultramarina, tendo criado uma vasta rede de comércio e um vasto império marítimo.
Boa parte da colossal riqueza gerada pelo comércio ultramarino (submetido ao monopólio da Coroa) esvaía-se em prebendas régias à nobreza e operações mais rendosas eram canalizadas para os mercadores estrangeiros. A par do luxo e ostentação da aristocracia, amplas camadas da população viviam na miséria.
Os réditos não bastam para os encargos com a manutenção dum sistema gigantesco, que se estendia da África ao Extremo Oriente e ao Brasil.
Entretanto, tinha-se estabelecido em Portugal a Inquisição, cuja violência se irá intensificando.
Esta situação vai originar uma crise económico-financeira: os preços sobem; recorre-se cada vez mais a impostos sobre as camadas populares e a onerosos empréstimos internos e externos. A burguesia nacional, outrora influente e importante no desenvolvimento do projecto comercial oceânico, perde poder.
Os Descobrimentos geográficos Observação, experimentação e espírito crítico
A navegação «por mares nunca de antes navegados», que obrigou à observação de novos céus, climas e realidades que não cabiam nas limitadas representações do pensamento escolástico medieval e o contradiziam, conduziu a importantes avanços em áreas como a geografia, a cartografia e a astronomia, e ao desenvolvimento de uma nova mentalidade e espírito crítico, combatendo o obscurantismo. A expansão portuguesa inicia-se, por determinantes razões económicas, em 1415, com a conquista de Ceuta (Marrocos), nó de duas rotas comerciais terrestres - uma que, vinha do Oriente com especiarias e sedas e outra da Africa subsaariana com ouro e escravos. Rotas crescentemente condicionadas, quer nos territórios da rota do Oriente quer pelo próprio impacto da ocupação de Ceuta. A busca de uma rota marítima alternativa de acesso às fontes de mercadorias conduziu as navegações portuguesas cada vez mais para sul, ao longo da costa africana.
A viagem marítima até à lndia completou-se em 1498.
Inaugurou-se uma nova era no comércio mundial, abrindo caminho à crescente afirmação de um novo sistema social - o capitalismo, na sua fase mercantilista em ruptura com o sistema de servidão feudal dominante na Europa.
Num mundo em transição, afirma-se um sistema que - eivado das contradições e violências inerentes a todos os sistemas de exploração - é historicamente mais avançado. O que não pode fazer esquecer a realidade trágica da ampliação da escravatura e o posterior tráfico negreiro transatlântico, as guerras de submissão e de conquista, a emergência do sistema colonial - integrantes do sistema capitalista nascente, que vai impor uma brutal exploração de outros povos, durante séculos, ao mesmo tempo que submetia também o povo português e outros povos europeus ao seu domínio e exploração.
Camões num mundo em mudança
O comércio oceânico português atinge o apogeu na primeira metade do século XVI, mas em breve está confrontado com a concorrência de outros países como a Inglaterra e os Países Baixos, que vão pôr em causa a sua hegemonia marítima.
Lisboa transformou-se numa das mais importantes da Europa. O comércio ultramarino fazia prosperar uma elite mercantil (em boa parte estrangeira). Crescia a presença de escravos negros, que reresentavam cerca de 10% dos seus habitantes. Simultaneamente, o império marítimo exigia o êxodo de uma enorme massa de população (entre 100 000 e 150 000 fora do território).
As novas ideias renascentistas e as novas realidades que as navegações revelavam provocam questionamentos sobre o saber adquirido e a busca de novos caminhos. Em Portugal, as classes dominantes esforçam-se por conservar o poder através de diversos mecanismos de controlo social (impostos, rendas, alcavalas, ordenanças, férreo controlo ideológico), da repressão da Inquisição e da censura.
Porque, enfim, tudo passa; não sabe o tempo ter firmeza em nada; e a nossa vida escassa foge tão apressada
[...]
O bem que aqui se alcança não dura por possante, nem por forte: que a bem-aventurança, durável de outra sorte se há-de alcançar na vida para a morte.
