"Lavar de mãos" -
Jorge Cordeiro, Avante!, 07.02.2002
Não fosse o tema tão pouco católico, que se
poderia dizer a propósito que em matéria de aborto
Guterres e Ferro Rodrigues reproduzem o papel atribuído a
Judas e Pilatos nos textos das Antigas Escrituras. O primeiro na
entrega à direita do que ela reclamava, o segundo lavando
as mãos chegada a hora de decidir.
É particularmente significativo que poucos dias após
a leitura da sentença do chamado processo da Maia ( que envergonhará
para sempre o país mas que continuará a merecer a
indiferença dos guardiões da moral e dos zeladores
dos bons costumes) Ferro Rodrigues tenha vindo entregar-se em praça
pública nas mãos da direita e dos mais retrógrados
e reaccionários sectores da sociedade portuguesa nesta matéria.
E é também particularmente significativo que Ferro
Rodrigues se tenha refugiado numa cínica postura de condicionar
a aprovação de legislação que elimine
um código que ofende e humilha a dignidade das mulheres,
ao acordo para realizar um referendo que sabe dispensável
de um parceiro que à partida ele conhece ser um decidido
opositor de tais alterações. O que torna ainda mais
insuportável esta atitude insincera quando comparada com
a beata rendição de Guterres ás exigências
clericais.
Tem razão Ferro Rodrigues quando declarou em entrevista
a uma rádio que a sua posição "é
clara". Ele e o PS preparam-se assim para lavar as mãos
de um incontornável problema social e de saúde pública.
Pela simples razão de, ao contrário do que dizem os
cartazes aí espalhados, não ter coragem, nem convicção,
nem determinação.
O novo líder do PS sabe bem, porque com Guterres estava
na ocasião, que o referendo mais não foi do que a
entrega à direita de um precioso instrumento destinado a
impedir a publicação de uma lei já aprovada
na Assembleia da República. O novo líder do PS sabe
bem que a aprovação da legislação destinada
à despenalização da interrupção
voluntária da gravidez não carece de decisão
referendária mas tão só de vontade e determinação
política.
A revelação de Ferro Rodrigues fecha portas à
esperança de todos, mulheres e homens, que se não
conformam com condutas e regras mais próprias de tempos de
trevas do que tempos de civilização. Mas tem a virtude
de tornar mais claro que, num quadro em que, em matérias
essenciais, o interlocutor e parceiro privilegiado do PS continua
a ser o PSD, dar mais força à CDU é a opção
que pode, com a luta e a intervenção dos que não
se acomodam, abrir espaço à esperança e conquistar
direitos.
|