Intervenção de Manuel Loff na Assembleia de República, Reunião Plenária

O Governo deve ouvir os profissionais e não submeter-se aos interesses das multinacionais

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A opção de legislar por atacado sobre os estatutos das Ordens profissionais levou a uma megaproposta de lei que trata como igual o que é diferente e trata como diferente o que é igual.

Em matéria de estrutura orgânica, o Governo trata como igual o que é diferente. Obriga a um órgão de supervisão com a presença de elementos externos e a um provedor dos destinatários dos serviços, sem querer saber da diversidade de características e de dimensão das Ordens existentes, levando a situações de duplicação de órgãos com as mesmas funções, no caso de Ordens onde já existem mecanismos de fiscalização interna, ou a situações onde a composição do órgão de supervisão é de muito difícil concretização.

A proposta de lei do Governo revela um enorme desprezo pela autonomia das Ordens profissionais. As Ordens não são sindicatos e não podem ser confundidas com eles. São associações públicas que fazem parte da Administração Autónoma do Estado, a quem o Estado delega funções que são de indeclinável interesse público, na regulação do exercício das profissões e designadamente no exercício do poder disciplinar sobre os respetivos membros. Isto significa que as Ordens profissionais não podem ser tratadas como se fossem associações de direito privado ou, ao invés, como se fossem institutos públicos sob tutela governamental.

A autonomia das Ordens sobre o exercício das profissões deve ser regulada, mas não deve ser esvaziada. Em matéria de exercício do poder disciplinar, os poderes das associações profissionais são indeclináveis e não pode ser permitido que o exercício da medicina, da enfermagem, da advocacia, da engenharia, da arquitetura, ou de outras profissões relativamente às quais se justifique a existência de uma Ordem Profissional possam ser exercidas por quem não tenha habilitações reconhecidas nos termos da lei e não esteja sujeito à fiscalização pública da idoneidade com que exerce a profissão.
Nesse sentido, o PCP opõe-se à imposição legal da prevalência – sublinho, da prevalência - de elementos estranhos à profissão nos órgãos disciplinares ou em órgãos de supervisão com poderes alargados, que configurem uma forma de permitir interferências externas à profissão em aspetos relevantes para a atividade profissional. Isto não significa que tenhamos objeções de fundo ou de princípio à inclusão de personalidades de reconhecido mérito nesses órgãos de supervisão desde que não sejam impostos a partir do exterior, tenham a sua idoneidade reconhecida pelos próprios profissionais e, acima de tudo, não estejam em maioria nesses órgãos.

Uma questão também relacionada com o acesso às profissões tem que ver com a remuneração dos estágios. Não é aceitável que os jovens que integram a geração considerada a mais qualificada de sempre sejam obrigados a implorar pela frequência de estágios gratuitos, ou ficticiamente remunerados. Por isso, acompanhamos a ideia de que o estágio que não seja curricular, isto é, que não faça parte integrante do curso que confere a referida habilitação académica, o estágio profissional, seja remunerado sempre que implique prestação de trabalho pelo estagiário. Não se trata de pôr  as   ordens   profissionais   como   entidades empregadoras, mas que os estágios sejam remunerados pelas entidades beneficiárias do trabalho prestado.

Não ignoramos alertas que foram feitos no que refere à especificidade do estágio de advocacia e a consequências indesejáveis que um regime menos ponderado possa provocar enquanto fator impeditivo da admissão de estagiários em escritórios em que o exercício da advocacia seja exercido a título individual. Este problema, para o qual a Ordem dos Advogados tem vindo a alertar, não pode ser ignorado. Não se deve adotar uma solução que leve a que os estagiários que não tenham acesso a grandes escritórios sejam privados do estágio ou, pior ainda, sejam forçados a declarar remunerações fictícias para terem acesso a ele. Encontrar uma solução justa para este problema, em que o estágio seja dignamente remunerado, mas isso não seja impeditivo do acesso à profissão, é um desafio que se coloca a este processo legislativo. Não vemos nesta proposta de lei nenhuma solução para este problema, que o Governo pelos vistos prefere ignorar.