(Ode IX, excertos, Rimas)
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal fícam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
Camões, com a sua vida movimentada, e o seu génio, soube captar as contradições e as mudanças do seu tempo. Exalta a grandeza das conquistas portuguesas, a ousadia dos portugueses, que se lançam mais longe «do que prometia a força humana». Aponta à humanidade a aspiração às mais altas realizações, o que leva Baco a temer que «Venham Deuses a ser, e nós humanos». Mas expressa também uma consciência crítica sobre a condição humana e a fragilidade da vida, espelha as contradições e mudanças sociais, mentais, ideológicas, do seu tempo.
Uma nova visão do mundo o desenvolvimento do conhecimento científico e filosófico uma nova visão do mundo
No caminho difícil da construção e secularização do conhecimento e de afirmação da razão humana, o Renascimento foi tempo de transição de um mundo velho para um mundo novo. Tempo de luta entre o quadro ameaçado das estruturas ideológicas medievais e os sinais vivos do advento da razão moderna.
É este espírito crítico cantado por Camões - «Vejam agora os sábios na escritura/ Que segredos são estes de natura» (Os Lusíadas, V, 22) - que caracteriza a constelação de homens da ciência e da cultura do Renascimento português. Entre outros, Pedro Nunes, Damião de Góis, Duarte Pacheco Pereira, Garcia de Orta, D. João de Castro, João de Barros, expressam essa visão nova, que foi capaz de ver a realidade do mundo, sempre em mudança, para assumir novas qualidades.
Pedro Nunes
O maior matemático da Península Ibérica na sua época. Autor, entre outras obras, de De Crepusculis e do Tratado da Esfera, obras em que defende e fundamenta a necessidade de ligação da teoria à prática, do experimental ao teórico. Defendeu também a importância da utilização da matemática nas ciências positivas.
Duarte Pacheco Pereira
Autor do Esmera/do de Situ Orbis, em que defende o valor da experiência para o conhecimento científico, criticando o pensamento que não se baseava na realidade.
Damião de Góis
Humanista que, tendo vivido na Europa, conviveu com os grandes pensadores da época, entre eles Erasmo, e procurou trazer para Portugal as «ideias novas», o pensamento crítico e o espírito objectivo. Cronista do rei, criticado pelo que escreveu na Crónica de D. Manuel (porque demasiado verdadeira e sem concessões à nobreza e ao rei), foi perseguido pela Inquisição, processado e preso.
João de Barros
Homem de vasta cultura, a sua obra mais importante são as Décadas, onde, além duma descrição precisa da Asia, dos seus produtos, instituições, costumes, mostra profundo conhecimento de geografia e cosmografia.
Garcia de Orta
Autor dos Colóquios dos Simples e Drogas da lndia, obra em forma de diálogo entre duas personagens, uma ainda agarrada aos conceitos antigos do saber dos livros, outra possuidora do conhecimento feito de experiência e de observação. Faz uma descrição rigorosa das plantas e da sua utilização na medicina, criticando ao mesmo tempo os escritores clássicos e aqueles que os repetem sem sentido crítico.
Defende a necessidade de rigor na descrição dos fenómenos da natureza e a importância da experiência como fonte de verdadeiro conhecimento.
D. João de Castro
Autor de vários Roteiros, em que não se limita a descrever as viagens e as terras por onde passa, mas onde revela grandes conhecimentos de cosmografia, exalta o espírito de investigação e a importância da experiência, critica a ciência livresca.
Desenvolvimento literário em Portugal
A literatura participa activamente na transformação da sociedade portuguesa dos séculos XV e XVI: reinventa a sua estética, formas e géneros, e desenvolve a língua portuguesa. Ainda que se mantenha essencialmente num contexto da corte, emerge a literatura de cordel e a popularização de autores como Gil Vicente, com a introdução da tipografia no final do século XV.
Séculos marcados pela expansão marítima- narrada, discutida, celebrada e criticada em obras como Os Lusíadas ou, mais tarde, Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto-, estes são também os séculos em que a observação e a experiência se tornam o ponto de partida da criação. Atitude fundamental para compreender a obra de Luís de Camões, na qual o «saber de experiência feito» assume grande centralidade.
Ao mesmo tempo que Portugal inicia o seu processo de expansão, incentiva-se, no contexto da corte, uma abertura cultural ao Renascimento italiano e, mais tarde, ao Maneirismo, passando a estar presente a reflexão em torno da condição humana e do belo. Intensifica-se assim a cultura literária, nomeadamente através da introdução do soneto e do decassíbalo heróico por Sá de Miranda e da estética petrarquista, e uma abordagem humanista da ciência e das artes.
