Carta de Mia
Couto ao Presidente Bush
in "Savana" 21 Março 2003
OPINIAO
A ASA DA LETRA
Por Mia Couto
Carta ao Presidente Bush
Senhor Presidente:
Sou um escritor de uma nação pobre, um país
que já esteve na vossa lista negra. Milhões
de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos
feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça
poderíamos constituir ? A nossa arma de destruição
massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome
e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava
a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações
beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho
- a África do Sul do "apartheid" - violava
de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas
fomos vítimas da agressão desse regime. Mas
o regime do "apartheid" mereceu da vossa parte uma
atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo".
O ANC esteve também na lista negra como uma "organização
terrorista!". Estranho critério que levaria a
que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden
fossem chamados de "freedom fighters" por estrategas
norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um
sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América
era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei
que eu era não um homem mas um país. Sim, um
país que não conseguia dormir. Porque vivia
sobressaltado por terríveis factos. E esse temor fez
com que proclamasse uma exigência. Uma exigência
que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que
os Estados Unidos da América procedessem à eliminação
do seu armamento de destruição massiva. Por
razão desses terríveis perigos eu exigia mais:
que inspectores das Nações Unidas fossem enviados
para o vosso país. Que terríveis perigos me
alertavam? Que receios o vosso país me inspirava? Não
eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que alimentavam
a minha desconfiança. A lista é tão grande
que escolherei apenas alguns:
- Os Estados Unidos foram a única nação
do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras
nações;
- O seu país foi a única nação
a ser condenada por "uso ilegítimo da força"
pelo Tribunal Internacional de Justiça;
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas
islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin
Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto
praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo
o gaseamento dos curdos em 1998);
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano
Patrice Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de
preso e torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi
dissolvido em ácido clorídrico;
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos
agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais
à espionagem americana: o quartel-general da CIA no
Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal
deste zairense não mereceu nenhum reparo dos EUA até
que ele deixou de ser conveniente, em 1992;
- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios
mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas,
a resposta da Administração Clinton foi "o
assunto é da responsabilidade do governo indonésio
e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade";
- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant,
um dos líderes mais sanguinários do Haiti, cujas
forças para-militares massacraram milhares de inocentes.
Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades
solicitaram a sua extradição. O governo americano
recusou o pedido.
- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA
bombardeou no Sudão uma fábrica de medicamentos,
designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava se de uma
retaliação dos atentados bombistas de Nairobi
e Dar-es-Saalam.
- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único
país (junto com Israel) a votar contra uma moção
de condenação ao terrorismo internacional. Mesmo
assim, a moção foi aprovada pelo voto de cento
e cinquenta e três países.
- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra
o Irão na sequência do qual milhares de comunistas
do Tudeh foram massacrados.A lista de golpes preparados pela
CIA é bem longa.
- Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA bombardearam: a
China (1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala
(1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala
(1960), o Congo (1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973),
o Vietname (1961- 1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala
(1967-1973), Granada (1983), Líbano (1983- 1984), a
Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua (1980),
o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001),
o Kuwait (1991), a Somália (1993), a Bósnia
(1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão (1998),
a Jugoslávia (1999)
- Acções de terrorismo biológico e químico
foram postas em prática pelos EUA: o agente laranja
e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra
Cuba que durante anos devastou a produção suína
naquele país.
- O Wall Street Journal publicou um relatório que
anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram
deformadas em consequência da guerra química
das forças norte- americanas.
Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade.
A guerra que o Senhor Presidente teimou em iniciar poderá
libertar-nos de um ditador.
Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades
nas nossas já precárias economias e teremos
menos esperança num futuro governado pela razão
e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora
das Nações Unidas e das convenções
do direito internacional. Estaremos, enfim, mais sós
e mais desamparados.
Senhor Presidente:
O Iraque não é Saddam. São 22 milhões
de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham
como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com
os males do regime de Saddam Hussein que são reais.
Mas esquece-se os horrores da primeira guerra do Golfo em
que perderam a vida mais de 150 000 homens. O que está
destruindo massivamente os iraquianos não são
as armas de Saddam. São as sanções que
conduziram a uma situação humanitária
tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações
Unidas (Dennis Halliday e Hans Von Sponeck) pediram a demissão
em protesto contra essas mesmas sanções.
Explicando a razão da sua renúncia, Halliday
escreveu: "Estamos destruindo toda uma sociedade. É
tão simples e terrível como isso. E isso é
ilegal e imoral".
Esse sistema de sanções já levou à
morte meio milhão de crianças iraquianas. Mas
a guerra contra o Iraque não está para começar.
Já começou há muito tempo. Nas zonas
de restrição aérea a Norte e Sul do Iraque
acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12
anos. Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999.
O bombardeamento incluiu o uso massivo de urânio empobrecido
(300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo).
Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros
da lógica da guerra e da arrogância. Não
quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo
fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos,
precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão
seguros quando se tiver que gastar fortunas em armas.
Como o seu país, que despende 270 000 000 000 000
dólares (duzentos e setenta biliões de dólares)
por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe
o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável
de milhões de seres.
O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu-lhe nofinal
do ano passado uma carta intitulada "Porque é
que o mundo odeia os EUA ?" O bispo da Igreja Católica
da Florida é um ex-combatente na guerra do Vietname.
Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor
reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos
a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo,
Sr. Presidente ! Somos alvos dos terroristas porque, na maior
parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão
e a exploração humana. Somos alvos dos terroristas
porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo
fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso
governo depuseram líderes popularmente eleitos substituindo-os
por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu
próprio povo às corporações norte-americanas
multinacionais?"
E o bispo conclui: "O povo do Canadá desfruta
de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como
o povo da Noruega e da Suécia. Alguma vez o senhor
ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas
ou suecas? Nós somos odiados não porque praticamos
a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados
porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países
do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados
pelas nossas multinacionais."
Senhor Presidente:
Sua Excelência parece não necessitar que uma
instituição internacional legitime o seu direito
de intervenção militar. Ao menos que possamos
nós encontrar moral e verdade na sua argumentação.
Eu e mais milhões de cidadãos não ficámos
convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós
preferíamos vê-lo assinar a Convenção
de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos
tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional
contra o Racismo.
Não se preocupe, senhor Presidente. A nós,
nações pequenas deste mundo, não nos
passa pela cabeça exigir a vossa demissão por
causa desse apoio que sucessivos ditadores. A maior ameaça
que pesa sobre a América não são armamentos
de outros. É o universo de mentira que se criou em
redor dos vossos cidadãos. O perigo não é
o regime de Saddam, nem nenhum outro regime. Mas o sentimento
de superioridade que parece animar o seu governo. O seu inimigo
principal não está fora. Está dentro
dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios
americanos.
Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein.
E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem
argumentação para consumo de diminuídos
mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós,
os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção
massiva: a capacidade de pensar.
|