"O ar do tempo" -
Vítor Dias, Semanário, 28.12.2001
Definitivamente, é o ar do tempo.
O PCP - bem pode ostentar, logo no primeiro e segundo parágrafos
do seu comunicado sobre as autárquicas, um retrato rigoroso
e objectivo das perdas da CDU. Mas se chama a atenção
para que a amarga dimensão das perdas de presidências
de Câmara não corresponde a uma similar ou proporcional
perda de votos ou de influência eleitoral; se não alinha
na tese primária, e mais primária ainda nos domínios
da acção política e da intervenção
eleitoral, de que onde há insucesso ou fracasso é
porque houve necessariamente erro (esclarecemos que semelhante sentença
aplicada a propósito das sucessivas votações
do PCF depois de 1994 também mereceria, por simplismo, a
nossa discordância); se introduz alguns elementos de problematização
justamente convocados pela complexidade do real ,- então
já não se livra de estar a querer esconder a derrota.
Ao mesmo tempo, já a Comissão Permanente do Bloco
de Esquerda, e depois Miguel Portas e Fernando Rosas conseguem inventar
que, à esquerda, "é o Bloco quem resiste melhor"
e Prado Coelho, dez dias depois de publicados os resultados, também
ainda acha, embora com comas no original, que o Bloco "aguenta"
e quase ninguém recorda a estes maquilhadores da realidade
que o Bloco perde um terço da sua votação (o
triplo da perda da CDU) por comparação com as legislativas
e nos mesmos concelhos a que agora concorreu.
Mas o ar do tempo não traz consigo apenas manifestações
de ligeireza e parcialidade pois parece ser também propício
a gritantes rasuras do passado recente e a amnésias tão
avassaladoras quanto conjunturalmente convenientes.
Só isso pode explicar que alguém escreva ("Público"
de 26/12) que deixa aos historiadores a tarefa de (não) perceber
porque é que as "forças situadas à esquerda
no hemiciclo", no último Orçamento, teriam "chegado
ao ponto de se recusarem de facto a negociar a sua aprovação
ou a sua simples viabilização".
Por nós, não percebemos qual é a dificuldade
de compreensão do caso, além do mais estando - como
estão - disponíveis (em www.pcp.pt/actpol/temas/orcam/frset-oe2002.html)
as linhas fundamentais para a elaboração do OE/2002
entregues pelo PCP ao Primeiro-Ministro e a que este não
ligou nenhuma e estando também aí disponíveis
as propostas de alteração na especialidade formuladas
pelo PCP (aumentos dos salários da função pública
e das reformas, dotações para ensino superior público,
política fiscal, etc.), tudo "tentativas de influenciar
o PS" e de "chegar a compromissos" que o PS implacavelmente
rejeitou e chumbou.
Nesta matéria, o único mistério que realmente
sobra é porque é que quem avalizou e nunca contestou
a inalterada orientação do PCP em relação
à discussão e votação de seis Orçamentos
apresentados pelo Governo do PS só ao sétimo acordou
para a crítica a essa orientação, ou seja precisamente
naquele que se inseria já numa conjuntura de acentuado desgaste
e descrédito do PS e que se seguiu ao "plano de contenção
da despesa pública ( leia-se ataque aos salários),
ao antecipado anúncio de recuos na reforma fiscal e a uma
remodelação governamental manifestamente orientada
para a direita.
De igual modo, não é nada curial que, em imaginação
retroactiva, .se sentencie que o PCP votou envergonhadamente a reforma
fiscal e a lei de bases da segurança social quando não
se pode deixar de saber que a abstenção do PCP na
primeira se ficou a dever - e bem - à questão dos
"off-shores" e na segunda se ficou a dever - e bem - à
impossibilidade de o PCP ficar ligado à consagração
do principio do "plafonamento", sendo igualmente certo
que estas duas abstenções não suscitaram à
época nenhuma discordância entre quem então
integrava a direcção do PCP.
É que não fomos nós, e por desamor de certas
fórmulas talvez não pudéssemos ter sido, que
em 15.1.2000, retribuindo na mesma moeda, sujeitávamos o
PS a "exame" para "saber se ele está em condições
de participar com forças políticas da esquerda em
soluções políticas, no governo do país
e das autarquias" e depois concluíamos, com argumentos
devastadores, que "seguramente este PS não é
de confiança. Pela sua própria prática, parece
cortar as escassas possibilidades de diálogo à esquerda."
É que não fomos nós, mas tirando a parte do
parêntesis podíamos ter sido, que escrevemos em 20.1.2000
que "a questão, para o PCP, não é a de
poder seguir um caminho de alternativa de projecto ou então
de ir para o Governo (com este PS ?!!!), e por isso com clareza
deve ser dito que não nos deixaremos aprisionar neste falso
e tendencioso dilema. A questão é sim, e em primeiro
lugar, do conteúdo das políticas e da luta pela sua
concretização (...)".
Sabendo-se que, de Janeiro de 2000 até hoje, o percurso
global do PS e do seu Governo não foi nada de exaltante ou
animador para a esquerda antes pelo contrário, e sabendo-se
que o XVI Congresso do PCP (Dezembro de 2000) e a sua acção
posterior não modificaram os seus anteriores posicionamentos
face ao Governo do PS e face à questão da luta pela
alternativa de esquerda, resta de facto apurar as reais razões
para algumas acentuadas mudanças de opinião que correm
o risco de se tornar em lamentáveis mudanças de alvo
político.
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