Graus zero
Vítor Dias
Esta algo estranha e singular campanha eleitoral que estamos a
viver ainda só tem uma semana e, entre tanta e tanta matéria
para angustiada reflexão ou veemente indignação,
já nos cruzámos com bastantes graus zero.
De facto, encontrámos o grau zero da decência política
nos tempos de antena do PP, desde logo nas suas falácias
reaccionárias em torno do aborto sempre torpemente construídas
como se uma lei de despenalização obrigasse alguma
mulher a interromper a gravidez ou como se, num país de frequente
aborto clandestino, fosse uma tal lei que impedisse alguém
de nascer e de atingir os cinco anos de idade. Mas também
nas suas miseráveis encenações fílmicas
sobre a insegurança que, agora a cores, dão continuidade
a uma célebre encenação a preto e branco, perpetrada
em campanha anterior, sobre a perseguição a uma criança.
Encontrámos o grau zero da isenção e do respeito
pelos sócios e adeptos do clube a que preside nas declarações
que Manuel Vilarinho fez em iniciativa do PSD e que, tomando-nos
a todos por parvos, pretendeu depois atabalhoadamente negar. Mas
a mais pura das verdades é que declarou que "foi uma
decisão, uma deliberação dos órgãos
sociais do Benfica no sentido de apoiar esta candidatura e apoiar
o PSD". E face a isto, é o cúmulo da desfaçatez
que Durão Barroso, Santana Lopes e Fernando Seara tenham
vindo alegar que outros dirigentes de clubes já fizeram o
mesmo ou que Vilarinho se limitou a exercer os seus direitos de
cidadão, quando o que está em causa é precisamente
a ilegitimidade de os órgãos sociais do Benfica (eleitos
para outras finalidades) terem decidido apelar ao voto num partido.
Sendo evidente que a única forma de atenuar este abuso e
desvio de poder seria os referidos órgãos sociais
declararem publica e solenemente que nem eles nem o Benfica apelam
ao voto seja em quem for.
Encontrámos o grau zero da seriedade política ( e
o elevado grau que se quiser da mais rasteira demagogia) na afirmação
de Durão Barroso de que nem novo aeroporto nem nova ponte
enquanto "as crianças esperarem três anos por
uma operação", seguramente convencido de que,
no tempo dos 10 anos de Governos de Cavaco Silva e no tempo em que
ele próprio era Ministro, não se arrancou com a Ponte
Vasco da Gama e com a EXPO precisamente porque havia listas de espera
no Serviço Nacional de Saúde não menores que
hoje e dramas sociais não menos pungentes que hoje que importava
atender com absoluta prioridade.
Encontrámos o grau zero da vinculação a valores
de esquerda (e o elevado grau que se quiser de mau-gosto e oportunismo
político) no cartaz do PS com a inesquecível mensagem
propositadamente grafada em maiúsculas "VOTA NUM GOVERNO
COM A MÃO DE FERRO". Se o cartaz em causa apenas ilustrasse
como até um famoso publicitário pode ter os seus dias
para esquecer, tudo bem. O pior é que alguém aprovou
a proposta, talvez pensando que era um bom "desarrincanço"
para piscar o olho a eleitorado bastante de direita. Mas o pior
mesmo é que ou muito nos enganamos ou quem cede a tentações
destas também cederá a tentações bem
maiores (sopradas da direita) quando se tratar de definir e executar
uma política governamental.
Por fim, encontrámos o grau zero do respeito pelo pluralismo
político-partidário ( intelectualmente sentido e não
como mera fórmula de circunstância) nos apelos de dirigentes
e candidatos socialistas à concentração de
votos de esquerda no PS . E, falando sobre Coimbra, até Helena
Roseta veio dizer que "votar PCP ou BE seria desperdiçar
votos". Tais apelos e afirmações fazem parte
da previsível espiral declamatória que, até
17 de Março, Ferro Rodrigues e os dirigentes do PS vão
desenvolver em favor do chamado "voto (in)útil"
no PS supostamente "para derrotar a direita". A este respeito,
anotemos o que parece ser uma triste sina de algumas figuras da
"ala esquerda" do PS; nos anos que medeiam entre eleições
fazem figura de cereja de esquerda no bolo da política em
regra de centro-direita do seu partido e nem por isso são
especialmente considerados lá na casa; mas, nas eleições,
são quase sempre eles a alinharem com algum destaque na clássica
manobra de "seduzir" eleitorado de esquerda a favor do
PS.
Pelos vistos, a avaliar por estes apelos e levando-os às
suas ultimas consequências, Ferro Rodrigues e outros oferecem
ao país o seu radioso sonho de uma democracia limitada ao
PS e ao PSD e de um Parlamento onde, à esquerda do hemiciclo,
só se sentariam deputados do PS.
Mas esta táctica e estes apelos parecem sobretudo confirmar
que muitos no PS ou ainda não perceberam que um resultado
globalmente positivo para o país depende da sua capacidade
de não perderem votos para o PSD e não a de os ganharem
à CDU ou então, descrentes da possibilidade de vencerem
o PSD, acham que, em compensação, já não
seria pouca coisa se conseguissem enfraquecer significativamente
o PCP e a CDU.
Se as campanhas eleitorais não fossem em grande medida uma
mera justaposição de discursos, melhor seria que da
banda do PS aproveitassem esta semana que falta até à
votação para explicarem duas coisas muito simples.
A primeira é onde estava a malvadez da direita (que os comunistas
querem ver derrotada!) e onde estavam os valores de esquerda do
PS nas múltiplas situações passadas (que noutra
ocasião já aqui detalhámos) em que o PS fez
vastos e importantes entendimentos ora com o PSD ora com o CDS-PP.
A segunda é se têm alguma coisa a contrapor à
repetida afirmação dos comunistas de que os votos
que a CDU receber e os deputados que a CDU eleger são obviamente
votos que a direita não terá e deputados que a direita
não elegerá e, portanto, são votos e deputados
que contribuem sempre para a derrota da direita, isto é para
que o PSD e o CDS-PP continuem em minoria na AR e que, além
disso, em assinalável vantagem sobre outros, dão incomparáveis
garantias de empenho numa política e em soluções
de esquerda.
|