1. O mercado da produção lenhosa
O motor de uma gestão ativa da floresta, numa economia capitalista, está na rentabilização económica da produção florestal. E, não sendo despiciendas outras receitas, nomeadamente da cinegética, da agricultura, da biomassa para a produção de energia, ou mesmo receitas derivadas do Fundo de Carbono, a produção lenhosa é o fator chave para uma efetiva rentabilidade da floresta. E, na atual situação da floresta portuguesa, isso significa a comercialização a preço remunerador do eucalipto e pinheiro, da cortiça e também da madeira de espécies autóctones, como o carvalho, o castanheiro e outros.
Ora o mercado lenhoso, particularmente das suas espécies mais rentáveis, o eucalipto e o pinheiro, assim como a cortiça, são mercados dominados/monopolizados pelos oligopólios da celulose/pasta de papel, dos aglomerados e da transformação da cortiça. Mas mesmo outras produções de madeira serrada de outras espécies estão sujeitas a não poucos condicionamentos de mercado, face ao comércio e importação de madeira exótica e a algumas indústrias dominantes no sector do mobiliário, que asseguram o grosso da matéria-prima da importação.
Acresce que a agravar o quadro, algumas das principais empresas industriais são elas próprias proprietárias ou arrendatárias de enormes áreas de produção florestal que, inevitavelmente, pesam no mercado, pelo menos como fator de contenção de preços, e condicionadoras do escoamento da outra produção dos pequenos proprietários florestais.
Este panorama, articulado com uma estrutura produtiva florestal ou, talvez melhor, com a estrutura dominante, económica, social dos proprietários da floresta portuguesa, de onde decorrem debilidades associativas e gestionárias, ocasiona uma degradação permanente e generalizada dos preços da produção lenhosa, com graves impactos nos rendimentos dos proprietários florestais e, logo, como principal obstáculo à gestão ativa da floresta.
Todas as informações vindas da produção, e mesmo dos sectores intermediários/madeireiros (abate, recolha, concentração e comercialização da madeira), evidenciam esse problema que, em geral, a indústria consumidora não nega (mesmo se invocam os preços na concorrência da pasta), constituindo o estrangulamento número um ao necessário incentivo para uma atividade florestal, empresarial, rentável e sustentável.
Quando se invoca o mercado para justificar esses preços baixos, em geral, degradados, parte-se de uma falsa premissa: o mercado não existe! Mesmo que haja um comércio interno e as fronteiras estão abertas à circulação de matéria lenhosa.
Quando se invoca a necessidade de uma rentabilização da produção através de aumentos/agregações de parcelas florestais, concentração da propriedade fundiária florestal, conduzindo a gestões profissionais e a maiores produtividades físicas, se outros problemas não houvessem, cai-se num evidente círculo vicioso, que serve aos que já hoje ganham com a situação: os preços são baixos porque a produtividade é fraca e a gestão não profissional, a produtividade é fraca porque os preços são baixos, não incentivando a aglomeração das áreas e menos ainda a gestão profissional.
E é claro que, nas atuais circunstâncias, a certificação da madeira, que é e pode ser uma mais valia para a produção, acaba por se transformar em mais um fator de discriminação / desvalorização da grande parte da produção lenhosa nacional, porque não é certificada. A certificação e a respetiva mais valia ficam para algumas grandes explorações florestais, nomeadamente das indústrias de celulose.
2. Mas a floresta é ou pode ser «regulada» pelo mercado da produção lenhosa?
Pode afirmar-se, como ponto de partida, que a resposta intuitiva e lógica é negativa. Pelo que a floresta representa em termos de bem público, em todas as vertentes, ambiental, social, económica, cultural, garantia de ciclos e funções essenciais da natureza, água, O2 e CO2, reserva e equilíbrio das linhas de água, etc. Bastariam os desastres dos incêndios florestais que há décadas atingem o País, e mesmo os catastróficos, como o que acabou de acontecer em Pedrogão Grande, para eliminar qualquer resquício de dúvida sobre a irresponsabilidade política, económica e social, que significa deixar-se ao livre mercado uma qualquer regulação da floresta.
Aliás, em qualquer país, mesmo em Portugal, isso está patente no conjunto de diplomas que regulam há séculos a floresta, estabelecendo disciplina e ordem no seu desenvolvimento espacial e de espécies, condicionando, restringindo o mercado, de forma imperativa, pela lei: o Regime Florestal, a Estratégia Nacional para as Florestas, o Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios e outros.
Aliás, não é por acaso que, na generalidade dos países europeus – Portugal é uma triste exceção – a percentagem da floresta de propriedade pública é significativa. Assim se assegura, sem quaisquer obstáculos ou dificuldades (rentabilidade da produção lenhosa, direito de propriedade privada, etc.), a função de «bem público» que é a floresta.
