"Subitamente no Verão passado" -
Vítor Dias, Semanário, 26.01.2002
Se bem nos lembramos, não foi nem há quinze dias
nem há dois meses que começou uma insinuante e crescente
operação política e ideológica tendente
a, primeiro face ao "reforço da direita" e agora
ao "perigo do regresso da direita ao poder", facilitar
a drenagem de votos de esquerda para o PS.
De facto, recordamo-nos perfeitamente que essa nada inocente operação
começou a ganhar consistência quando, no Verão
do ano passado, apareceu uma primeira sondagem a apresentar o PSD
à frente do PS.
A partir daí, e com esforçada contribuição
de pessoas que deviam travar outras batalhas, foram-se intensificando
elaborações (ou efabulações ?) cujo
saldo líquido foi crescentemente no sentido de uma prévia
rasura das realidades políticas essenciais presentes no último
ano e de um claro perdão e absolvição das responsabilidades
do PS, acompanhados de uma tão injusta quanto serventuária
responsabilização do PCP pelos impasses quanto a uma
alternativa de esquerda.
Tocando o clarim nos alvores dessa operação, Eduardo
Prado Coelho descobria nesse Verão ("Público",12.8.2001)
que "o programa que tem vindo a ser anunciado pela direita
portuguesa não é de centro-direita, mas de direita
pura e dura" e sustentava ser "preciso que a esquerda
portuguesa se disponha de novo a dialogar, numa perspectiva para
já mais distanciada do poder, mais abstracta, cultural e
teórica - mas sem correr o risco de ser encontrada a jogar
xadrez quando os bárbaros entrarem na cidade".
Profundamente tocados com esta metáfora dos "bárbaros",
em texto então publicado, não nos limitámos
a explicar a Prado Coelho e a outros necessitados (hoje ainda mais
necessitados) que era errado supor que só há "diálogo"
quando ele assume aspectos mediáticos ou formais, esquecendo-se
que há também há "diálogo"
e respectivo saldo nas propostas e políticas que uns e outros
apresentam ou executam e nas respostas alheias que obtém.
Perguntámos sobretudo quem eram, onde estavam e o que faziam
os "bárbaros" ( ou seja, a "direita pura e
dura") no tempo dos seis consecutivos de Orçamentos
de Estado negociados e viabilizados à direita; da cavalgada
para a moeda única e o Pacto de Estabilidade, com tudo o
que representavam de nuclear identidade entre PS e PSD em termos
de projecto político; da desastrada sujeição
a referendo da despenalização do aborto, em consequência
da vergonhosa abdicação do PS perante a direita; do
assalto abençoado pelo Governo PS ( e pelo PSD e CDS) ao
património do Estado através das privatizações;
em que Jorge Coelho, semana sim semana não, elogiava o carácter
"responsável" do CDS-PP e de Manuel Monteiro ou
em que, semana sim semana não, se assistia a um episódio
do jogo combinado entre Portas e Guterres para lixar o PSD nisto
ou naquilo; das revisões constitucionais de 1997 e de 2001
( a das buscas nocturnas); da "união sagrada" entre
PS,PSD e CDS de apoio à agressão contra a Jugoslávia;
em que os economistas do PSD e do CDS-PP e veladamente Portas e
Barroso reclamavam as medidas drásticas de "contenção
salarial" que o Governo do PS acabaria por acolher em programa
público e solene e em linha condutora para o Orçamento
de 2002; do apoio do CDS-PP a Lei de Programação Militar,
com contrapartidas cujas notas, perdão, cujos pormenores
ainda um dia se desvendarão.
Perguntar perguntámos, mas ninguém nos respondeu
e também não responderão agora pela simples
e óbvia razão de que estas são recordações
muito embaraçantes para todos os que só descobrem
o perigo da direita em altura de eleições e como forma
de "encher" o PS.
É necessário observar que reduzir as opções
de voto ao PS e ao PSD é uma perversão em termos de
cultura democrática e de soberania popular, pois com isso
se pretende acorrentar o voto dos cidadãos em função
de resultados antecipadamente dados como certos quando a verdade
é que deviam ser as opções livres, diversas
e conscientes dos cidadãos a determinar os resultados finais.
Nesta perversão desempenha um papel fundamental a ideia
errónea de que o único dado relevante das eleições
é saber quem é o partido mais votado. Pensamos que
a vasta "claque" desta ideia não faria mal em reparar
que, numa situação em que o PSD fosse porventura o
mais votado mas existisse uma maioria de deputados do PS e do PCP,
de pouco lhe poderia valer esse trunfo, salvo se o PS a ele vergonhosamente
se rendesse. E, inversamente, numa situação em que
o PS porventura fosse o mais votado mas existisse uma maioria de
deputados do PSD e do CDS-PP, também de pouco lhe poderia
valer esse estatuto, designadamente se a direita passasse a agir
no Parlamento como um bloco político.
Isto ilustra claramente que a questão decisiva, em termos
institucionais, está não na definição
do partido mais votado mas no tipo de maiorias, ao menos numéricas,
que saírem dos resultados eleitorais. E que, logo a seguir,
a questão decisiva, em termos políticos, está
na correlação de forças entre as componentes,
ao menos numéricas, de uma determinada maioria existente.
E é também por isso que, ao contrário de tantos
que falam em nome da "esquerda" mas só têm
o PS na cabeça, sempre que falarmos do perigo do regresso
da direita ao poder logo sempre acrescentaremos de imediato que
a derrota da direita (PSD e CDS) é continuar em minoria na
AR, que deslocações da CDU para o PS não alterariam
em nada o resultado da direita e premiariam inutilmente o PS, que
os votos na CDU e os deputados por si eleitos contribuem sempre
para a necessária derrota da direita e, acrescida vantagem,
pesam sempre, e mais que tudo, para a nova política e a viragem
à esquerda que fazem falta.
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