Intervenção de José Lourenço, Encontro Nacional «Tomar a iniciativa – assegurar o direito à habitação para todos»

Sobre o papel do Estado na política de habitação

Sobre o papel do Estado na política de habitação

Desde há pelo menos algumas dezenas de milénios, que, no quadro do processo de satisfação das necessidades materiais básicas das comunidades de Homo Sapiens, a par da água, da alimentação e do vestuário, aparece a satisfação da necessidade de alojamento.

Esta necessidade objetiva de proteção dos humanos relativamente aos elementos e fatores do clima, mas não só, já tinha sido formalmente destacada em 1948 na mais alta instância internacional, aquando da aprovação pela recém-criada ONU da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

De facto, no seu ponto 1. do artigo 25º, é afirmado “…que toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto […..] ao alojamento […..].

Isto é, há cerca de 74 anos, as Nações Unidas, já tinham concluído dois aspetos de enorme importância: uma, a necessidade de haver um nível de vida suficiente para assegurar saúde e bem-estar às pessoas, isto é dizer, salários dignos, e, a outra, a satisfação da necessidade de uma habitação.   

Nas condições nacionais, face ao carácter progressista da Revolução do 25 de Abril, a Constituição da República de 1976, deu à necessidade material básica habitação a dignidade de direito constitucional, por parte de qualquer cidadão,

Nos dias de hoje, a Constituição da República Portuguesa continua a referir, nos termos do ponto 1 do artigo 65º, que “…Todos têm direito […..] a uma habitação […..].

E mais ainda, constituindo um natural avanço qualitativo relativamente à declaração da ONU de 1948, nos termos do seu ponto 2 do mesmo artigo 65º, a Constituição contínua a afirmar que “…o assegurar o direito à habitação incumbe ao Estado…”.

Logo após o 25 de Abril, a orientação governamental progressista de então permitiu iniciar alguns programas estruturantes no domínio das políticas habitacionais, e que, a não terem sido parados pelo início daquilo que então designávamos por política de recuperação capitalista, latifundista e imperialista, poderiam ter atenuado num prazo não longo, e se não mesmo quase resolvido, os enormes e complexos problemas que atingiam esta tão importante área, designadamente sob o ponto de vista financeiro-orçamental, dados os níveis de investimento exigidos.

Infelizmente para o povo português, esta incumbência do Estado, quaisquer que fossem as formas concretas que porventura pudessem ter vindo a assumir, nunca foram concretizadas, exceto na década de 90 do século passado com o programa de irradicação de barracas, o PER.

Atualmente, e na decorrência de uma dinâmica quase suicidária, a situação da habitação em Portugal é completamente caótica, socialmente injusta e económica e financeiramente desequilibrada e encerrando mesmo perigos potenciais no domínio económico-financeiro, como ocorreu durante a 1º bolha imobiliária com os reflexos dos empréstimos contraídos no estrangeiro pelos bancos nacionais relativamente ao nível da dívida externa.

E tudo isto, porque ela é filha da iniciativa privada e das suas lógicas de maximização do lucro, sob a cobertura, por ação e omissão, do Estado, Estado sempre gerido por PS e PSD, portanto não dando minimamente cumprimento ao constitucionalmente preceituado.

Como escrevia Marx no Capital, “…A finalidade do capital não é satisfazer necessidades, mas sim produzir lucros…”

É, pois, este “programa” enunciado por Marx, que está, pelo menos desde o início da década de 90 do século passado, a ser concretizado em Portugal.

Passaremos de seguida em revista alguns dos preocupantes traços que caracterizam a situação.

