"Figuras tristes" -
Vítor Dias, Semanário, 08.02.2002
Se a história por vezes não fosse distraída,
por certo havia de registar, entre o espanto e a vergonha, o sobressalto
criado por alguns jornalistas a propósito da (repetida) participação
numa lista da CDU, como independente proposto pelo PCP, de Alfredo
Maia, que é Presidente do Sindicato dos Jornalistas.
Curiosamente, foi na mesma altura em que na imprensa se evocava
respeitosamente a figura do falecido Raúl Rego, que pelo
menos foi tão jornalista quanto político, que irrompeu
o coro dos novos sacerdotes de um fingido purismo da profissão,
todos apostados em fustigar um respeitado profissional por ter cometido
a pavorosa heresia e perpetrado o inacreditável atrevimento
de exercer os direitos que o 25 de Abril, a democracia e a Constituição
em boa hora garantiram a todos os cidadãos.
Pelo meio de tanta sentença arrogante e de tanta gelatina
cívica, não se chegou a perceber se o problema estava
em o candidato Alfredo Maia ser jornalista (mas então a Maria
Elisa e o Vicente Jorge Silva são o quê ?) ou em ser
Presidente do Sindicato (mas quantas vezes é que Torres Couto
ou João Proença se candidataram pelo PS?).
Um inesquecível editorial no "Público"
proclamou mesmo que "não, os jornalistas não
devem fazer política", mas o que verdadeiramente queria
dizer é que a não devem fazer de forma assumida, transparente
e sujeita ao escrutínio público e só a podem
fazer, como todos os dias se vê nas prosas de muitos, através
de técnicas de contrabando, misturando comentários
com notícias, fazendo de eventos reais mero pretexto para
exercícios de acrimónia para uns e simpatia para outros,
ajustando contas por ordem de "fontes", etc. e tal.
O mesmo editorial deu-se mesmo ao desplante de invocar com orgulho
as regras e "normas de conduta" em vigor no "Público".
Por nós, conhecendo alguma coisa da vida, nunca diremos nada
contra quem as tenha aceite e a elas se sujeite. Mas isso não
nos impede de dizer que o "Público" não
se devia orgulhar de ser seguramente a única empresa do país
onde, por escrito, o exercício por uma parte dos seus trabalhadores
(os jornalistas) de inalienáveis direitos cívicos
e políticos está condicionado a consulta à
direcção.
Talvez porque esse seja um mal deste tempo em que a coerência
e a verticalidade são inimigos a abater, não menos
cinismo e hipocrisia se pode encontrar em vozes que proclamam que
"da nossa parte, não colocaremos nenhuma dificuldade
à campanha eleitoral do PCP" e depois, dia sim dia não,
insistem em deturpações e linhas de ataque que só
têm em vista criar dificuldades ao PCP e que, como era de
esperar, são agora objecto de gulosa apropriação
( embora os originários direitos de autor pertençam
de facto ao PS), aproveitamento e desenvolvimento por Ferro Rodrigues
e outros dirigentes do PS.
Na cegueira sectária que leva a que, à beira de eleições,
em numerosas declarações e textos quase não
haja nem uma crítica ao PSD nem uma crítica ao PS
mas onde abundam as críticas ao PCP, parece valer tudo, desde
a maldade de, para tudo ficar mais negro, transformar uma real perda
da CDU nas autárquicas de 12,4% da sua anterior votação
na perda de "um quinto do seu eleitorado" até à
mais recente sentença de que o PCP podia, por artes mágicas,
ter evitado eleições antecipadas.
Com base para este juízo, invoca-se a referência do
PR a que chegou a pensar noutras soluções mas que
"todos os partidos políticos queriam eleições",
partindo-se depois para a ideia de que é incompreensível
que, depois de um mau resultado nas autárquicas, "a
direcção do PCP se tenha manifestado a favor de uma
dissolução" da AR. Definitivamente, estamos no
terreno da genialidade política. Desde logo, fingindo-se
não perceber que, nesta matéria, independentemente
do que o PCP pudesse pensar ou querer, a vontade ou opinião
de cada partido não valia o mesmo. Por outras palavras, a
vontade decisiva pertencia ao PS e a sua vontade, desde a noite
de 16 de Dezembro, era claramente a de convocação
de eleições. A este respeito, podíamos citar
Medeiros Ferreira que, em artigo no "DN", explicou que,
quanto à atitude de Guterres, "não se pode falar
propriamente de um pedido de demissão, mas antes de um acto
desencadeador do fim da legislatura". Mas nem é preciso,
porque foi o próprio autor daquelas críticas ao PCP
que, apenas 10 dias depois das autárquicas, escreveu que
"a demissão de António Guterres e a consequente
queda do Governo" tinham "conduzido (à praticamente
decidida) realização antecipada de eleições".
E, com tudo isto à vista, sugerir que o PCP, embora sabendo
de ciência certa que se ia para eleições, devia
ter implorado publicamente a um PS sem líder que ficasse
no Governo e oferecer-lhe um apoio incondicional é mesmo
uma ideia que só pode ser perfilhada ou por quem deseje ver
o PCP a fazer figuras tristes ou por quem tenha um projecto de humilhante
subordinação do PCP ao PS.
Finalmente, por falar em figuras tristes, registe-se que, aumentando
o seu historial de intermitente insolência e continuado preconceito,
Eduardo Prado Coelho sentenciou há dias que "os únicos
verdadeiros intelectuais que ainda subsistem na ortodoxia do Partido
são seres dramaticamente esquizofrénicos, que escrevem
o que admiravelmente escrevem, para não terem de pensar no
que políticamente (ainda) defendem". Simplesmente repugnante:
EPC não critica intelectuais comunistas por escreverem pouco
sobre o PCP (mas onde, perguntamos nós, se o leque de colunistas
alapados no "media" se renova tão pouco ?), antes
dá o imperdoável passo de tratar como resultado de
esquizofrenia aquilo ( "o que admiravelmente escrevem")
que só podia ser tratado como resultado do talento e da autonomia
da criação artística. E, mais uma vez, assim
se vê que uns têm a fama dos piores "ismos"
e outros tem a prática e o proveito. É que nós
jamais escreveríamos que EPC e V. Graça Moura são
"seres esquizofrénicos" que "escrevem o que
admiravelmente escrevem" só para não escreverem
sobre o que não lhes convém, respectivamente, quanto
ao PS ( ou BE?) e ao PSD.
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