Intervenção de António Filipe, Sessão pública Direitos, desenvolvimento e soberania – a alternativa à política de direita

Sobre a Soberania

Amigos e camaradas,

“Portugal é uma República soberana”. Esta é a primeira frase do artigo 1.º da Constituição. Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular.

A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição. Assim dispõe o n.º 1 do artigo 3.º da Constituição, que prossegue com o n.º 2: o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.

Quando em 1992 o PS e o PSD decidiram amarrar o país às exigências ditadas pela adesão ao Euro, e negar ao povo português o direito a pronunciar-se em referendo sobre essa decisão, tentaram camuflar a indisfarçável perda de soberania que decorreria da entrada na moeda única com a aprovação de uma disposição constitucional, segundo a qual, Portugal poderia, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia.

Na revisão constitucional de 2004, o PS, o PSD e o CDS foram ainda mais longe, visando escancarar as portas da Constituição à aprovação do chamado tratado constitucional europeu, falhada por via dos referendos em França e na Holanda, mas mantido na sua essência pela recauchutagem operada no Tratado de Lisboa. Foi então introduzido no artigo 8.º da Constituição, que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União.

Quando, em 9 de dezembro de 1992, a Assembleia da República debateu, para aprovação, o Tratado da União Europeia, o PCP recorreu da admissibilidade da Proposta de Resolução, por considerar que a alienação de soberania resultante da integração na moeda única contrariava de forma irremediável o artigo 3.º da Constituição.

A versão camuflada adotada no texto constitucional, de “convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia” pretendia ocultar a realidade. A entrada na moeda única, nos termos constantes do Tratado, não configurava o exercício em comum de coisa nenhuma. Configurava uma transferência de soberania que, por pertencer ao povo, não pode ser alienada. Como afirmámos então, é em nome do povo que os órgãos de soberania exercem a soberania. É isso o que podem e devem fazer: exercer a soberania que não lhes pertence, nunca transferi-la e ou delegá-la, porque não têm nem podem ter mandato para isso.

Como afirmou nesse debate o camarada Carlos Carvalhas, só por cegueira, má-fé ou humor de mau gosto é que, nesta questão, se pode falar de «soberania partilhada».

É que o essencial da política financeira e económica da União e dos Estados membros será dirigida por uma instituição supranacional, de natureza federal, que não responde politicamente perante ninguém. Mas, evidentemente, o Banco Central Europeu não deixará de estar sujeito às relações de poder político e económico dos grandes países nem da pressão dos grupos transnacionais e dos interesses dominantes nos mercados financeiros.

O compromisso da moeda única, para além das implicações que pretende arrastar a nível da integração política de essência federal, tem profundos e nefastos efeitos económicos e sociais para os países menos desenvolvidos e periféricos, como Portugal. A exigência que o Tratado impõe nos critérios de convergência nominal é irracional e contrária à necessária e primordial convergência económica no âmbito doe níveis de desenvolvimento económico e social, incidindo mais negativa e pesadamente sobre os países menos desenvolvidos como Portugal.

Para a Alemanha poderá ser prioritária a «estabilidade de preços», com uma inflação da ordem dos 2%, tendo em atenção o seu nível de desenvolvimento económico. Mas o que é bom para a Alemanha e para o marco não tem, necessariamente, de ser bom para Portugal e para o escudo.

A prioridade para o nosso país é a existência de um elevado nível de crescimento e de desenvolvimento económico e social, que permita uma aproximação rápida das estruturas económicas, dos níveis de produtividade, de rendimentos, de segurança social e de condições de trabalho, à média comunitária.

E essa prioridade nacional não é compatibilizável com uma união monetária assente nos dogmas neoliberais e em diretrizes conservadoras e classistas da política económica, com uma conceção claramente monetarista da economia, que privilegia exclusivamente os aspetos financeiros e omite as condições necessárias para atingir objetivos reais de crescimento económico, de níveis de vida e de proteção social, de mais justa repartição da riqueza criada.

A verdade é que, ao mesmo tempo que o Tratado sujeita Portugal a uma estratégia económica supranacional, inevitavelmente determinada pelos interesses das economias mais desenvolvidas, retira-lhe instrumentos de política económica essenciais para poder fazer frente a situações de crise provocadas por choques externos, assim pressionando a aplicação de políticas deflacionistas, que impedem o desenvolvimento e a resposta às crises e às recessões.

A verdade é que, nestas condições, o nosso país ver-se-á, objetivamente, impedido de progredir no sentido da convergência económica com os países mais desenvolvidos e ficará condenado a permanecer cada vez mais na cauda do pelotão comunitário, como, aliás, hoje está.

Este hoje, camaradas, não é de hoje. Tem mais de vinte anos. Mas tem hoje uma dramática e acrescida atualidade.

É que os mesmos que antes negavam a perda de soberania decorrente da integração na União Económica e Monetária são os mesmos que hoje invocam a perda de soberania, que muito dizem lamentar, para justificar a sujeição às imposições da troika e às exigências do pós-troika, que serão obviamente condicionadas pelo Pacto de Estabilidade Orçamental que o PS, o PSD e o CDS aceitaram sem pestanejar.

Mais uma vez, assumem entusiasticamente as causas, para depois lamentarem pesarosamente as consequências.

Camaradas,

A perda de soberania em que se traduziu a integração no euro e em que se traduz a sujeição à troika e à ditadura dos mercados é insofismável, mas não é, não pode ser, irreversível.

A independência nacional é um princípio constitucional irrevisível. A alienação de poderes soberanos a favor de instâncias supranacionais que se verificou e se mantém pela vontade política dos partidos da troika PS/PSD/CDS contraria frontalmente o princípio da independência nacional, sendo que a garantia da independência nacional e a criação das condições políticas, económicas e sociais e culturais que a promovam, continua inscrita na Constituição como tarefa fundamental do Estado.

A afirmação de Portugal como uma República soberana, que não reconhece nenhum poder superior no plano internacional, é uma prerrogativa que só pertence ao povo português e que nenhum Governo e nenhuma maioria parlamentar, por mais alargada que seja, lhe pode retirar.

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