Camões, como expoente máximo da criação de uma linguagem própria, permeada pelos modelos petrarquistas, pelo Maneirismo, contribui decisivamente para esta direcção, captando e expondo as contradições sociais e enaltecendo a experiência material, ao mesmo tempo que desenvolve a língua, os géneros e a cultura literária.
Os Lusíadas
Os Lusíadas - obra em que a assombrosa cultura humanista do poeta mais se manifesta - são uma epopeia com um carácter profundamente original. Trata-se da primeira grande epopeia escrita por um homem que viveu poucas décadas depois dos acontecimentos que narra - a viagem de Vasco da Gama - e que, «cum saber só d'experiências feito» (Os Lusíadas, IV, 94), conheceu grande parte dos lugares que essa viagem percorre. Por outro lado, sendo o maior poema épico do Maneirismo, Os Lusíadas são também um texto que representa o crepúsculo de um género, a epopeia, desviando-se deliberadamente de algumas das características importantes dos modelos clássicos.
Dando expressão crítica a grandes questões da vida humana, individual e social (sentido patriótico, ímpeto descobridor, ilusão da fama e da glória, tensão entre poderosos e mais fracos, mau e bom governo, guerra e suas trágicas consequências, relação com o outro, amor e desejo...), Os Lusíadas patenteiam uma limpidez sintáctica, de influência latinizante, e um sem número de achados estilísticos que influenciam até hoje muita da grande poesia portuguesa que se lhe seguiu.
A 24 de Setembro de 1571, Luís de Camões obtinha, após um processo de censura e revisão pela Inquisição, o alvará régio de licença para fazer imprimir Os Lusíadas.
Seguiram-se muitas outras edições de Os Lusíadas em língua portuguesa {e em outras línguas), muitas delas objecto de censura pela Inquisição ou pelos poderes dominantes em diversas épocas, com destaque para o regime fascista, que censurou certos trechos para uso nas escolas.
A lírica
Parte fundamental da obra camoniana é a sua lírica: sonetos, canções petrarquistas, éclogas, odes, elegias, composições em oitava rima, uma sextina, outros pequenos poemas líricos incluindo as redondilhas - cabendo nestas últimas alguns dos mais populares, graciosos e, por vezes, até bem-humorados poemas de Camões. Entre outras, as «Trovas» a Bárbara, «Descalça vai para a fonte...», «Verdes são os campos» ou «Perdigão perdeu a pena...», que exploram criativamente um veio lírico tradicionalizante que vem da Idade Média e se plasma no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Sob influência do neoplatonismo, inscrito também ele na tradição petrarquista, mas muitas vezes superando -o, sonetos e canções - que compaginam sinceridade e convenções poéticas - espelham uma funda e genuína reflexão sobre o amor, seus êxtases, escolhos e contradições e sobre a própria condição de uma voz e de um corpo que amam e se debatem com as tensões entre o desejo, a ausência da amada e a relação entre amor terreno e amor divino.
A funda reflexão sobre a existência humana e o desconcerto do mundo, sobre a passagem do tempo e sobre uma vida marcada amiúde pelo infortúnio, consciente dos seus «erros» mas também das injustiças sofridas, atravessa as esplendorosas canções, odes e oitavas do autor de admiráveis redondilhas como «Sôbolos rios...» .
Teatro e cartas
Completam a imensa produção de Luís de Camões os versos e segmentos de prosa das três comédias Filodemo, Enfatriões e EI-Rei Seleuco, bem como um pequeno conjunto de cartas.
Inspiradas em textos anteriores, de autores clássicos, mas marcadas pela liberdade de criação pessoal e pela personalidade literária do seu autor, as três peças de Camões, fazendo uso da redondilha, são devedoras ainda da herança vicentina. E, a par do pendor lírico de várias passagens e da presença do cómico, evidenciam aspectos que são comuns à épica e à lírica, designadamente no plano temático: desconcerto, desencontro amoroso, questões psicológicas ligadas à vivência do amor, entre outros elementos, aos quais importa juntar os habituais achados expressivos que singularizam a escrita camoniana.
As cartas que nos chegaram revelam, sobretudo, a faceta mais humana e boémia, por vezes contraditória, do poeta e das suas relações, facultando assim, enquanto escritos autobiográficos, elementos úteis para a reconstituição de uma vida que continua a fascinar-nos, mas da qual ainda pouco sabemos.
