Intervenção de

Princípios reguladores das actividades da pesca e da aquicultura - Intervenção de Miguel Tiago na AR

Bases do ordenamento e da gestão sustentável dos recursos aquícolas das águas interiores e define os princípios reguladores das actividades da pesca e da aquicultura nessas águas

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O Governo apresenta-nos hoje uma proposta de lei (n.º 115/X) que pretende estabelecer as bases do ordenamento e gestão dos recursos aquícolas das águas. No entanto, esta é uma proposta de lei especificamente destinada à prática de actividade de pesca, como, aliás, bem afirma o título de «Lei da Pesca nas Águas Interiores».

A ser aprovada, esta proposta de lei revogará legislação que data de 1959, o que, só por si, demonstra bem a falta de atenção que a protecção dos recursos piscícolas de águas interiores tem merecido aos sucessivos governos. É por isso que consideramos positivo que o Governo traga esta proposta de lei, se bem que não possamos, de forma alguma, apoiar muito do seu conteúdo.

De facto, o Governo apresenta esta proposta como um instrumento de planeamento e de gestão sustentável dos recursos aquícolas de águas interiores, quando, na verdade, a proposta de lei está praticamente toda destinada à regulação da pesca. Não há, nesta proposta de lei, uma predominância no articulado que estabeleça as bases do ordenamento e da gestão dos recursos aquícolas de águas interiores, antes existindo um conjunto de orientações que visam exclusivamente criar um novo regime de licenciamento das actividades de pesca em águas interiores.

Esta é a primeira nota que deixamos: o Governo entende que estabelecer as bases do ordenamento e da gestão sustentável dos recursos aquícolas é agir exclusivamente sobre a pesca, obliterando o papel da gestão territorial, da actividades agropecuárias intensivas e industriais e de outras utilizações das águas interiores, nomeadamente na produção de energia. O Governo pretende, assim, aprovar um conjunto de normas, algumas das quais profundamente desajustadas e todas dirigidas principalmente à pesca.

Perante a situação bastante complicada do estado actual dos rios e de outras águas interiores no território nacional - bem patente no relatório da qualidade das águas do INAG, que constata que mais de 40% dos rios não têm qualidade sequer para a sobrevivência saudável das espécies e das comunidades piscícolas -, o Governo faz por ignorar as suas responsabilidades na gestão dos recursos aquícolas. Mais: o Governo faz por contornar as consequências inevitáveis da falta de meios e da insuficiente capacidade de resposta e de fiscalização das autoridades e da extinção do papel do guardarios e faz ainda por esquecer a incapacidade que tem em levar a cabo uma efectiva política de ordenamento, capaz de garantir a integridade dos meios naturais (de que são exemplo os tão esperados planos de bacia hidrográfica), cedendo em diversas ocasiões a interesses que não os das populações.

Tudo isto com impactos sérios e graves na natureza, nomeadamente na poluição de rios e ribeiras.

As questões concretas que a proposta de lei aponta como soluções não podem deixar de merecer, em muitos aspectos, a preocupação do PCP. Impõe-se uma resposta a questões essenciais, como a da clarificação das competências de tutelas duplicadas ou ambíguas entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Ambiente, sob pena de, na prática, as orientações do diploma se reflectirem em processos que se prolongarão sem fim. A tutela sobre cada uma das actividades e sobre cada um dos locais deve ser claramente estabelecida, sem lugar a situações dúbias ou indefinidas.

A política de estabelecimento de coimas completamente exorbitantes leva a situações tão excêntricas como a que permite fixar em 5000 € a coima mínima aplicável a um pescador que apanhe uma espécie fora da época em que é permitida essa captura. Este tipo de penalizações é completamente desajustado, a não ser que o Governo esteja a pensar fazer face ao défice orçamental também por via das coimas aplicadas a um pescador que capturou um peixe que não podia.

Vejam bem: apanhar uma truta fora do tempo dá a mesma multa que foi aplicada à Modelo Continente Hipermercados por levar a cabo práticas comerciais restritivas de venda abaixo do custo. Para este Governo, ambas as práticas merecem a mesma multa, estão na mesma dimensão e a capacidade de resposta a uma coima é igual. São mais de 7000 € por apanhar uma truta fora do prazo ou levar a cabo práticas comerciais restritivas!

Não podemos deixar de referir a intenção de ser obrigatória a obtenção de carta de pescador, que não só coloca os pescadores nacionais em desvantagem perante estrangeiros e mesmo perante membros do corpo diplomático como é uma novidade absurda que mais não provocará senão a impossibilidade de muitos milhares de portugueses praticarem a pesca lúdica. Relembro que não estamos a falar de caça e da utilização de armas de fogo, mas, sim, de pesca em águas interiores, onde o risco maior é o do anzol se espetar onde não deve!

O Governo utiliza conceitos de forma ambígua, como o de «pesqueira», e apresenta medidas formuladas de forma pouco rigorosa, como a que estabelece a interdição da pesca com recurso a corrente eléctrica, prática muitas vezes levada a cabo para a elaboração de estudos populacionais e desenvolvida pelo Governo, que, aliás, a plasma na proposta de lei como sendo obrigatória.

Salientamos também a proposta de extinção das zonas de pesca reservadas em águas públicas, figura actualmente existente e gerida pelo Estado, o que aponta mais uma vez o rumo de demissão do Estado de mais esta sua responsabilidade.

Na verdade, se por um lado o PCP saúda a iniciativa, por outro não pode deixar de levantar todas estas questões, não podendo manifestar o apoio a conteúdos profundamente desajustados e, em muitos casos, inaceitáveis, que consideram a pesca como a fonte de todos os atentados ao património e recursos aquícolas.

Para além das questões colocadas, muitas outras se levantam e o PCP dará o seu contributo na discussão na especialidade. O seu sentido de voto na votação final global dependerá, obviamente, da disponibilidade do Partido Socialista para acolher as sugestões e as críticas efectuadas.

 

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