Manifesto
15 de Março
Por José Saramago
Eles pensavam que nos havíamos cansado de protestar,
que os tínhamos deixado à solta para prosseguirem
na sua alucinada corrida para a guerra. Equivocaram-se. Nós,
estes que hoje nos estamos manifestando, aqui e em todo o
mundo, somos como aquela pequena mosca que volta obstinadamente
uma vez e outra a cravar o aguilhão nas partes sensíveis
da besta. Somos, em palavras populares, claras e precisas
para que melhor se entendam, a mosca cojonera do poder.
Eles querem a guerra, mas nós não os vamos
deixar em paz. Ao nosso compromisso, ponderado nas consciências
e proclamado nas ruas, não lhe farão perder
vigência e autoridade (também nós temos
autoridade...) nem a primeira bomba nem a última que
venham a cair sobre Iraque.
Que não continuem os senhores e as senhoras do poder
a dizer que nos manifestamos para salvar a vida e o regime
de Sadam Hussein. Mentem com todos os dentes que têm
na boca. Manifestamo-nos, isso sim, pelo direito e pela justiça.
Manifestamo-nos contra a lei da selva que os EUA e os seus
acólitos antigos e modernos pretendem impor ao mundo.
Manifestamo-nos pela vontade de paz da gente honesta e contra
os caprichos belicistas de políticos a quem sobeja
a ambição e a quem vai faltando a inteligência
e a sensibilidade. Manifestamo-nos contra o concubinato dos
Estados com os superpoderes económicos de todo o tipo
que governam o mundo. A terra pertence aos povos que a habitam,
não àqueles que, servindo-se de uma representação
democrática descaradamente pervertida, os exploram,
manipulam e enganam. Manifestamo-nos para salvar a democracia
em perigo.
Até agora a humanidade foi sempre educada para a guerra,
nunca para a paz. Constantemente nos aturdem os ouvidos com
a afirmação de que se queremos a paz amanhã
não teremos mais remédio que fazer a guerra
hoje. Não somos ingénuos ao ponto de acreditarmos
numa paz eterna e universal, mas se os seres humanos foram
capazes de criar, ao longo da História, belezas e maravilhas
que a todos nos dignificam e engrandecem, então é
tempo de deitar mãos à mais maravilhosa e formosa
de todas as tarefas: a incessante construção
da paz. Que essa paz, porém, seja a paz da dignidade
e do respeito humano, não a paz de uma submissão
e de uma humilhação quantas vezes disfarçadas
sob a máscara de uma falsa amizade protectora. Já
é hora de que as razões da força deixem
de prevalecer sobre a força da razão. Já
é hora de que o espírito positivo da humanidade
se dedique, de uma vez, a sanar as inúmeras misérias
do mundo. Essa é a sua vocação e a sua
promessa, não a de pactuar com supostos ou autênticos
«eixos do mal»...
(Amenamente estavam Bush, Blair e Aznar conversando sobre
o divino e o desumano, seguros e tranquilos no seu papel de
poderosos feiticeiros, peritos em truques de batota e conhecedores
eméritos de todos os enredos da propaganda mentirosa
e da falsidade sistemática, quando no gabinete oval
onde se encontravam reunidos irrompeu a terrível notícia
de que os Estados Unidos de América do Norte tinham
deixado de ser a única grande potência mundial.
Antes de que Bush pudesse desferir o primeiro soco na mesa,
José María Aznar apressou-se a declarar que
essa nova grande potência não era Espanha. «Juro
que não é, George», disse. «O meu
Reino Unido também não», acrescentou Blair
rapidamente para cortar a nascente desconfiança de
Bush. «Se não és tu e tu não és,
quem é então?», perguntou Bush. Foi Colin
Powell, mal acreditando no que a sua própria boca pronunciava,
quem disse: «A opinião pública, senhor
Presidente.»)
Todos tereis percebido que esta historieta é uma simples
invenção minha. Peço-vos, portanto, que
não lhe deis demasiada importância. Tem-na, porém,
e muita, o que já se tornou numa evidência para
todos, a mais exaltante e feliz evidência destes conturbados
tempos: os feiticeiros Bush, Blair e Aznar, sem o quererem,
sem que o tivessem proposto, nada mais que pelas suas malas
artes e ainda piores intenções, fizeram surgir,
espontâneo e irresistível, um gigantesco, um
imenso movimento de opinião pública. Um novo
grito de «Não passarão», com as
palavras «Não à guerra», percorre
o mundo.
Não há exagero em dizer que a opinião
pública mundial contra a guerra se converteu numa potência
com a qual o poder vai ter de contar. Enfrentamo-nos deliberadamente
aos que querem a guerra, dizemos-lhes «NÃO»,
e se, ainda assim, persistirem no sua demencial acção
e desencadearem uma vez mais os cavalos do apocalipse, então,
desde aqui os avisamos de que esta manifestação
não será a última, de que estes protestos
continuarão durante todo o tempo que a guerra durar,
e mesmo mais além, porque a partir de hoje não
se tratará simplesmente de dizer «Não
à guerra», mas sim de lutar todos os dias e em
todas as instâncias para que a paz seja uma realidade,
para que a paz deixe de ser manipulada como um elemento de
chantagem emocional e sentimental com que se pretende justificar
guerras. Sem paz, sem uma paz autêntica, justa e respeitosa,
não haverá direitos humanos. E sem direitos
humanos – todos eles, um por um – a democracia
nunca será mais que um sarcasmo, uma ofensa à
razão, uma despudorada mentira. Nós, que aqui
estamos, somos uma parte da nova potência mundial. Assumimos
as nossas responsabilidades. Vamos lutar com o cérebro
e o coração, com a vontade e o sonho. Sabemos
que os seres humanos são capazes do melhor e do pior.
Eles (não é necessário dizer agora os
seus nomes) escolheram o pior. Nós escolhemos o melhor.
(Intervenção de José Saramago
na manifestação em Madrid, de 16 de Março,
que reuniu 400 mil pessoas)
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