Camões e a Língua Portuguesa
Embora o Português já apresentasse uma base sólida desde o século XIII, foi no século XVI que, sob a influência de figuras entre as quais avulta Camões, se consolidou como uma língua moderna e rica. Camões não apenas utilizou o léxico e as estruturas disponíveis, mas também inovou, criando novas palavras e arranjos sintácticos, tornando a língua apta para expressar as complexidades emocionais e temáticas da época. Os Lusíadas são um testemunho da mestria com que manipulou a língua, incorporando elementos do latim, inspirando-se em autores clássicos e também escritores castelhanos das primeiras gerações renascentistas.
Apesar de a proximidade entre o Português e o Castelhano facilitar o bilinguismo, gerou tensões que levaram autores e gramáticos (por exemplo: João de Barros, Diálogo em louvor da nossa linguagem, 1540; Pêro de Magalhães de Gândavo, Diálogo em defensão da língua portuguesa, 1574) a reivindicarem a singularidade do Português, com a necessidade de afirmar-se como língua de cultura. Camões emerge aqui como uma figura central, pela sua produção literária mas também pela sua capacidade de fazer o Português destacar-se como uma língua de prestígio e expressão literária.
Camões não apenas transformou a língua portuguesa numa grande língua literária como estabeleceu um modelo de criação poética que influenciou gerações posteriores. E um verdadeiro renovador da língua, dotando o Português de uma identidade própria, capaz de dialogar com as complexidades do mundo.
Camões na literatura portuguesa moderna e contemporânea
A obra de Luís de Camões estabeleceu um terreno fértil para a análise crítica e o tratamento poético em muita da criação literária posterior até à contemporaneidade. Transversal a diversas épocas e movimentos estéticos, Camões vai pontuando a literatura portuguesa, da poesia ao ensaísmo, a partir de autores que o repensam na sua própria abordagem dialéctica, como Oscar Lopes ou Manuel Gusmão; de autores que a ele se dirigem directamente, como Bocage ou Jorge de Sena; ou autores que interagem com temáticas camonianas, como Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, José Saramago ou Aquilino Ribeiro, que o biografou. A influência de Camões transcende, em todos estes autores, a simples admiração, sendo antes a referência que anima a invenção estética e formal e a crítica social, evidenciando a complexidade do legado camoniano nos diferentes momentos de reflexão sobre identidade nacional, a condição humana, as contradições do desconcerto do mundo e a resistência do povo.
Quem pode ser no mundo tão quieto
(Manuel Gusmão, Migrações do Fogo, excerto)
Que o não movem nem o clamor do dia
Nem a cólera dos homens desabitados
Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa
Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso
Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram
Quem pode ser no mundo tão quieto
Que o não mova o próprio mundo nele
Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
(Sophia de Mello Breyner, «Camões e a Tença»)
Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce
Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
(Sophia de Mello Breyner, «Camões e a Tença»)
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.
Uma mensagem para o nosso tempo A luta pela liberdade de pensamento
Camões viveu praticamente toda a vida sob a sombra ameaçadora da Inquisição, de que foram vítimas vários intelectuais seus contemporâneos (Damião de Góis, Garcia de Orta...).
Com efeito, a Inquisição (Tribunal do Santo Ofício) foi estabelecida em Portugal em 1536, teria Camões 12 anos, e introduzida em Goa em 1560, poucos anos após a chegada do poeta à lndia.
Os Lusíadas, como todos os livros, tiveram de sujeitar -se à censura prévia. Existem fundadas suspeitas de que o texto finalmente aprovado não corresponde ao manuscrito original. Edições posteriores (a edição «dos Piscas», de 1584, e a de 1591) contêm adulterações, e em 1640 o poema é mesmo proibido pela Inquisição de Coimbra.
A censura coarctava o pensamento e procurava formatar as consciências segundo as normas religioso-ideológicas vigentes.
Em sentido oposto, a obra de Luís de Camões dá expressão aos ventos da mudança que sopram contra a opressão e o obscurantismo.
Por ocasião do Ili Centenário da morte de Camões, em 1880, as forças republicanas, perante o alheamento do rei e do seu governo, impuseram uma genu1na homenagem e uma valorização do poeta, que contou com larga participação popular.
