"A guerra de todos os dias"
Bernardino Soares na "Capital"
2 de Abril de 2003
A guerra continua, como seu cortejo de horrores, atrocidades e destruição que não deixa ninguém indiferente. Entretanto vão caindo as máscaras. Com os bombardeamentos de mercados e de bairros residenciais caiu a máscara da guerra só com alvos militares; com a notícia dos interesses de grandes empresas americanas, com ligações directas à administração Bush, nos negócios do petróleo e da reconstrução, caiu a máscara das preocupações com o estabelecimento da democracia no Iraque; com a reacção do povo iraquiano caiu a máscara da guerra fulminante e do previsto acolhimento dos invasores como libertadores, já que mesmo povo que sofre com a ditadura de Saddam é o que não quer o seu país colonizado pela potência norte-americana.
Ao mesmo tempo alarga-se o leque dos que se opõem a esta guerra, sejam milhões de cidadãos anónimos em muitos países do mundo, sejam as mais diversas personalidades políticas científicas ou culturais que, usando dos mais diversos meios, insistem em manifestar a sua vontade de paz.
Entretanto muitas outras coisas vão avançando, a coberto do manto omnipresente da guerra nos noticiários e na imprensa. A guerra não abrandou a política económica recessiva do governo, nem suspendeu a laboriosa aprovação na especialidade do Pacote Laboral, nem demoveu governo e patrões de diminuir os salários reais, nem impediu o aumento do desemprego que afecta já quase meio milhão de portugueses.
Ontem mesmo se fez publicar no Diário da República mais uma peça na privatização da saúde em Portugal. Desta vez o alvo são os centros de saúde. Trata-se de impor constrangimentos financeiros ao desenvolvimento da sua actividade face às necessidades das populações, mas também de abrir ao sector privado as partes potencialmente lucrativas desta área, sempre claro, com o financiamento do Estado.
Claro que vem tudo embrulhado no já usual discurso do combate à centralização e burocracia e da melhoria da gestão, que não disfarça os reais objectivos a atingir. Vejamos apenas dois exemplos.
Passa a ser possível contratar gestores fora do Serviço Nacional de Saúde. Já vimos o que isso significou nos Hospitais transformados em sociedades anónimas: a contratação de muitas dezenas de gestores externos, a maior parte indicados pelos aparelhos partidários do PSD e do CDS, e sem qualquer experiência na matéria. E se no caso dos hospitais se verificou que, em regra, os novos gestores ganham bastante mais do que os anteriores (até o dobro), nos centros de saúde dá-se o caso de, enquanto os actuais membros das direcções daquelas unidades nem sequer recebem mais por o serem, os novos nomeados beneficiarem de remuneração própria, o que significará um acréscimo na despesa pública de milhões de contos.
O mesmo decreto-lei, enquanto aponta para a manutenção do rácio de 1500 utentes por médico nos centros de saúde que se mantenham na gestão pública, admite que esse rácio seja entre 1500 e 2500 utentes por médico nos contratos de prestação de serviços por privados. A esta diferença não será certamente alheio o facto de o primeiro critério de financiamento ser o número de utentes.
Fosse este “Diário” um diário da imprensa escrita e pelo menos poderíamos ainda esperar que a notícia de ontem, 1 de Abril, fosse mentira. Assim, só podemos contar com a luta política e social para derrotar esta privatização que se anuncia.
É que, tal como a guerra, a luta continua!