29 de Agosto de 2003
O “Público” de 24/8 depositou diante dos nossos olhos a afirmação feita por Ferro Rodrigues, no encerramento da “Universidade de Verão” do PS, de que “não faz sentido ser contra ou a favor da globalização, porque é o mesmo que ser contra o pôr do Sol”.
Como o “Público”, a respeito deste tema, não nos disse mais do que isto das palavras de Ferro Rodrigues, não nos é possível garantir se o secretário-geral do PS se terá ficado por esta frase aparentemente consensual mas na verdade muito equívoca, pouco pedagógica e portadora de um exemplo menos feliz do que parece.
No caso de ter ficado, interessa então chamar a atenção para que a primeira questão que aquela afirmação obscurece é que o conceito de “globalização”, mesmo usado em sentido corrente e impreciso, engloba muitas e diferentes realidades e fenómenos, com variadas naturezas, significados e consequências.
Abreviando, o que com isto queremos dizer é que é um truque ideológico nada inocente avaliar da mesma forma e atribuir a mesma naturalidade e inevitabilidade, ou mesmo carácter positivo, quer a realidades como a interdependência mundial em termos de defesa do ambiente ou do combate a epidemias e a facilidade e velocidade de circulação da informação, quer a realidades bem mais amargas e devastadoras como a ditadura mundial dos mercados financeiros que depreda as esferas produtiva, arrasa soberanias e expropria conteúdos essenciais às democracias, as estruturalmente conexas políticas de privatização, liberalização e desregulação, o ainda mais férreo sistema de dominações sobre países e continentes inteiros.
É que, quanto a estas últimas realidades, no essencial elas não estavam necessariamente inscritas na ordem natural das coisas, não caíram do céu aos trambolhões e não representaram nenhuma inevitabilidade criada por um espontâneo fluir da vida contemporânea, antes resultaram de vontades políticas que se concretizaram e de escolhas premeditadas por parte dos Estados e das suas classes dominantes e equipas governantes.
Sustentar o contrário seria decretar, em escandalosa rasura da verdade, que nunca houve decisões sobre a crucial liberalização dos movimentos de capitais nem favorecimentos da sua vertente dominantemente especulativa, que o “Uruguay Round” e as negociações da Organização Mundial do Comércio nunca existiram nem existem ou que instituições como o Banco Mundial, o FMI e a OCDE são meros espectadores e analistas de evoluções e mutações alegadamente inelutáveis e irreversíveis.
Mais coisa menos coisa, é exactamente isto que fazem todos aqueles que, quando a coisa fica mais feia, sempre invocam pesarosos “os constrangimentos externos” e sempre se esquecem de lembrar o papel que tiveram e o acordo que deram à criação de tais “constrangimentos”.
A este respeito, e fazendo reservas à primeira pessoa do plural usada pelo autor, basta lembrar que o nesta matéria insuspeito Lionel Stoleru já no distante ano de 1987 escrevia que “estes pretensos “constrangimentos” internacionais fomos nós mesmos que os quisemos, fomos nós mesmos que os edificámos, e somos nós mesmos que, dia após dia, nos empenhamos em desenvolvê-los. Nós não temos liberdade de acção porque não quisemos mais ter liberdade de acção”.
Voltando à frase de Ferro Rodrigues, acresce que identificar a globalização (ou seja, toda a globalização ou todas as suas componentes) com o pôr do Sol nem sequer bate certo com o discurso oficial do PS que, nesta matéria, costumava incluir umas tímidas referências à necessidade de formas de regulação da globalização. É que não consta que o pôr do Sol seja regulável.
Infelizmente, também pode acontecer que a analogia da “globalização” com o pôr do Sol, correspondendo certamente às suas passadas orientações de governo, corresponda também ao pensamento reservado e actual do PS e seja uma forma de continuar a incentivar abandonos, sacrifícios e rendições.