Artigo de Vítor Dias no "Semanário"

"Dia 3"

À beira do debate parlamentar marcado para dia 3 de Março, por iniciativa e agendamento potestativo do PCP, sobre a despenalização do aborto, consintam os leitores em mais três despretensiosas anotações à volta deste relevante assunto.

A primeira é para registar que, no estilo despejado e troglodita que o caracteriza, Vasco Graça Moura veio sentenciar anteontem no “DN” que “a esquerda folclórica que temos fez tudo para incriminar as mulheres que foram julgadas em Aveiro” porque “deu como assente que elas tinham efectivamente praticado o aborto”. Mas é sobretudo para esclarecer que, pelo menos no que toca ao PCP, a acusação é completamente falsa e delirante. Na verdade, e certamente não por acaso, não há qualquer documento do PCP ou declaração de responsáveis comunistas em que se admita que as mulheres julgadas em Aveiro praticaram o aborto. Pelo contrário, sempre e repetidamente, aí se falou de mulheres “acusadas” de “alegada prática” de aborto. E, de caminho, esclareça-se aquilo que muitos sabem mas sempre fingem não saber: que não foi da área do PCP que vieram as cenas das barrigas nem o discurso explícito sobre o “direito ao corpo” que tanto têm sido agitados pela direita para prejudicar a causa da despenalização do aborto.

A segunda anotação - um bocadinho elementar mas necessária face à superficialidade dominante – visa esclarecer que as iniciativas que vão estar em debate no dia 3 na AR não têm a mesma eficácia ou consequências em caso de aprovação.

Assim, repare-se que a aprovação de projectos de lei sobre a despenalização do aborto, seguindo-se a sua promulgação pelo PR, conduziria directamente à alteração da lei em vigor e à sua eficácia para a resolução do problema social e humano a que visa responder.

Diferentemente, a aprovação de projectos de resolução visando a convocação de um referendo significaria que a AR apresentaria essa proposta para decisão soberana do Presidente da República e que, aceitando-a este, os eleitores seriam consultados sobre o tema (só depois de Outubro deste ano, por causa do condicionalismo do nº 7 do artº 115º da Constituição), e que a mudança de legislação ficaria naturalmente dependente de uma vitória do “sim” . Acresce ainda que, com uma maioria de direita na AR, a plena eficácia da vitória do “sim” exigiria que fosse acompanhada de uma participação eleitoral superior a 50%, pois de outro modo a direita não deixaria de invocar então a seu favor o carácter não vinculativo do referendo.

Por fim, assinale-se que o projecto de resolução sobre educação sexual e cumprimento da lei do aborto em vigor apresentado pelo PSD e pelo CDS (e que espantosamente teve direito a manchete no “Público” dezasseis dias depois de já ter sido noticiado pelo jornal!), e que estes partidos conseguiram ilegalmente enxertar na discussão de dia 3, tem apenas um valor político simbólico sendo entretanto desprovido de qualquer eficácia prática ou concreta. Trata-se evidentemente de uma iniciativa ditada por razões de composição de imagem em período de aflição, e em que, após assumida combinação entre a maioria parlamentar PSD-CDS e o governo PSD-CDS, a primeira “recomenda” ao segundo que passe a fazer tudo aquilo a que não ligou peva nos dois últimos anos nem tenciona ligar nos próximos dois anos.

A terceira anotação pretende reavivar alguma memória desaparecida sobre o longo e acidentado percurso da luta pela despenalização do aborto, percurso esse que ajuda a pôr em evidência não apenas o muito tempo perdido mas também, secundariamente, os diferentes méritos e diferenciadas responsabilidades que dele emergem.

De facto, é imenso o tempo que desgraçadamente se perdeu desde que, em 1982, uma maioria parlamentar de direita rejeitou o primeiro projecto de lei apresentado pelo PCP; desde que, em 1984, existindo na Assembleia da República uma folgada maioria de deputados do PS e do PCP, um projecto de lei do PCP (similar ao que hoje é também apresentado pelo PS), foi reprovado graças aos votos contra e abstenções de deputados do PS; desde que, em 1997, existindo igualmente uma maioria de deputados do PCP e do PS, um novo projecto de lei foi derrotado por um voto; e, finalmente, desde que, em 1998, a aprovação de um projecto de lei de despenalização foi sabotada por um revoltante acordo entre PS e PSD para a convocação de um referendo, que se concluiu com uma vitória tangencial do não, mas que, não tendo tido carácter vinculativo, devolveu à Assembleia da República a sua inteira liberdade de decisão.

É pois tempo de não se perder mais tempo !

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