Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"O segredo de Estado não pode ser usado pelo Primeiro-ministro para dar cobertura a actuações inconstitucionais e ilegais"

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A maioria PSD/CDS rejeitou hoje, com a abstenção do PS, a proposta do PCP para a audição urgente na 1.ª Comissão do Secretário-Geral e do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República. Esta rejeição é um facto gravíssimo e não pode passar em claro.
Senão, vejamos. No âmbito de um processo-crime em que é arguido pela prática de atos ilegais praticados enquanto diretor do SIED, concretamente o acesso a dados de tráfego telefónico de um jornalista, conhecidos na gíria operacional por «lista de compras», Jorge Silva Carvalho defende-se, afirmando que tais atos ilegais eram prática corrente do Serviço de Informações.
Segundo o Diário de Notícias de 22 de fevereiro, na contestação de Silva Carvalho é afirmado que o acesso à faturação detalhada do telemóvel do jornalista Nuno Simas foi feito, e cito, «de acordo com orientações superiores e segundo o modus operandi dos serviços secretos portugueses», que existe um edifício legislativo «que aponta num sentido e uma prática que aponta em sentido contrário» e ainda que Silva Carvalho «é acusado por cumprir escrupulosamente o que lhe foi incutido, ensinado e exigido durante anos».
Ora, estes factos não podem deixar de trazer à nossa memória a divulgação em junho do ano passado de um «manual de procedimentos» no qual os agentes dos Serviços de Informações eram aconselhados a recorrer às bases de dados das operadoras de telecomunicações.
O Conselho de Fiscalização do SIRP, sempre que foi ouvido nesta Assembleia, afirmou a sua convicção de que os Serviços não praticam atos ilegais e só quando Silva Carvalho foi constituído arguido foi obrigado a correr atrás do prejuízo causado à sua credibilidade e a reconhecer a existência de ilegalidades que haviam escapado à sua capacidade de fiscalização.
Já o Secretário-geral do SIRP, sempre que foi ouvido nesta Assembleia, pôs as mãos no fogo pela idoneidade dos Serviços que dirige, negou a prática de atos ilegais e, importa relembrar que, mesmo aqueles que foram constituídos arguidos por atos ilegais cometidos no âmbito do SIRP, nunca foram alvo de qualquer procedimento disciplinar.
Quando, perante a gravidade das acusações feitas em juízo, a maioria parlamentar se recusa a ouvir não apenas o Secretário-geral do SIRP mas até mesmo o Conselho de Fiscalização, o País tem de se interrogar seriamente sobre o que se tenta realmente esconder. Quando o PSD, o CDS e, até, o PS se encolhem perante acusações tão graves não podemos deixar de nos questionar sobre as obediências que estarão por detrás desta atitude.
Sr. Presidente e Srs. Deputados:
Não compete a esta Assembleia intervir no processo judicial que corre contra Silva Carvalho, mas compete a esta Assembleia fiscalizar o cumprimento da lei e o respeito pela Constituição por parte dos Serviços de Informações e de quem os tutela. E essa competência não pode ser alienada.
Se existem acusações públicas de um antigo diretor do SIED, no sentido de que o acesso a dados de faturação telefónica era prática corrente dos Serviços e de que era feito por orientações superiores, temos o dever de procurar saber quem dava tais orientações. E se o Conselho de Fiscalização não sabe, nem quer saber, e se a maioria não permite que o Secretário-Geral do SIRP seja chamado a esclarecer, somos obrigados a exigir que esta questão seja cabalmente esclarecida por quem tem a responsabilidade máxima pela direção dos Serviços de Informações neste País, ou seja, o Primeiro-Ministro.
Importa recordar que é o Primeiro-Ministro o único membro do Governo responsável pelo Sistema de Informações da República. Essa responsabilidade não está delegada em nenhum outro membro do Governo. É o Primeiro-Ministro que tem de responder, perante a Assembleia da República e perante o País, por atos ilegais que sejam cometidos pelos serviços que superiormente tutela.
Não podemos, pois, deixar de exigir que o Primeiro-Ministro se pronuncie sobre as acusações feitas, no âmbito de um processo judicial, de que a prática ilegal, que está sob julgamento e que ninguém contesta que tenha ocorrido, era, ou não, prática habitual dos Serviços de Informações e se era, ou não, praticada de acordo com orientações superiores e de quem.
Mais: o Primeiro-Ministro tem, agora, a obrigação de explicar por que motivo tem vindo a indeferir os pedidos para a quebra do segredo de Estado no âmbito do processo judicial em curso.