Em condições diferentes, no século XX o fascismo português procurou utilizar a figura e a obra de Camões, e particularmente Os Lusíadas, como meio de controlo ideológico, para propagandear o nacionalismo fascista e a sua concepção colonialista.
- D. João III requer ao Papa o estabelecimento da Inquisição em Portugal
- Estabelecimento da Inquisição
- O Santo Ofício inicia a censura. Primeiros autos-de-fé
- O Tribunal da Inquisição é estabelecido no Porto
- Damião de Góis é denunciado à Inquisição
- Primeiro índice português de livros proibidos
- Os professores do Colégio das Artes, em Coimbra, são vítimas de um processo inquisitorial
- Catarina de Áustria (regente do reino) obtém licença papal para introduzir em Goa o tribunal do Santo Ofício
- Processo de Damião de Góis instaurado pela Inquisição
- Início da dinastia filipina
Exaltação do povo e da pátria
O patriotismo de Camões ecoa em toda a sua obra. Os Lusíadas não são apenas a epopeia da expansão marítima mas também uma reflexão sobre a sociedade do seu tempo, marcada por contradições e injustiças.
Camões celebra a identidade portuguesa, canta a «ditosa pátria minha amada». Porém, não encara a Pátria numa relação de serviço, mas antes de amor. Ao mesmo tempo, ergue-se contra as injustiças da sociedade.
Os Lusíadas são o poema nacional, porque os seus heróis privilegiados são os lusíadas ou portugueses - e não este ou aquele português somente e, muito menos, este ou aquele rei ou chefe - e porque, mais do que qualquer outra obra escrita, marca indelevelmente o curso da Língua Portuguesa.
E, entre tantos exemplos, o que Camões exalta na estrofe 1 O do Canto I de Os Lusíadas:
Vereis amor da Pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quási eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
Ou no episódio em que Vasco da Gama se dirige ao rei de Melinde:
Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Não certamente por acaso, Camões foi ao longo de séculos invocado na defesa da soberania, na defesa duma identidade nacional e consciencialização colectiva, na luta pela emancipação social.
Valores que estiveram presentes na restauração da independência em 1640, na implantação da República em 191 O e, em particular, na Revolução de Abril.
Valores que nortearam igualmente o Partido Comunista Português em mais de cem anos de luta ao serviço dos trabalhadores, do povo e da Pátria.
Como afirmou Alvaro Cunhal: «Camões é a voz do nosso povo, dos lusíadas, a voz da insubmissão ante os privilégios, a voz do progresso social e científico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista».
Apropriação da obra de Camões património comum da lingua portuguesa
Foi tão determinante a influência de Camões na construção, consolidação e projecção da língua portuguesa que, ainda hoje, em certos fragmentos de conversação, se escutam palavras que servem de arrimo na comunicação do dia-a-dia, que por vezes são convertidas em ditos sentenciosos e das quais muita gente se chega a socorrer em interacções argumentativas. Entre tantos outros exemplos, atente-se em expressões como: «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», «outro valor mais alto se alevanta», «vi, claramente visto», «se a tanto me ajudar o engenho e arte», «vinde cá, meu tão certo secretário», «aqueles que por obras valerosas/ se vão da lei da morte libertando», «esta é a ditosa pátria minha amada», «onde a terra se ,acaba e o mar começa», «Ó glória de mandar! O vã cobiça», «a vida pelo mundo em pedaços repartida», «um bicho da terra tão pequeno», «uma austera, apagada e vil tristeza», «erros meus, má fortuna, amor ardente», «amor é um fogo que arde sem se ver» ...
E este sentido de uso da língua, como valor cultural ao serviço do povo, como factor de identidade nacional- que Fernando Pessoa traduzia na expressão «a minha Pátria é a Língua Portuguesa»-, a que Luís de Camões deu um impulso universal, que faz dele a maior figura literária da Língua Portuguesa de todos os tempos e genial património da Humanidade .
A denuncia e o combate à opressão ao poder do dinheiro, às desigualdades e injustiças
Luís de Camões, seja na epopeia, seja na lírica, critica o «desconcerto do mundo» e - malgrado a sua visão aristocrática e as suas contradições ideológicas - não cala a crítica aos poderosos, à vaidade, à ambição desmedida e à decadência moral, ao poder do dinheiro, ao esmagamento dos mais fracos e do povo, e mesmo à crueldade da guerra e ao seu poder destruidor. Denuncia as desigualdades e injustiças e chega a defender que todo o trabalho deve ser pago (inclusive o suor da servil gente).
