Intervenção de Manuel Loff na Assembleia de República, Comissão Permanente

Os problemas estruturais nos serviços públicos não se resolvem com medidas pontuais do PS

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Começa setembro e regressam em força às nossas vidas os problemas que agosto, para alguns, tendeu a fazer esquecer.

São pais e mães que não encontram lugar em creches para os seus filhos, são alunos que vão começar aulas sem professores, são professores que, apesar das vitórias que arrancaram do ministro da Educação, vão voltar a pegar nas malas e procurar uma nova escola, uma nova casa paga a preço de escândalo. São médicos e enfermeiros que vão regressar a hospitais onde, tais são as dificuldades do SNS, se trabalha como se estivessem em estado de guerra. São homens e mulheres que, quando vivem do seu salário ou da sua pensão de reforma, contam os dias para, depois de pagar o aluguer ou a mensalidade ao banco, ver se o que resta é suficiente para comer, pagar a luz, a água, o gás.

A precariedade em que o atual Governo, como vários dos anteriores, deixa viver os serviços públicos tem muito a ver com a precariedade em que vive uma grande parte dos portugueses. Ela não cai do céu, não é culpa da pandemia ou da guerra; ela é mesmo da responsabilidade de quem governa e faz escolhas. 

A maioria absoluta permitiu fazer ver aos portugueses o que valem tantas juras que o PS faz de amor ao SNS e à escola pública, como se a falta de médicos e de professores não tivesse nada a ver com o seu governo; tanta declaração sobre o direito ao trabalho das mães, especialmente delas, e é o que se vê na falta de vagas em creches; tanto desvelo pelos mais velhos, e neste ano e meio quanto resistiu a subir as pensões, tarde e mal, sempre abaixo da inflação, obrigando às mais estapafúrdias regras para receber prestações sociais.

Começou outro setembro e continuamos sem creches gratuitas para todos – aliás, pura e simplesmente sem creches suficientes. Ao longo destes seis meses em que aqui estive como deputado do PCP, perguntei vezes sem conta à senhora ministra do Trabalho como ia ser quando aqui chegássemos. Porque o Governo sabe que, para abarcar todas as crianças até aos 3 anos, é necessário duplicar o número de vagas disponíveis, passando das atuais 120 mil para 250 mil. E à nossa volta o que vemos é a peregrinação dos pais e das mães à procura de uma vaga, enquanto a senhora ministra e o senhor Primeiro-Ministro se apressam a marcar a agenda das notícias com a promessa até 2026 de 26 mil vagas PRR/ PARES (Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais), que, nem estão hoje disponíveis, nem nunca chegarão para satisfazer as necessidades. O PCP tem repetido que é preciso construir uma rede pública, que sem ela, não haverá nunca creche para todos independentemente das condições socioeconómicas. A quem diz que isto não se faria do dia para a noite, nós recordamos que nunca se fará se não se decidir fazer e começar o trabalho!

Foi a mesma ladainha com a gratuitidade das creches e com tantas outras iniciativas do PCP, e hoje o Governo percebeu como, uma vez introduzida para alguns, as famílias sentem ter direito a ela. A creche é absolutamente central no crescimento das crianças, e é o estímulo decisivo à natalidade porque dá segurança no momento da decisão de ter um filho. A ministra do Trabalho veio anunciar há dias que as crianças abrangidas pelo programa Creche Feliz deverão chegar às 85 mil, ainda este ano. O Governo é que ainda não explicou o que o impede de garantir a gratuitidade a todas as crianças, já!

Do outro lado da vida, o quarto da população portuguesa com mais de 65 anos está especialmente exposto à degradação das condições de vida. Com pensões baixíssimas, que hoje perdem rapidamente valor por causa do aumento do custo dos bens essenciais e da habitação, eles precisam, para garantir uma vida digna e com direitos, de uma rede pública de equipamentos de apoio social, incluindo necessariamente lares públicos, que, também aqui, o Governo se recusa a criar.

Nas tarefas sociais do Estado, o Governo do PS continua a fazer mais do mesmo, a remediar, quase sempre mal, problemas que são estruturais que se não resolvem com medidas pontuais. Esta não é uma discussão simplesmente política. Ela é uma discussão pela democracia. É aqui que se percebe se se “promove” ou não, como se estabelece na Constituição, “o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais”.

Da mesma forma, a escola pública não é um direito de todos quando centenas de milhar de alunos não têm aulas porque faltam professores. Todos os anos se batem recordes no ritmo de aposentações. E não se diga o Governo não tem culpa do ritmo de reformas. Foram governos do PS, como o atual, que atacaram sistematicamente os professores na sua dignidade profissional, nos seus direitos, a começar pelo desrespeito acintoso na contagem do tempo de serviço. Atrair nestas condições jovens para a profissão é uma ilusão. E não dá para acreditar que, quem assim atua, não calculasse as consequências desta política.

No Ensino Superior, hoje mesmo, dezenas de milhar de novos estudantes deslocados procuram quartos, cada vez menos e cada vez mais caros, num quadro em que as residências públicas não cobrem mais do que 9% das necessidades e os planos, tardios, uma vez mais, do MCTES para aumentar a oferta de alojamento, em 4 anos não preveem mais do que vir a cobrir 13% das necessidades. Para um jovem que entra no Ensino Superior, este é cada vez mais um critério central de escolha de formação; para muitos é o obstáculo que impede prosseguir estudos.

Na saúde, há mais de 1,7 milhões de portugueses sem médico de família, muitos sem serviços de urgência nos hospitais, sem consultas, sem cirurgias a tempo. Médicos e enfermeiros abandonam o SNS. Um médico do SNS faz uma média de 300 horas extraordinárias, o dobro do estipulado na Lei, e o ministro da Saúde vem propor o aumento do limite anual de trabalho extraordinário de 150 para 350 horas, é aos enfermeiros e aos médicos, não ao Governo, que, com a sua greve que daqui saúdo, tem cabido defender o SNS, como aos professores a Escola Pública.

Os serviços públicos são, não só, a dimensão real da fruição dos direitos sociais por parte de todos os cidadãos, eles são também uma condição da construção da democracia social, assegurando que áreas tão essenciais como a saúde, a educação, o cuidado das crianças e dos mais velhos (duas das tarefas mais importantes da segurança social), não se transformam em puro negócio e em acumulação descarada de lucro nas mãos dos mais ricos, quer sob a forma de negócio para os grandes grupos económicos, quer sob a forma de juros imorais com o endividamento à banca de quem mais precisa de apoio do Estado e do conjunto da comunidade.

Abandonarei dentro de dias o lugar de deputado e regresso à minha atividade na Universidade.

Mesmo que saibamos bem que a democracia está longe de depender exclusivamente das instituições – e eu e o PCP acreditamos que a democracia se concretiza em muitas outras instâncias da vida e, portanto, também fora das instituições -, o trabalho dos e das deputadas num parlamento tem um peso muito importante na qualidade da democracia. Na nossa capacidade de representar as pessoas, o povo português. Nestes seis meses, espero ter cumprido o meu mandato com empenho, paciência, espontaneidade e o entusiasmo que tem de caracterizar quem representa mulheres e homens que confiam no PCP, na esquerda a sério, para resistir à desdemocratização de Portugal e para, 50 anos depois, reconstruir a alegria de Abril.

Agradeço a cordialidade de quem me foi cordial, a amizade de quem ma concedeu, o profissionalismo admirável de quem trabalha nesta Assembleia. Agradeço especialmente aos meus camaradas do GP do PCP. Bom trabalho! Até sempre!
 

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