O cumprimento da lei e da Constituição por parte dos Serviços de Informações é um valor democrático fundamental. Se o Primeiro-Ministro não autoriza a quebra do segredo de Estado no âmbito de um processo judicial em que está em causa a investigação de práticas ilegais por parte dos Serviços de Informações, estamos confrontados com uma atitude inaceitável de obstrução à justiça.
O segredo de Estado não pode ser usado pelo Primeiro-Ministro para dar cobertura a atuações inconstitucionais e ilegais dos serviços que estão sob sua tutela direta. Num caso em que a salvaguarda de valores democráticos fundamentais exige clareza e garantias de idoneidade, o silêncio imposto pela maioria a esta Assembleia é verdadeiramente ensurdecedor.
Pela nossa parte, não nos calaremos e não abdicamos de usar todos os mecanismos constitucionais de que dispomos para exigir o apuramento de responsabilidades por práticas ilegais dos Serviços de Informações e para exigir que não existam em Portugal serviços de informações a atuar à margem da lei e em violação de direitos fundamentais dos cidadãos.
Neste sentido, anuncio que o Grupo Parlamentar do PCP irá apresentar uma pergunta, por escrito, ao Primeiro-Ministro para que se pronuncie sobre as acusações feitas aos Serviços de Informações pela defesa de Jorge Silva Carvalho e para que esclareça se tenciona continuar a invocar o segredo de Estado para impedir que se saiba toda a verdade e se faça justiça no âmbito desse processo.
Esperamos que o Primeiro-Ministro cumpra o seu dever e não invoque subterfúgios para não responder a estas questões.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Luís Pita Ameixa,
O Sr. Deputado diz que o PS tem uma posição tranquila sobre esta matéria. Eu diria que é demasiado tranquila, tendo em conta a situação que está a ser revelada perante a opinião pública, através da comunicação social.
Aliás, o Sr. Deputado têm uma posição tão tranquila que, a certa altura, mudou de assunto e começou a falar do orçamento do SIRP; depois lá voltou ao tema, mas para dizer que não há factos novos.
Sr. Deputado, não há factos novos?! Então, há um ex-diretor dos Serviços de Informações Estratégicas de Defesa que está acusado num processo judicial pela prática de ilegalidades, no caso de acesso a dados de faturação telefónica de um jornalista, e ele, no processo, defende-se dizendo que recebia orientações superiores?! E dizendo que isso era prática corrente dos Serviços?!
É que, até aqui, a questão era tratada como tendo sido uma anomalia que era unicamente da responsabilidade do Dr. Silva Carvalho, mais ninguém sabia, que ele enganou toda a gente, mas agora ele vem dizer, no processo, «Não, recebi orientações superiores», que só podem vir ou do Secretário-Geral do SIRP ou do Primeiro-Ministro, e o Sr. Deputado vem dizer que não há factos novos?!
Sr. Deputado, se isto não são factos novos, não sei o que sejam.
Portanto, quero dizer-lhe, Sr. Deputado, que não compreendemos, de facto. Obviamente que repudiamos completamente a posição que a maioria assumiu, no sentido de obstaculizar essas audições. Já ouvimos por diversas vezes quer o Secretário-Geral do SIRP quer o Conselho de Fiscalização, mas também não compreendo, Sr. Deputado, a posição do Partido Socialista de se abster numa questão destas.
De facto, não compreendemos essa posição, porque realmente há aqui factos novos, que são gravíssimos, e é um dever indeclinável da Assembleia da República apurar os factos e as responsabilidades nesta matéria.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Cecília Honório,
Muito obrigado pela questão que suscita.
Na questão que colocou, creio que é muito relevante o aspeto das responsabilidades próprias do Sr. Primeiro-Ministro, e este não é um aspeto menor, pelo contrário.
Na verdade, o Primeiro-Ministro é o único membro do Governo que é responsável pelos Servições de Informações. Momentos houve em que essa função foi delegada no Ministro da Administração Interna. A lei permite que isso aconteça, mas no atual Governo tal não acontece. É uma opção legítima do Governo que seja o Primeiro-Ministro o responsável direto pelos Servições de Informações, mas isso também implica uma responsabilidade acrescida do ponto de vista político do próprio Primeiro-Ministro, a que ele não se pode eximir, e é muito preocupante que neste processo que está em curso o Primeiro-Ministro, até aqui, tenha indeferido todos os requerimentos para que o arguido possa quebrar o segredo de Estado em sua defesa.