Observemos então: Existem em Portugal 1,4 alojamentos/família, ou seja, um claro excedente de edifícios e alojamentos, mas, em simultâneo, estão identificadas cerca de 80 mil famílias com graves carências habitacionais; por outro lado, existem dezenas de milhar, designadamente, de jovens famílias e trabalhadores e estudantes deslocados do seu habitual local de residência, tais como médicos e professores, que têm enormes dificuldades financeiras em alugar uma casa; por exemplo, em 2015, em média, os jovens saiam de casa dos pais aos 29 anos, já uma idade muito elevada para começarem a ser autónomos, mas hoje saem aos 34, e, uma das forte razões para tal, é a falta de casas financeiramente acessíveis, mesmo para jovens de camadas médias; em simultâneo a estes factos, existe seguramente pelo menos 720 mil fogos devolutos, valor a que deverá ainda acrescer um muito importante património público, também devoluto, infelizmente ainda não completamente caracterizado, e tudo isto, ao mesmo tempo que existem cerca de 10 % de fogos sobrelotados e 63,3 % de fogos sublotados; e a distribuição espacial dos equipamentos devolutos, coincide, dominantemente, grosso modo, com as regiões e zonas mais críticas, particularmente as AML e AMP.

Para terminar esta breve caracterização, observemos agora a vertente dos preços e das correlativas avaliações bancárias. 

Assim, relativamente à aquisição, o valor ponderado mediano da avaliação bancária para os apartamentos, que constituem claramente o foco da maior procura nas grandes áreas metropolitanas, tinham a avaliação bancária de 1 209 euros/m2 em Março de 2020, 1 314 euros/m2 em Março de 2021, de 1 476  euros/m2 em Março de 2022 e de 1 672 euros /m2 em Janeiro de 2023. 

Isto é, tomando como referência Janeiro de 2023, os apartamentos eram avaliados em média em mais cerca de 26 % do que o conjunto apartamentos+vivendas.

Todavia, na AML, área absolutamente crítica sob o ponto de vista habitacional, o crescimento do valor mediano da avaliação bancária de apartamentos, foi, entre Março de 2020 e Janeiro de 2023, de cerca de 70 %, isto é, com uma média de crescimento de cerca de 25 % ao ano.

E não estamos sequer a falar da cidade de Lisboa. 

Neste quadro, particularmente nas grandes e médias cidades, as tipologias mais baixas apresentam preços por m2 superiores às mais elevadas, em que, por exemplo, um T0 custa mais 50 % por m2 do que um T4.

Contudo, enquanto isto acontecia, entre o 3º trimestre de 2020 e o 1º trimestre de 2022, isto é, durante um ano e meio, foram transacionados alojamentos no valor de cerca de 250 mil milhões de euros, cerca de 15 vezes o montante do PRR, e dominantemente a nacionais.

A Constituição da República, ao afirmar que incumbe ao Estado o assegurar o direito à habitação, está, nestas circunstâncias, a transformá-lo em incumbente, ou seja, aquele a quem compete, nesta área concreta, assegurar o direito à habitação aos cidadãos portugueses.

O Estado, para prosseguir este estratégico e inadiável objetivo, deve atuar, nas muito difíceis circunstâncias da atualidade, em múltiplas, importantes e diversificadas frentes.

Porém, para ter êxito na sua ação, deve também ter em atenção, a absoluta necessidade de concretizar previamente, relativamente à questão da habitação, algumas condições necessárias críticas, designadamente:

- enfrentar decididamente o poder e a influência que atualmente tem na sociedade, e na economia portuguesa e no setor imobiliário, a tríade construção civil-imobiliário-sistema financeiro, responsável tático por parte significativa da atual situação, pois que os responsáveis no nível estratégico, são os governos;

- atenuar, ou mesmo eliminar, alguns dos graves entorses apresentados atualmente pelo sistema de habitação em Portugal, nomeadamente a legislação sobre arrendamento urbano, o muito elevado volume de fogos reiteradamente devolutos, qualquer que seja a sua origem e proprietários, e os preços absolutamente criminosos praticados nalgumas regiões, frenando as suas dinâmicas, e, finalmente, os fenómenos de sobrelotação, a que acrescem os casos já do domínio criminal associados a imigrantes;

- suspender imediatamente e com caráter duradouro a alienação de qualquer tipo de património com vocação imobiliária;