Por redução ao absurdo, também facilmente se percebe que a floresta não pode ter essa regulação mercantil: se fosse o mercado a decidir, toda ou parte significativa da área florestal portuguesa seria «colonizada» pelo eucalipto. Aliás, a brutal expansão verificada do eucalipto nas últimas décadas é a prova provada da força de um mercado (ou, talvez melhor, da força dos interesses económicos que movem esse mercado) que atropela a lei e a regulação pública e extravasa para lá do que lhe estava autorizado. A ENF, legislada em 2006, estabelecia como área máxima do eucalipto 600 mil hectares. O «novo» Inventário Florestal vai seguramente mostrar que a área hoje é superior a 800 mil hectares!
Mas muitos outros elementos podem evidenciar-se, denunciando o absurdo de tal pretensão – o mercado a regular a floresta.
É claro que os elementos legais condicionadores do mercado, estabelecendo uma zonagem e limites à plantação do eucalipto, são uma «subversão» do direito de propriedade do proprietário florestal a plantar, e do que esse direito lhe devia garantir: plantar o que julgasse mais rentável (e logo, o direito a escolher o eucalipto ou outra espécie).
São uma subversão do mercado da propriedade fundiária e do mercado da produção florestal. Uns têm o direito, outros não! Uns podem obter boas rentabilidades da produção florestal, outros não!
É igualmente uma evidência que a chamada floresta portuguesa tem em muitas localizações ou áreas pouco ou nada rentáveis, noutras zonas tem funções objetivas de proteção (dunas da beira-mar, por exemplo), noutras ainda integram as áreas protegidas, ficando sujeitas (e bem) a imensos condicionalismos produtivos, e até de acesso.
Mas então que «mercado» é este que não assegura a todos os agentes económicos participantes, como potenciais produtores, igualdade de direitos? Uns podem arborizar e rearborizar e outros não? Uns podem optar pelo eucalipto e outros não? Uns podem juntar as parcelas e derrubar muros que as dividem e outros não? Uns podem servir-se dessas áreas como pastagens, e até com direito a apoios comunitários, e outros não? É isto um mercado? Pode a floresta funcionar tendo como eixo regulador o mercado da produção lenhosa? É evidente que não.
É assim que a solução que quer responder aos problemas da floresta portuguesa – nomeadamente do ordenamento e prevenção contra os incêndios florestais – através da chamada gestão ativa/profissional da floresta, reclamando uma série de instrumentos legais – «cadastro», ocupação de terras abandonadas e de terras (aparentemente) sem dono, dos «bancos/bolsas de terras», de «arrendamentos compulsivos», de fórmulas empresariais diversas (unidades de gestão, ZIF, cooperativas, …) para favorecer a aglomeração de parcelas e áreas e, assim, obter mais produtividade, mais produção lenhosa por hectare, no sentido de que o mercado, recuperando essa «gestão», com preços e rentabilidade, assegurem a floresta ordenada e prevenida, laboram, insistem num erro estrutural e num caminho sem saída.
Poder-se-ia perguntar (ou poderíamos perguntar aos adeptos dessa estratégia) porque não funciona o mercado fundiário da terra florestal, se há quem queira fazer/produzir (bem) floresta?
Esse mercado não existe e não existirá. Nunca será global abrangendo toda a floresta. Será sempre um mercado restrito, parcial, não abrangendo áreas imensas de terras florestais. Será sempre um mercado que exige uma fortíssima e permanente resposta e intervenção do Estado, na supressão/atenuação das ditas «falhas de mercado», mesmo nas áreas em que possa funcionar.
Esse mercado será incapaz de responder aos problemas complexos da floresta portuguesa, tal como a conhecemos, em tempo de urgência.
O que não quer dizer que o mercado e os (ou, pelo menos, alguns dos) instrumentos atrás referidos não possam ter um papel a desempenhar. Caso do cadastro, um instrumento decisivo, que sucessivos governos adiaram a execução por causa dos seus significativos custos orçamentais.
Mas será sempre necessária a intervenção económica, reguladora, condicionadora e supletiva do Estado. Inclusive no mercado da produção lenhosa.
O Estado tem de assegurar escoamento e preços que garantam a floresta de que o país precisa.
3. Em síntese
(i) Há um mercado de produção lenhosa? Não!
Há um simulacro de «mercado» completamente distorcido e sem qualquer transparência na formação do preço por posições oligopolistas, ausência de exportação significativa para o eucalipto e o pinho, e outros produtos, e total falta de informação de parte significativa dos agentes, nomeadamente dos pequenos e médios produtores florestais.
Pode haver soluções para os problemas detetados? Pode, com uma forte intervenção pública reguladora e a participação do Estado, não só como regulador, mas também, pelo menos num período significativo, como parte e instância de último recurso, em articulação com associações de produtores.
(ii) Podem os problemas da floresta portuguesa, nomeadamente no ordenamento e prevenção, ficar dependentes ou na expectativa de um mercado de produção lenhosa que funcione, regulado e corrigido das suas distorções e opacidade? De um mercado da «terra florestal» forçado por uma intervenção pública coerciva? Não, não pode!
