Intervenção de Josué Caldeira, Encontro Nacional «Tomar a iniciativa – assegurar o direito à habitação para todos»

A alquimia dos preços da habitação e a imperativa necessidade de conjugar política de habitação, política de solos e política de cidades

A alquimia dos preços da habitação e a imperativa necessidade de conjugar política de habitação, política de solos e política de cidades
  1.  A alquimia do preço da habitação

Nos cinco anos que decorreram entre o início de 2017 e o início de 2022, o índice de preços no consumidor com exceção da habitação cresceu aproximadamente 7% (6,6%), a remuneração média regular cresceu 12% (11,7%), os custos de construção de habitação nova cresceram 22% (21,9%), e o índice de preços da habitação registou um crescimento de 63%.

Isto é, o crescimento do preço da habitação triplicou o crescimento dos custos de construção, quintuplicou o crescimento dos rendimentos do trabalho e decuplicou o ritmo de crescimento dos preços do cabaz de compras que forma o IPC.   

Vale, pois, a pena questionar o que é que de especial há na economia da habitação que consegue fazer um verdadeiro milagre das rentabilidades no contexto da economia nacional? O que é que o bem habitação que, como todos os outros bens fundamentais a uma vida digna, é fruto do trabalho, é resultado de um processo produtivo, é produto da conjugação de bens intermédios, mas que por um qualquer processo de magia (ou será de alquimia?) consegue atingir preços de aquisição (ou de arrendamento) inacessíveis à maioria da população, particularmente, aos trabalhadores de rendimentos baixos e intermédios?

O que é que de especial a economia da habitação tem que, constituindo a habitação um bem básico fundamental à vida humana e ao bem-estar individual e coletivo, consegue atrair gigantescos fluxos de investimento, mobiliza colossais volumes de crédito, estando no centro de perturbações da finança internacional, afirma-se como uma expressão fundamental das disparidades sociais, e está, crescentemente, no centro de processos sociais geradores de uma profunda desestruturação de vidas familiares e comunidades: os despejos, a expulsão dos centros das cidades, a higienização social e de classe dos lugares através das ondas da gentrificação urbana…

A resposta a estas questões, cujo tópico tem estado oculto nas últimas décadas pelas teorias económicas dominantes e frequentemente afastado (de forma muito oportunista) nos debates sobre a questão da habitação, encontramo-la com a ajuda decisiva dos autores fundadores da economia política clássica (para cuja discussão Karl Marx deu um contributo incontornável) e que nos auxiliam a desvendar os elementos fundamentais que alimentam a alquimia dos preços da habitação.

Quanto uma família adquire (ou arrenda) uma habitação, não adquire apenas o elemento edificado que ela constitui (paredes, portas, janelas), a família compra (ou arrenda) o edifício e o solo onde o edifício se implanta. E no processo de aquisição da habitação, a família defronta-se, não com um, mas, com dois agentes económicos, com funções diferentes na economia da habitação, frequentemente fundidos numa única personagem: por um lado, o construtor ou proprietário do edifício, por outro lado, o proprietário do solo.

E é, de facto, no solo e na propriedade privada do solo, que se encontra o segredo da base da multiplicação dos preços da habitação e, consequentemente, o segredo do processo de crescimento dos preços da habitação para níveis estratosféricos na perspetiva das famílias de baixos ou rendimentos intermédios.

Os preços inacessíveis das casas, no fundamental, não são resultantes dos preços dos materiais de construção, do custo do processo de construção ou dos custos do trabalho. Os preços inacessíveis das casas são, fundamentalmente, resultantes da capacidade que os proprietários do solo têm em impor preços inacessíveis na venda do solo, capacidade esta que é consequência de um poder económico singular e que resulta de uma única condição: serem proprietários privados do solo.