- partir do princípio de que, embora a iniciativa privada seja absolutamente maioritária, quer no mercado imobiliário – desde os grandes fundos imobiliários até ao tradicional e porventura quase em vias de extinção senhorio - quer na propriedade para uso próprio e permanente, correspondente a cerca de 73 % dos alojamentos, tal facto não pode nem deve impedir uma forte intervenção pública no setor, com vista ao cumprimento do desiderato estratégico constitucional;

- renovar e adotar, uma social, urbanística, económica e financeiramente equilibrada política de solos, regressando, nalgumas situações, e, se necessário, à utilização do instituto jurídico do direito de superfície;

- considerar, como uma muito importante premissa de base, de que, globalmente, não há falta de habitações, mas antes uma profundamente desadequada e injusta repartição espacial e social das habitações, de facto, existentes;

-   considerar, portanto, em sequência, que a regra deverá ser a reabilitação do edificado, exceto nos casos de irreversibilidade estrutural de recuperação, com exigência técnica de demolição, e a exceção deverá ser a construção nova, que, contudo, deverá continuar a existir, mas a ritmos adequados a uma sábia renovação e modernização do parque habitacional.

Portanto, condições necessárias críticas, bem ao contrário das políticas para a habitação do governo PS, ou de outros da política de direita, políticas eufemisticamente chamadas de Nova Geração de Políticas de Habitação, assim como a resposta avulsa e conjuntural ao agudizar da crise, a Mais Habitação, mas que, no essencial, mais não fazem que responder a muitas das exigências dos cadernos reivindicativos da tríade, assim como, em vez de combater decididamente as dinâmicas que estão na origem das espirais especulativas de preços, ao contrário, as estão a alimentar à custa de verbas do Orçamento de Estado, absolutamente necessárias para outras finalidades.

E, ao fazermos esta justa crítica à intervenção do PS e ao enunciarmos a necessidade de uma prévia concretização de um conjunto de condições necessárias críticas, não estamos, de forma alguma, a propor o socialismo na habitação para amanhã, mas somente, e não é pouco, a propor racionalidade e decência em tão crítica matéria, com vista, seja a ajudar a cumprir o preceito constitucional, seja a impedir que o setor imobiliário continue a constituir um obstáculo a um saudável  e equilibrado desenvolvimento nacional.

Aliás, pelo menos há mais de seis anos que, nos seus traços gerais, vimos apresentando as propostas base que ora desenvolvemos. 

Passada esta explicação, finalmente, no que respeita às frentes em que o Estado deve começar por atuar com a máxima urgência, destacamos:

- No plano legislativo, concebendo, publicando e fiscalizando a aplicação de legislação, nomeadamente sobre:

- um novo quadro regulatório do arrendamento habitacional urbano, que tenha como pedra de toque o equilíbrio entre os direitos e os deveres das partes, e dê grande ênfase à absoluta necessidade de estabilidade temporal dos contratos, pois que a habitação constitui uma necessidade de médio-longo prazo;

-  utilizando legislação já existente ou porventura a criar, sobre a muito rápida entrada no mercado de arrendamento de alojamentos reiteradamente devolutos, se necessário através da figura da expropriação por utilidade pública, dada a natureza singular e economicamente constrangida do bem habitação;

- controlo muito apertado, seja de valores, seja de taxas de crescimento destes, dos arrendamentos;

- No plano organizativo-financeiro:

- concluir com brevidade o inventário do património público com potencial habitacional atual ou futuro, e a caracterização das necessidades de reabilitação e ou reutilização desse património;

- colocar urgentemente no mercado de arrendamento, com prioridade para as regiões e zonas mais críticas, os apartamentos passíveis de utilização a muito curto prazo, ou mesmo necessitando de pequenas reparações, público e privado, designadamente de promotores institucionais;

- Criar ou recriar um organismo público, dotado de adequada estrutura a nível nacional, dos meios humanos e da capacidade financeira adequados à sua missão de gestão, nos níveis tático e operacional, de um parque público habitacional de elevada dimensão, com vista à sua colocação no mercado de arrendamento, no quadro da figura do Estado enquanto grande promotor imobiliário para o mercado, tendo em vista o alcançar no médio prazo o objetivo estratégico de redução dramática dos preços.

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