Minhas senhoras e meus senhores,
Estimados amigos,
Dois anos decorridos sobre a decisão de amarrar o país ao programa dito de ajustamento, assinado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, Portugal e os portugueses foram arrastados para o desastre económico e social.
A evolução da situação nacional reflecte os efeitos dramáticos do que a vida confirmou ser um autêntico Pacto de Agressão ao país e ao seu povo.
A realidade é documentada (se bem que não inteiramente traduzida) por números aterradores: quase um milhão e meio de desempregados; uma recessão acumulada de 5,5% do PIB; mais de 250 mil portugueses, na sua maioria jovens, forçados a emigrar; uma dívida pública impagável e imparável que, tendo aumentado 48 mil milhões de euros, atinge já os 127% do PIB.
Declínio económico, retrocesso social, empobrecimento e dependência. O país viu agravarem-se todos os seus problemas estruturais, mesmo aqueles que alegadamente teriam justificado esta intervenção. Não apenas cria hoje menos riqueza, como distribui de uma forma ainda mais injusta a riqueza que cria.
Expressão disso, os salários reais sofreram uma redução média de 9,2% – em termos relativos, portanto, bem acima da redução do PIB – e têm hoje um peso historicamente baixo no rendimento nacional: apenas 38%. Inocultável marca de classe desta política e do governo que a executa, opera-se uma significativa redistribuição do rendimento nacional, a favor do capital, em desfavor do trabalho.
A reconfiguração profunda e duradoura do Estado e do seu papel é o objectivo último.
Um programa deste calibre não pode ser implementado senão em confronto aberto com a Constituição da República. Em confronto com o projecto de desenvolvimento e de progresso social nela plasmado. Em confronto com o regular funcionamento das instituições e com os mais elementares princípios e valores democráticos. Em confronto com a vontade soberana do povo, incluindo dos muitos que se sentem hoje enganados pelas promessas e compromissos eleitorais de há dois anos.
Em circunstâncias normais, caberia ao Presidente da República dirimir este confronto. Porém, aquele que jurou defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição quebrou ostensivamente esse compromisso, confirmando-se aos olhos do país como parte do problema, ao dar o apoio cúmplice à autêntica subversão do regime democrático-constitucional em curso.
Ao contrário do que alguns dizem, não é nem a Constituição, nem os portugueses – que o governo manda emigrar, que estão a mais no país. Quem está a mais é este governo ilegítimo e a política que executa. Quem está a mais é a maioria parlamentar que o sustenta e um Presidente que se assume como seu patrocinador.
A demissão do governo e a realização de eleições antecipadas constituem-se, assim, como um primeiro e imprescindível passo para resgatar o país do desastre.
Minhas senhoras e meus senhores,
A "austeridade" é a nova expressão verbal de um velho conceito.
Uma expressão disseminada, sobretudo, após a implementação daquela que foi a linha de resposta imediata ao agravamento da crise capitalista na Europa e nos EUA: a conversão de dívida privada em dívida pública.
Seguiu-se uma consabida mistificação: a de que a dívida pública resultou de um Estado sobredimensionado, que vive "acima das suas possibilidades".
Mistificação que procura não apenas obnubilar este processo de conversão de dívida privada em dívida pública, mas também esconder que o aumento da dívida pública, em Portugal como noutros países, acompanhou a tendência, especialmente nítida nas últimas duas décadas, para o recuo do Estado num conjunto de áreas da vida económica e social; esconder que esse aumento da dívida pública se deu a par de uma monumental transferência de recursos públicos para os grupos económicos e financeiros – por meios diversos: privatizações, concessões diversas, parcerias público-privado, isenções e perdões fiscais, entre outros.
Querem esconder também que esta dívida se auto-alimenta e auto-sustenta, desde logo graças ao processo de extorsão montado a partir do serviço da dívida e da especulação sobre os seus juros – um processo viabilizado por decisões políticas que deixaram o Estado refém dos mercados financeiros.
A “austeridade” vertida no programa da troika incorpora o essencial das medidas que têm vindo a ser preconizadas ao nível da União Europeia. Antes dele, já o “Pacto para o Euro Mais” e a chamada “Governação Económica” tinham apontado o caminho.
Um caminho que se articula em torno de dois objectivos centrais: 1º. o embaratecimento dos custos unitários do trabalho e o aumento da taxa de exploração, sendo a manutenção do desemprego em patamares elevados uma variável estratégica para impor esta desvalorização da força de trabalho; e 2º. o alargamento das áreas em que se pode exercer o processo de acumulação de capital, retirando à esfera pública ainda mais sectores da vida económica e social.
Nada de novo, portanto. Tudo velho.