Pela questão central do «bem público que é a floresta», não suscetível de uma regulação pelo mercado. Pelo facto de significativas áreas e dimensões da floresta, nomeadamente ambientais, estarem fora das preocupações desses mercados. Pela urgência da resposta aos problemas do ordenamento e prevenção.
(iii) Logo, a floresta portuguesa exige, reclama do Estado, uma ampla e determinada intervenção no mercado da produção lenhosa. Mas, com a lucidez de que tal não resolverá muitos dos principais problemas da floresta portuguesa, pelo menos em tempo oportuno, para responder às questões do ordenamento e prevenção da floresta contra os incêndios. O que não significa desvalorizar o possível impacto de um mercado de produção lenhosa a funcionar com transparência e informação, assegurando à produção preços remuneradores da matéria-prima florestal.
Nestes termos, nos termos da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte:
Resolução
A Assembleia da República resolve, nos termos da alínea b) do artigo 156.º e do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República, recomendar ao Governo que:
1) Intervenha junto da Autoridade da Concorrência (AdC) para que esta proceda, com a urgência necessária, em prazo que não poderá ser superior a um ano, à análise dos mercados e dos preços da produção lenhosa, dando prioridade para um Relatório Preliminar aos sectores do eucalipto e do pinho, a que se seguirá o das madeiras autóctones (carvalho, castanho e outras) e da cortiça, dando especial atenção à/ao:
a) Determinação da dimensão do valor acrescentado apropriado por cada escalão de cadeia de valor – produtores, intermediários / madeireiros e indústria transformadora;
b) Avaliação da opacidade / transparência do mercado e do grau de informação dos seus agentes;
c) Deteção de situações oligopolistas;
d) Detecção de situações de abusos de posição dominante e de abusos de dependência económica;
e) Papel quantitativo e qualitativo do comércio externo, nomeadamente das importações de eucalipto, no funcionamento do mercado da produção interna;
f) Análise comparativa do mercado nacional com o mercado das principais regiões florestais de Espanha.
2) Identifique manchas de eucalipto e pinheiro bravo suscetíveis de uso imediato pela indústria, através do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), em conjunto com as equipas de gestão dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal (PROF), as estruturas representativas de produtores florestais (Forestis, Baladi, Fenaflorestas, entre outras e as suas associações locais), tendo como ponto de partida o novo Inventário Florestal, com os seguintes critérios:
a) Dar prioridade às manchas contínuas localizadas em áreas de maior risco de incêndios;
b) Colocar à disposição da indústria e comércio, com a informação pública dos lotes, qualidade e preços mínimos da madeira disponível os volumes de madeira assim identificados;
c) Disponibilizar essa informação na Plataforma Informática para o Mercado da Madeira (PIMM), presente nos sítios do ministério da agricultura e do ICNF.
3) Crie, através do ICNF, bolsas para a comercialização da produção lenhosa, em articulação com o conjunto dos representantes dos agentes económicos da fileira – produção, comercialização e indústria – nas seguintes condições:
a) Criação, inicial e experimentalmente, de quatro bolsas, a serem localizadas nas áreas de Trás-os-Montes, Minho, Beira Litoral e Zona do Pinheiro, focadas nestes mercados do eucalipto, pinho e principais madeiras nobres nacionais;
b) O suporte logístico e administrativo das bolsas é assegurado pelos serviços do ICNF;
c) As Bolsas terão, pelo menos, uma sessão mensal;
d) As empresas de comércio de madeira e da indústria com volume anual de negócios superior a 500 mil euros farão, obrigatoriamente, as suas transacções através das bolsas, excepto para a produção decorrente de explorações próprias ou arrendadas;
e) Toda a informação decorrente do comércio de madeira através das bolsas estará presente na PIMM.
4) Crie uma Plataforma de informação para as transacções comerciais de madeira, através do ICNF, a disponibilizar nos sítios eletrónicos deste instituto e do ministério da agricultura e do ICNF e nas seguintes condições:
a) A Plataforma será da gestão do ICNF, que recolherá toda a informação através das associações e agentes económicos da fileira e das bolsas de comercialização de madeira;
b) A par das informações já referenciadas, a Plataforma conterá uma informação atualizada sobre preços de madeira nos principais mercados internacionais, e dos preços das transações do comércio externo de madeiras, através de empresas que operam no mercado interno.
5) Crie uma estrutura com participação pública de comercialização de madeira, com a natureza de empresa com identidade jurídica adequada, onde o Estado terá uma participação maioritária, aberta à participação de associações de produtores, com os seguintes objetivos e condições:
a) A empresa, dirigida preferencialmente à comercialização de produção das matas públicas, da produção de pequenos e médios produtores florestais e de baldios, terá uma intervenção reguladora e comercializadora de último recurso;
b) A empresa, atenta aos preços correntes nas bolsas de madeira, procurará que os preços de mercado não desçam abaixo de um valor limiar mínimo, capaz de assegurar a rentabilidade numa exploração florestal média em solos de produtividade média;
c) O ICNF fixará, em cada semestre, um valor limiar mínimo por área de PROF e por espécie.
Assembleia da República, 14 de junho de 2017