"No olhar de uma criança"
António Abreu na "Capital"
14 de Abril de 2003

 

Quase todos os dias. Há cerca de um mês. São aquelas crianças, que nos entram em casa, com os olhares de espanto e de interrogação.

Em camas de hospitais de várias cidades do Iraque. E nós em casa, no fim de um dia de trabalho, a tentar descansar no convívio com a família.

Os seus olhares eram de medo, de interrogação, de espanto, de ansiedade, de procura, de prece, de dor. Os seus corpos cobertos de sangue, amputados , tremendo, procuravam o afago que se pudesse esconder no fundo negro das câmaras que lhes captavam a imagem.

E nós sentimos o peito e a garganta apertados, sentimos a indignação a dizer-nos: não chores ou chora mas não pares de lutar, não te conformes. O que não pode ser exige de nós muita força. Lutamos muito, lutamos mais e não conseguimos, saímos milhões à rua, mas os mísseis e as bombas voaram mais alto .

Sabes tu, criança, nascida nesse que foi um dos berços da nossa civilização, que tivemos entre nós um poeta que nos falou dos olhares de crianças, onde os pulos e avanços deste mundo vinham dos sonhos dos homens, e nos teus olhares eram como bolas coloridas?

Olhando agora para ti, deitada nessa cama de hospital, onde não sabemos se sobreviveste, penso no que nós, homens e mulheres deste país, devemos fazer com o poema que deu a bonita canção que cantamos tantas vezes para adormecer os nossos filhos. Que dizem vocês que passaram os olhos nestas linhas? Vamos dizer ao poeta, que era também um grande Homem de ciência, que afinal se enganou? Que os teus sonhos e os dos teus pais, que também perdeste, afinal não comandam a nossa vida?

Não!

Aqui te juramos que não nos cansaremos de lutar enquanto houver olhares de crianças como os teus.

Aqui te juramos que não nos enganaram com as armas de destruição massiva que existiriam na tua terra como pretexto para o teu martírio.

Aqui te juramos que aqueles que se desculparam com a necessidade de te libertarem duma ditadura, que eles próprios alimentaram, serão julgados, e certamente condenados, pelo menos na opinião daqueles que ousaram libertar as consciências do conformismo ou do medo.

Aqui te juramos que diremos a quantas crianças pudermos chegar que o teu sofrimento se deveu ao poder dos que querem o petróleo da tua terra e os negócios da reconstrução das tuas cidades, esmagadas pelos seus arsenais.

Aqui te juramos que o dólar não pode mandar eternamente no petróleo para que crianças, como tu, sejam destroçadas e morram de fome e para que o senhor Bush , imponha ao mundo a recessão e o pagamento dos deficites colossais do seu império, para os States continuarem a ser os donos de um mundo para cuja riqueza deixaram de contribuir.

Aqui te juramos que o novo fascismo emergente nas acções de guerra e na criação duma corrente de pensamento que quis justificar esta barbárie, nos encontrará no caminho. Que eles não passarão. Eles, que não sabem, nem sonham.

Aqui te juramos que não permitiremos que os nossos filhos e netos vejam em ti, criança árabe, palestiniana, um terrorista, uma ameaça, até porque há séculos que o vosso sangue nos corre no corpo e a vossa cultura foi um dos alicerces da nossa, e que não deixaremos de estar atentos às ameaças verdadeiras, aos que vos mataram para vos dominarem e às vossas riquezas.

Aqui te juramos que os nossos pais e professores saberão que os generais do Sr . Bush criaram o caos no teu país, viabilizaram o saque de dezenas de milhares de peças que são cinco mil anos das tuas e das nossas memórias de uma civilização notável. E que eles permitiram também o saque de hospitais que deixaram de ter condições para salvar crianças como tu.

Os teus olhos não sairão das nossas vidas.

Se sobreviveste, havemos de nos encontrar numa noite de Santo António. Se não resististe, descansa em paz, nos braços de Alá, porque hás-de ver a bola colorida de que nos falou o poeta com a convicção de que os nossos sonhos se realizam, mesmo que crianças inocentes como tu nos tenham que deixar. Deixando-nos com ainda mais responsabilidades para com as crianças que vão continuar a nascer.