Na sua essência, o “memorando da troika” não difere qualitativamente nem dos PECs que o antecederam, nem dos programas de ajustamento que o FMI anda há décadas a aplicar pelos quatro cantos do mundo, com resultados conhecidos.
Por esta cristalina razão, não há renegociação ou redesenho possíveis do memorando. A essência deste programa é para servir os objectivos que serve e não pode ter outras consequências.
Essência que o novo tratado europeu, o chamado Tratado Orçamental, quer inscrever na pedra. Aprovado, tal como os que o antecederam, nas costas dos povos, fugindo ao debate e ao escrutínio público democrático, a sua intenção é clara. A chanceler Merkel tratou de a enunciar oportunamente, Cavaco Silva veio relembrá-la recentemente: garantir que mudando os governos, não mude a política. Garantir, com troika ou sem troika, a institucionalização do neoliberalismo e a eternização da dita austeridade. Para alcançar este desiderato, prevêem-se mecanismos de autêntico recorte neocolonial, bem embrulhados na retórica da “maior integração política” e na exigência de um aprofundamento do federalismo.
Estimados amigos,
A ruptura com a política de direita – a política que conduziu o país ao desastre – insere-se na necessidade de uma ruptura mais ampla, com a submissão do país às orientações prevalecentes no seio da União Europeia, com a ideologia que as inspira e com as perigosas motivações que lhes subjazem.
Esta ruptura – um imperativo democrático e patriótico – coloca na ordem do dia a questão crucial da alternativa. Da política alternativa e da alternativa política que a concretize.
No actual contexto, essa alternativa passa, tem de passar, por uma política patriótica e de esquerda e por um governo que a concretize.
Uma política patriótica que recuse a ideia atávica de que a solução para os nossos problemas sempre dependerá de terceiros, ou pior, a ideia de que essa solução passa por aprofundar os caminhos que nos conduziram a muitos desses problemas.
Uma política patriótica, que recupere imprescindíveis instrumentos de soberania económica, monetária e orçamental e se proponha vencer atrasos, bloqueios e défices crónicos do país, aproveitando de forma sustentada o seu potencial endógeno; reconhecendo que para dever menos é necessário produzir mais e promovendo, dessa forma, a produção nacional.
Uma política patriótica e um governo patriótico que rejeite de imediato o programa da troika, subscrito por PS, PSD e CDS, e que encete uma renegociação da dívida pública, nos seus montantes, juros, prazos e condições de pagamento. Uma renegociação que rejeite a componente ilegítima da dívida e que assuma a necessidade de uma moratória, negociada ou unilateral, com a redução do serviço da dívida para um nível compatível com o crescimento económico e com a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e do povo português. Assim se libertaria uma parte substancial dos 8 mil milhões de euros que o país está a entregar aos “credores” – verba indispensável à dinamização e recuperação económicas. Assim se colocaria a vida à frente da dívida e não, como prevê o Tratado Orçamental, a dívida antes de tudo o resto.
Uma política de esquerda, que valorize o trabalho, os trabalhadores e os seus direitos; que valorize os salários e as pensões e que assuma o compromisso explícito de devolver ao povo os seus direitos, salários e rendimentos, ilegitimamente retirados.
Uma política orçamental que combata o despesismo, a despesa sumptuária, e se baseie numa componente fiscal de aumento da tributação dos dividendos e lucros do grande capital e de alívio dos trabalhadores e das pequenas e médias empresas, garantindo uma justa distribuição da riqueza e, bem assim, as verbas necessárias ao funcionamento eficaz do Estado e do investimento público.
Uma política de esquerda que defenda e valorize os serviços públicos, em particular nas funções sociais do Estado – saúde, educação e segurança social, – como elemento essencial à concretização de direitos e ao desenvolvimento do país.
Uma política que recupere para a esfera pública o controlo de sectores estratégicos da economia, como o sector financeiro, indispensáveis à dinamização económica e, também eles, necessários para a anulação do fosso entre uma minoria que acumula fortunas colossais e uma imensa maioria que vê as suas condições de vida degradarem-se a cada dia.
A política alternativa de que o país precisa é inseparável da luta dos trabalhadores e do povo, do exercício pleno dos seus direitos constitucionais, incluindo o direito de resistência, da defesa da democracia e das liberdades.
A situação do país e a solução para os problemas nacionais reclama a convergência das forças, sectores e personalidades democráticas que, sem prejuízo de posicionamentos diferenciados e admitindo essas diferenças, partilhem o objectivo de romper com a política de direita, que há mais de 30 anos vem avolumando os problemas nacionais, e que se manifestem genuinamente empenhados na construção de uma política alternativa, patriótica e de esquerda. Uma política que se vincule aos valores de Abril e os projecte no presente e no futuro de Portugal.
Obrigado.