A mundividência de Camões, inspirada no pensamento humanista do Renascimento, ainda que naturalmente enformada pelos moldes ideológicos da sua época, enfatiza os ideais, a que o próprio Rei deve submeter-se, da responsabilidade cívica e do primado da justiça, de leis que sirvam o bem comum, contrapondo-as ao privilégio que favorece poucos em detrimento de muitos.
Vê que aqueles que devem à pobreza
(Os Lusíadas, Canto IX, 28)
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam sòmente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.
Este [o dinheiro] rende munidas fortalezas;
(Os Lusíadas, Canto VIII, 98)
Faz trédoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
Camões e a juventude de hoje
O contacto da juventude com a obra de Camões tem uma relevância singular na formação integral de cada um, que não se esgota na formação escolar e académica. Contactando, conhecendo, fruindo e valorizando a obra de Camões, a juventude adquire uma melhor compreensão do passado e, ao mesmo tempo, uma fonte de inspiração para as lutas do presente com projecção no futuro.
Tão errado seria olhar para Camões e exigir-lhe concepções, formas de estar, ideias e valores a que só muitos séculos mais tarde a humanidade chegou, como ignorar as condições em que a sua obra foi manipulada pelas classes dominantes para justificar e promover um regime fascista e colonial, responsável pelo sofrimento dos povos através da guerra e da opressão.
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Dest'arte me chegou minha ventura
(excerto da Elegia)
a esta desejada e longa terra,
de todo o pobre honrado sepultura.
Vi quanta vaïdade em nós se encerra,
e dos próprios quão pouca; contra quem
foi logo necessário termos guerra.
Que üa ilha que o rei de Porcá tem,
que o rei da Pimenta lhe tomara,
fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com üa armada grossa, que ajuntara
o vizo-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente d'armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios, os punimos.
Era a ilha com águas alagada,
de modo que se andava em almadias;
enfim, outra Veneza trasladada.
Muito pelo contrário, pois também na sua obra encontramos a evocação da diferença dos povos, a curiosidade pelo outro e a crítica às guerras.
Quinhentos anos volvidos, apesar da evolução da vida e de claras diferenças, a juventude continua a ter direito a ver em Camões o notável poeta que foi, o seu espírito socialmente atento e inconformado com as injustiças e desigualdades.
Comemorar Camões, levar a sua obra aos trabalhadores e ao povo
A mensagem que Luís de Camões nos deixou perdura na actualidade e projecta-se no futuro. Quer na epopeia Os Lusíadas, quer na sua obra lírica, quer mesmo no teatro e nas cartas, há valores que nos inspiram na luta pela liberdade, pela soberania e independência nacionais, contra as injustiças e as desigualdades, pelo acesso do povo à criação e fruição da cultura, na luta pela paz, amizade e cooperação entre os povos, pela afirmação do poder da razão ao serviço do desenvolvimento.
A contracorrente dos governantes da época, por ocasião das comemorações do IV Centenário da morte de Camões (1980), o PCP desenvolveu um programa amplo, de que se salienta diversas iniciativas editoriais, um espectáculo e uma grande exposição, visando levar a largas camadas do povo português um maior conhecimento e fruição da obra de Camões.
De novo, em 2024-2025, volta a ser esse o sentido da acção do PCP na concretização de um vasto programa de comemoração do V Centenário do seu nascimento.
Luís de Camões é figura cimeira do Renascimento português e da literatura universal, e a sua obra é património do nosso povo e da Humanidade. Contribuir para o seu conhecimento e apropriação pelos portugueses, designadamente os trabalhadores, insere-se inteiramente na concepção de democracia cultural que o PCP defende e pela qual luta.
Artista de grande dimensão, não protegido pelo poder, marginalizado pelos poderosos e privilegiados do seu tempo, Camões é um poeta do povo e da pátria portuguesa – pelo modo como reflectiu um acontecimento histórico, os descobrimentos geográficos, e como desenvolveu e apurou as capacidades da língua portuguesa, tendo sido um criador de palavras e arranjos sintácticos.
Nota do PCP