Numa sociedade (e numa cidade) onde o preço do solo se encontra profundamente desregulado, é o proprietário do solo que, fazendo uso do seu extraordinário poder económico (um poder de natureza monopolista, pois não há um metro quadrado do solo que seja igual a outro metro quadrado), é este proprietário que, sem mexer uma palha, consegue determinar muito do que a cidade é, determinando também a forma como, todos, como comunidade, usamos e nos organizamos na cidade. É o poder do proprietário do solo que, ao conseguir impor preços inacessíveis do solo, determina, por exemplo, a construção das habitações com preços inacessíveis (as únicas cujos preços de venda permitem pagar os preços do solo), determina, ainda, os processos dos despejos e a limpeza social dos bairros,…

Identificada a matéria-prima do processo alquímico dos preços da habitação – isto é, o solo – e a personagem que assume a função do alquimista – o proprietário privado do solo – é necessário identificar o próprio processo alquímico dos preços da habitação, isto é, o momento em que a transmutação de valor acontece. E esta questão remete-nos para as condições da geração e realização das mais-valias fundiárias geradas na sequência dos processos de reclassificação dos solos, de urbanização e de requalificação urbana. São estas mais-valias fundiárias resultantes da valorização da localização e dos contextos urbanos das parcelas de solo, valorização conseguida, quer, por via das políticas públicas e investimento público, quer ainda, por via da ação individual e coletiva de múltiplos agentes económicos, são estas mais-valias – comumente conhecidas por “ganhos trazidos pelo vento” - a expressão financeira do poder económico único do proprietário do solo. 

Solo, em regime de propriedade privada do solo e gerador de mais-valias fundiárias apropriadas pelo proprietário do solo, constitui o triângulo da alquimia dos preços inacessíveis da habitação, dos despejos e da expulsão das famílias das cidades, que uma política justa de habitação está obrigada a confrontar. 

Uma política justa de habitação coloca como imperativo uma política justa de solos e consequentemente, mecanismos de eliminação ou captação, pelas entidades públicas, das mais-valias geradas pelo processo de urbanização e de desenvolvimento urbano. Uma política justa de habitação determina a definição de políticas de ordenamento do território, de âmbito nacional, regional e municipal, orientadas para uma cidade justa e para o direito à habitação o qual, neste contexto, anda de braço dado com o direito à cidade.

  1. É possível e necessária a articulação entre política de habitação, política de solos e política de ordenamento do território e de desenvolvimento urbano

O quadro normativo que a Lei de Bases da Habitação (LBH) e a Lei de Bases da Política de Solos, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano (LBPSOTU) estabelecem não é alheio ao desafio do imperativo da integração de uma política justa de habitação com uma política justa de solos e de ordenamento do território.

Por um lado, a LBH é muito clara quando à integração das políticas:

  • Ao artigo 16 da Lei estabelece que a política nacional de habitação implica… a articulação com a política de solos, de ordenamento do território e do urbanismo (e também com a política de ambiente),
  • Já o artigo 21º, relativo às políticas municipais, estabelece que para a boa execução da política local de habitação, os municípios devem integrar a política municipal de habitação nos instrumentos de gestão territorial,
  • Relevante é também a determinação de que, por um lado, as parcelas destinadas a cedências gratuitas para o domínio privado municipal poderem ser afetas a programas de habitação, e, por outro lado, as mais-valias resultantes de alterações de uso do solo proporcionadas pelos planos territoriais ou operações urbanísticas poderem ser afetas a programas habitacionais.
  • É ainda particularmente relevante a afirmação de um compromisso recíproco de integração e compatibilização a estabelecer entre o PNH e o PNPOT.

Por outro lado, a LBPSOTU integra (ainda que com um desenvolvimento regulamentar insuficiente) um regime económico e financeiro onde prevê mecanismos perequativos de benefícios e encargos do processo urbanístico, estabelecendo, ainda, a determinação da fundamentação, no âmbito dos planos municipais, do processo de formação das mais-valias fundiárias bem como a definição dos critérios para a sua parametrização e redistribuição.

 

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