Este processo legislativo foi feito ao contrário do que devia ter sido. O que aconteceu em anteriores processos que implicavam alterações aos estatutos das Ordens, é que foi solicitado às Ordens profissionais que elaborassem as suas próprias propostas de revisão dos estatutos, adequando-as à legislação em vigor, tendo em conta as características próprias de cada uma, para que, com base nessas propostas, o Governo elaborasse a sua própria proposta a aprovar em Conselho de Ministros e a submeter à Assembleia da República.

Não foi assim desta vez. O Governo preferiu elaborar uma proposta de lei de alteração dos estatutos das Ordens a granel, feita a régua e esquadro, sem ter em conta a diversidade de Ordens e as características de cada profissão regulada, procedendo à audição das Ordens sem que estas tivessem um tempo mínimo para se pronunciar, como se essa audição fosse uma mera formalidade para se poder inscrever na exposição de motivos que foram ouvidas as Ordens profissionais.

Não admira, pois, que haja uma contestação quase generalizada das Ordens profissionais a esta proposta de lei. No pouco tempo de que dispuseram ainda fizeram propostas de alteração e depois ficaram à espera da entrada da proposta de lei na Assembleia da República para ficar a saber se algumas das suas propostas tiveram acolhimento.

Esta iniciativa legislativa tem uma marca mal disfarçada de hostilidade à regulação das profissões. Surge na sequência de estudos da OCDE, secundados pela Autoridade da Concorrência. Sabemos que a OCDE é uma organização que se caracteriza pela elaboração de estudos que sabem sempre tudo e nunca acertam em nada, e que formula recomendações que a serem seguidas produzem frequentemente resultados desastrosos. E também sabemos que em matéria de desregulação, se a OCDE diz mata, a Autoridade da Concorrência diz esfola.

É uma evidência que as situações não são todas iguais e que profissões diferentes reclamam soluções diferentes. Só que essas diferenças têm de obedecer a uma lógica e a proposta do Governo não tem lógica nenhuma. 

Quanto ao acesso às profissões, o PCP concorda que não devem ser admitidas no estatuto das Ordens profissionais restrições injustificadas à liberdade de acesso e de exercício das profissões, por ato ou regulamento. Obtida a habilitação académica necessária para o exercício de uma profissão não deve ser permitida a exigência de uma dupla habilitação obtida designadamente a partir de exames eliminatórios ou outros obstáculos de natureza administrativa. Os jovens que obtém uma formação académica habilitante para o exercício de uma profissão não podem encontrar na respetiva Ordem Profissional uma instituição que em vez de contribuir para a sua integração na profissão seja um obstáculo a essa integração.

Um ponto crítico deste processo legislativo diz respeito às sociedades multidisciplinares que são um dos reflexos maiores dos propósitos de desregulamentação e de limitação do papel das Ordens que caracterizam este processo legislativo. Está a conferir-se abrigo legal a sociedades multidisciplinares que podem reunir um alargado conjunto de profissionais de diversas áreas — advogados, arquitetos, contabilistas, solicitadores, médicos, enfermeiros —, todos contratados por uma mesma sociedade. Este caminho levanta graves problemas, seja no âmbito da deontologia e do sigilo profissional, seja no âmbito de informações confidenciais, de avaliações independentes e isentas de casos ou da forma de atuação dos profissionais, que ficando nas mãos das suas entidades empregadoras, ou seja, dos grupos económicos que os contratam, implicam o sério risco de incumprimento dos deveres deontológicos de cada uma destas profissões envolvidas.

Em resumo, se este processo começou mal, com a aprovação da Lei 12/2023 em dezembro do ano passado, continua mal. O melhor que podemos esperar é que a maioria que aqui suporta o Governo arrepie caminho, ouça os profissionais e quem os representa, e não sobreponha os interesses das multinacionais e as imposições neoliberais de vindas de estudos da OCDE, sem qualquer legitimidade democrática, ao interesse geral da sociedade que exige uma regulação idónea do exercício de profissões que interferem diretamente com a garantia de direitos fundamentais dos cidadãos.

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