"Modas... não inocentes",
Octávio Teixeira, Diário Económico, 19.02.2002
Com a aproximação das eleições parece
ter pegado a moda dos manifestos: sobre as finanças públicas,
a educação, a agricultura, a família, as reivindicações
de classe dos grandes empresários... e o que mais se verá.
Bem pode dizer-se, aliás, que o nosso país é
de modas, designadamente na área económica. Modas
lançadas por alguns experts politicamente não inocentes,
que vão sendo absorvidas e propagandeadas acriticamente,
tidas como "politicamente correctas", por muitos opinion
makers. Há anos atrás, a moda era a de Portugal dever
seguir o modelo dos tigres asiáticos. À medida que
tais tigres foram perdendo o pêlo, essas vozes foram silenciando.
Algumas delas aparecem agora no coro dos que apregoam a bondade
do modelo irlandês, e pressionam para que Portugal o copie.
(Talvez por aí os encargos públicos com a protecção
social serem os mais baixos da UE). A moda do momento é a
da imprescindível, rápida e substancial redução
da despesa pública e a eliminação dos défices
orçamentais. Por vezes sem se explicar o porquê, sempre
sem se clarificar para quê e à custa de quem. (De que
se trata de uma moda, parece mostrá-lo o simples facto de
a despesa pública ter atingido 44,9% do PIB em 1995 - último
ano dos governos PSD - e estar hoje abaixo desse valor, não
havendo memória de, naquela altura, um coro clamar pela redução
despesa).
Porque o denominado "problema das finanças públicas"
ameaça tornar-se a moda no debate eleitoral, justifica-se
que sobre ele nos debrucemos um pouco mais. Em primeiro lugar há
que colocar, em base séria, os valores básicos que
estão em jogo, no nosso país e no contexto comunitário
em que nos inserimos. O quadro que se apresenta serve esse propósito.
(1)
|
Portugal |
|
Zona Euro |
|
|
Média anual
|
Ano
|
Média anual
|
Ano
|
(em % do PIB) |
1995_2000
|
2000
|
1995_2000
|
2000
|
Receita total |
41,8
|
42,7
|
47,9
|
47,9
|
Receita corrente |
39,9
|
41
|
47,3
|
47,4
|
Carga fiscal |
35,6
|
36,4
|
43,4
|
43,7
|
|
|
|
|
|
Despesa total |
44,6
|
44,1
|
50,6
|
48,6
|
Desp. Corrente |
39,1
|
39,3
|
46,6
|
44,7
|
Desp.Cor. primária |
34,8
|
36,2
|
41,7
|
40,7
|
Consumo público |
19,2
|
20,1
|
20,2
|
19,8
|
Saldo global |
-2,8
|
-1,5
|
-2,7
|
-0,7
|
O que dele fundamentalmente resulta é que os níveis
relativos da receita orçamental, da carga fiscal (incluindo
contribuições para a segurança social) e da
despesa pública, estão em Portugal bastante abaixo
da média dos países da zona euro. Incluindo a despesa
corrente primária. Não se compreende, pois, que se
queira erigir o nível da despesa pública em Portugal
como o problema mais grave e nodal dos males da economia nacional.
Não se compreende numa base económica, já que
as razões políticas são claras: assustar o
país com o "monstro", alegado pai de todos os males
de que Portugal e os portugueses padecem, por forma a criar as condições
subjectivas para um forte "apertar de cinto"; apresentar,
sob um manto tecnocrata, a inevitabilidade da redução
da despesa pública para justificar a diminuição
real dos salários na administração pública
e a privatização de serviços e funções
públicas - saúde, educação, segurança
social, ...- e permitir a baixa de impostos para as empresas e para
os rendimentos pessoais mais elevados. [As propostas eleitorais
do PSD são paradigmáticas.]
Dir-se-á que o quadro mostra, também, défices
superiores em Portugal. Porém, o nível aceitável
dos défices não é uma questão técnica,
é uma opção política.
Por um lado, ninguém defende que o défice orçamental
seja uma variável livre, que possa evoluir sem quaisquer
constrangimentos ou preocupações. Mas ninguém
pode defender, com argumentos sustentados na ciência económica,
que o melhor para o presente e o futuro da economia e do País
seja enveredar pelo dogma do défice zero. Compreender-se-ia
a "obrigatoriedade" de défice corrente nulo, mais
que não fosse por uma questão de justiça na
distribuição intergeracional dos encargos públicos.
Mas não o défice global nulo.
Por outro lado, a redução do défice pode fazer-se
através da contracção da despesa, ou pela via
do aumento da receita. No caso concreto da situação
portuguesa, com o seu nível de carências e atrasos
em múltiplas áreas, o adequado é caminhar,
essencialmente, pela via da receita. Não com um aumento dos
impostos, mas pelo alargamento da base de tributação,
onde ainda resta muita margem de manobra. [Só a inserção
no âmbito da tributação de parte dos cerca de
20% da economia paralela que hoje lhe foge, bem como a redução
da imoral panóplia de beneficios fiscais, seriam suficientes
para eliminar o actual nível dos défices]. Sem ignorar
que também na área das despesas há bastante
para fazer: eliminando desperdícios e o clientelismo, impondo
rigor e disciplina nos gastos, aumentando a eficiência dos
serviços, alterando prioridades na afectação
dos recursos, exigindo transparência nos subsídios
e comparticipações, concretizando reformas de fundo
(saúde, educação, justiça, administração
fiscal,...) que a cobardia política e os calculismos eleitoralistas
têm adiado.
O que é politicamente inaceitável e económica
e socialmente contraproducente é a proposta, na moda, de
redução brutal da despesa pública e da anulação
do défice em dois anos. Por razões estruturais, a
que acrescem critérios conjunturais. Num contexto em que
a principal ameaça para a economia é a recessão
ou, na melhor das hipóteses, alguns anos de muito baixas
taxas de crescimento, a imposição de fortes restrições
orçamentais seria um erro que sairia muito caro aos portugueses.
Definitivamente, o problema das finanças públicas
não é o problema mais grave e prioritário da
economia e da sociedade portuguesas. Tentar inculcar na opinião
pública essa ideia assemelha-se à tentativa de vender
gato por lebre. Seria bem mais útil para o futuro do País,
a pública tomada de consciência de que, a final, a
marcha forçada para a convergência nominal e o gigantesco
programa de privatizações levado a cabo nos últimos
15 anos não garantiram, como prometiam os advogados e executores
dessa estratégia, um processo de crescimento sustentado que
induzisse a convergência real com a média da União
Europeia. E essa convergência é a essencial e prioritária.
Esse, sim, é o grande e urgente problema.
NOTA:
1 -A fonte são publicações
do Eurostat: European Economy, n.º 72 e Economic Trends, de
Novembro de 2001. Os últimos valores referenciados são
os de 2000, por ser o último ano para que existem valores
definitivos ou quase definitivos. Os valores de 2001 enquadrar-se-ão
em idênticos parâmetros.
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