É que se estamos a discutir violações graves da lei e da Constituição por parte do Serviço de Informações, se estamos a discutir uma questão gravíssima que é a de saber se esse serviço faz, ou não, interceções telefónicas ou tem acesso a dados de faturação telefónica à margem da lei e da Constituição, que é uma questão da maior relevância do ponto de vista democrático, institucional e do cumprimento da legalidade, se se está a discutir uma questão destas e o Primeiro-Ministro invoca o segredo de Estado para impedir que o próprio tribunal tenha acesso à verdade dos factos, então, estamos perante uma atitude gravíssima da parte do Primeiro-Ministro.
Essa é uma questão que tem de ser esclarecida. É preciso saber se o Sr. Primeiro-Ministro vai invocar o segredo de Estado para impedir que o tribunal saiba a verdade, numa clara obstrução à justiça. Como diz o nosso povo, quem não deve não teme e, perante essa invocação do segredo de Estado, é justo recear que, de facto, o Serviço de Informações esteja a atuar à margem da lei e que tenha uma cobertura política ao mais alto nível por parte do Primeiro-Ministro.
Esta é uma questão extremamente preocupante e não pode deixar de ser esclarecida.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho,
Acho que a Sr.ª Deputada não tem dúvidas sobre quem é o Primeiro-Ministro que está em funções.
A Sr.ª Deputada vem dizer que caímos na armadilha da defesa do Dr. Jorge Silva Carvalho. Se há partido nesta Assembleia que não pode ser acusado de ter qualquer relação política ou outra com o Dr. Jorge Silva Carvalho é o PCP. Nunca o nomeámos para coisa nenhuma, mas o PSD não pode dizer o mesmo, porque nunca foi desmentido o facto — dito pelo próprio, em entrevistas — de que terá sido convidado pelo atual Governo para vir a assumir o cargo de Secretário-Geral do SIRP.
Nunca foi desmentido — que eu tenha visto — que ele foi convidado, inclusivamente, para ser ele a redigir o programa eleitoral do PSD para a área dos serviços de informações.
Portanto, se alguém tem alguma relação política com o Dr. Jorge Silva Carvalho não somos nós. Aliás, basta ver o rol de testemunhas de defesa que ele apresentou para ver que não há lá ninguém do PCP, mas o PSD não pode dizer o mesmo.
Sr.ª Deputada, entendemos que a Assembleia da República não tem de se imiscuir no processo judicial, nem nas estratégias da defesa ou da acusação. De facto, nesse aspeto, à justiça o que é da justiça.
No entanto, o que a Assembleia da República não pode ignorar é que há acusações muito graves que são feitas, estão no domínio público, são manchetes de jornais e causam alarme social. Isso é algo a que a Assembleia da República não pode ficar indiferente.
A Sr.ª Deputada vem perguntar: «afinal, a que Primeiro-Ministro querem colocar as questões? É ao Primeiro-Ministro que nomeou o Dr. Jorge Silva Carvalho como Diretor do SIED ou é ao atual?». Digo-lhe muito claramente, Sr.ª Deputada, é ao Primeiro-Ministro que invoca o segredo de Estado no âmbito de um processo judicial para que a verdade não seja apurada. É ao Primeiro-Ministro que está em funções.
E digo-lhe também que era fundamental, do ponto de vista democrático, que ele não fizesse obstrução à justiça, que deixasse que o processo seguisse, como tem de seguir, e fosse apurada a verdade que tem de ser apurada.
Se o segredo de Estado continuar a ser invocado, se a maioria continuar a impedir a Assembleia da República de esclarecer aquilo que lhe compete esclarecer e se o Primeiro-Ministro continuar a recusar-se a prestar esclarecimento à Assembleia da República sobre esta matéria, os portugueses têm todas as razões para ficar preocupados quando à idoneidade dos serviços de informações que existem neste País e quanto à sua tutela política.
(…)
Sr. Presidente
A Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho pediu a V. Ex.ª que nos fizesse chegar o desmentido que o Sr. Primeiro-Ministro terá feito chegar a esta Assembleia, dizendo que o Dr. Jorge Silva Carvalho nunca tinha sido convidado para coisa nenhuma. Peço-lhe que, se o Sr. Presidente o conseguir encontrar, faça o favor de no-lo fazer chegar. E desejo-lhe muito boa sorte nessa pesquisa, Sr. Presidente, porque nós nunca o vimos.

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